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O Leibniz de Deleuze – o filósofo do grito

Mariana Cruz

Em 1980, 1986 e 1987, Deleuze ministrou uma série de aulas na Universidade de Vincennes sobre a filosofia de Leibniz, considerado por ele o “primeiro grande filósofo alemão”. Estas seriam as últimas aulas públicas de Deleuze e deram origem ao livro El Leibniz de Deleuze: Exasperación de la filosofia. A primeira delas data de 15 de abril de 1980; trata-se de uma introdução ao fantástico mundo de Leibniz, que, interpretado por Deleuze, torna-se mais fantástico ainda.

Já de início ele chama a atenção para algo estranho nos escritos de Leibniz: apesar de ele ter escrito livros volumosos, a parte mais interessante de seu pensamento se encontra em suas correspondências e em seus em pequenos artigos; pode-se dizer, sem contradição, que os grandes textos de Leibniz estão em seus pequenos escritos.

Antes, porém, de entrar no universo leibniziano, Deleuze procura definir o ofício do filósofo e, para tanto, faz uma analogia com outras profissões: um pintor cria linhas e cores, um músico cria melodias, o filósofo cria conceitos. Nenhuma dessas criações – linhas e cores, melodias, conceitos – estão dadas, o que nos são dados são fluxos. E, ao recortar e conectar tais fluxos, faz-se uma criação. Em seguida, Deleuze mostra uma diferença entre conceito e pensamento, dizendo que não se trata da mesma coisa, tanto assim que é possível pensar sem criar conceitos, enquanto o oposto já não procede.

O conceito é o fim de uma criação, “é um sistema de singularidades extraídas de um fluxo de pensamento” (Deleuze, 2006, p. 18). Assim, pode-se dizer que fazer filosofia é criar conceitos, e não uma busca da verdade, já que esta está subordinada a conceitos. O filósofo é, então, aquele que cria conceitos. Desse modo, as diversas filosofias conflitantes entre si existem, uma vez que cada uma delas está baseada em um sistema de conceitos que lhes serve de referência. Deleuze diz que conceitos “são formas espirituais” (2006, p. 19), mas são também coisas vivas, são modos de vida. Devido à tal vivacidade que os conceitos carregam consigo, Deleuze irá compará-los a gritos. Na opinião de Deleuze, um conceito criado é um grito. Como um grito?

Segundo ele, “ter necessidade de um conceito é ter necessidade de gritar” (2006, p. 20). Os filósofos que concordariam com tal comparação seriam, na concepção de Deleuze, os filósofos da paixão, do pathos, em oposição aos filósofos da razão, do logos. O que, porém, causa perplexidade em relação a Leibniz é que este, apesar de ser considerado um grande racionalista, um grande pensador da ordem, estranhamente, na construção de seu sistema filosófico baseado no rigor, foi capaz de criar os conceitos mais desordenados, complexos e arrebatadores da história da Filosofia.

Assim, Deleuze, faz uma segunda divisão entre os filósofos: de um lado estão os que criam conceitos de forma sóbria e contida como, por exemplo, Descartes e sua criação do cógito, do “penso logo existo” – cuja raiz pode ser encontrada em Santo Agostinho – e mais meia dúzia de conceitos criados por ele. Discretamente. Do outro lado estão os filósofos dos excessos, sem limites ou freios, que criam conceitos atrás de conceitos. Leibniz é um exemplar genuíno desse tipo. Quem sabe suas múltiplas atividades – matemático, físico, jurista, político – não o tenham influenciado nesses arroubos, nessa incessante criação de conceitos?

Segundo Deleuze, a filosofia de Leibniz tem diversos níveis, pois ele escreveu para vários tipos de leitores, de princesas a filósofos, e tentava se fazer entender por todos eles. Assim, ele coloca suas ideias de modo mais simples ou mais complexo de acordo com o grau de inteligência que julga ter seu interlocutor. Caso seja alguém que ele considere dono de uma inteligência mediana, seus escritos terão uma forma mais simples, mais superficial, de seu sistema; caso se trate de um interlocutor com inteligência mais apurada, apresenta seus escritos de forma mais complexa. Bertrand Russell discorda desse ponto de vista; de acordo com ele, Leibniz produziu duas filosofias: uma de fácil entendimento, para o consumo do público, e outra bastante complexa, profunda.

A despeito disso, nenhum desses diferentes níveis de apresentação da filosofia de Leibniz choca-se com outro, pois em última instância todos eles são formas de aproximação do absoluto. Tal diferenciação de níveis por vezes acarreta dificuldades no estudo de sua obra, uma vez que, para fazer uma investigação apropriada de seu pensamento, o comentador deve saber qual o nível de complexidade do texto investigado.

Tal exposição de Deleuze mostra os momentos iniciais de uma de suas famosas aulas. Ao mesmo tempo que discorre sobre diversas facetas da filosofia de Leibniz, Deleuze trata da filosofia de forma geral, bem como do próprio filosofar. Ele, assim como Leibniz, também parece gritar.

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. El Leibniz de Deleuze: Exasperación de La filosofia. Buenos Aires: Cactus, 2006.

Publicado em 2 de agosto de 2011

Publicado em 02 de agosto de 2011

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