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Talvez quebrar protocolo nas identidades mortíferas?
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
O grito nas sombras em um discurso histórico-socio-jurídico
Jürgen Habermas (1929), filósofo e sociólogo alemão, percebeu que o denominado Direito positivo, contribuição da visão científica do cartesianismo, era a garantia transcendental da validade jurídica, que denominou então de metassocial. Derivava daí um sistema jurídico separado da política que se tornaria o núcleo institucional de controle de todo um discurso jurídico.
A análise dos sistemas sociais, no campo da Administração também tem utilizado a categoria de mercado como pressuposto básico para a organização da vida social e individual. Era a velha teoria de delimitação dos sistemas sociais, como propunha A. Guerreiro Ramos e que tinha e tem como objetivo a formulação de um modelo de análise em que o mercado é considerado um domínio social necessário, porém limitado e regularizado, inclusive juridicamente, em alguns espaços de nossa geografia socioeconômica. E implica os seguintes postulados: sociedade constituída de diferentes domínios, nos quais o indivíduo se associa em diferentes tipos de atividades e o sistema de governo‚ que é capaz de formular e implementar políticas que loquem os recursos e tomem decisões necessárias para a interação ótima desses diferentes enclaves sociais. A teoria da organização social visa a transcender o pensamento conhecido como unidimensional, prevalecente nas análises anteriores dos sistemas sociais, através da apresentação de outros enclaves sociais alternativos.
A. Guerreiro Ramos propunha que, para a compreensão da sociedade, o chamado weberiano paradigma, conhecido como paraeconômico, se esquece de outros avanços analíticos, como a paralogia social, defendida por Lyotard, e a sociedade paralela, defendida por J. C. Schmitt, como também o que fala na economia Hernando de Sotto, Hezel Henderson, Viviane Forrester na sociologia economicista e contribuindo para a história social e sociocultural.
Nesse ciclo, se conseguem verificar fenômenos como a consolidação da hegemonia mundial estadunidense, a divisão do globo em dois sistemas concorrentes conhecidos como a Guerra Fria e a industrialização retardatária. A arrancada das economias capitalistas do Ocidente em direção à (re)estruturação produtiva moderna não atentaria apenas contra os fundamentos do Estado do Bem-Estar, pois as novas necessidades do capital demandavam um recrudescimento da velha prática de exploração econômica dos países da periferia.
No tipo de sociedade idealizada pelo paradigma anterior, existem setores para atualização do indivíduo livre de imposições sociais. Então sua geografia social é terra de ninguém? Exemplo disso é mostrado no filme Germinal. Nele os operários enquadravam-se na ordem geral do sistema organizacional e promoviam certa dinâmica no modo de produção vigente. O sistema chegava aos seus estertores, principalmente quando ultrapassados os seus limites ou quando as vidas cotidianas das famílias ficaram em desalinho, onde quase sempre estiveram por razões variadas, como instabilidade emocional ou pela empregabilidade, a qual agora, no limiar de se encontrar excluída de seu tempo, se envolve em uma luta heroica por seu espaço, que precisa de decodificação, num confronto entre o império da lei e a lei do império que o final do século XIX fora marcado pela saturação de vários sistemas socioculturais, o pós-escravismo, o pós-abolicionismo etc., todos buscando a mais efetiva inclusão social, a cidadã. Em resumo, o espaço criado onde o indivíduo pode agir apropriadamente, em vez de meramente se comportar de forma a preencher as expectativas da realidade social dominada pela ideologia de mercado.
Para Freire-Marreco & Myres, "uma compreensão total da organização social de qualquer povo só pode ser possível depois de um estudo completo de suas instituições e da função de seus agrupamentos sociais" (1912). Isso é vital!
Em R. H. Lowie o estudo da organização social trata principalmente do agrupamento significativo de indivíduos (1914). Malinoviski, na Antropologia, diz que o modo pelo qual os membros de uma sociedade organizam a si mesmos e a seu ambiente material para satisfazerem suas necessidades biológicas, psicológicas e sociais pode compor um tudo constatável. Já para Max Weber, com o seu paraeconômico, existe um sistema de atividades contínuas e intencionais de um tipo específico que tem conexão com grupos corporados e sua administração. Para Redcliffe-Brown, comparando estrutura social e organização social, podemos concluir que a primeira era um sistema de pessoas que ocupavam posições umas em relação às outras e diretamente ligadas a uma organização social, ou a um sistema de papéis, cuja interpretação era socialmente controlada.
Para a Sociologia e a História, a organização social designa tanto uma estrutura quanto um processo mesmo. Como estrutura, organização‚ qualquer padrão estável de inter-relações de partes componentes, que possui características não manifestas nas partes consideradas isoladamente e, inclusive, é isso que lhe dá o sentido total.
Para Novaes, a “organização” é usada corretamente em dois sentidos. Primeiro, ao estar ligada à ideia de método, de ordem, de sistematização, é o antônimo de desordem. Em segundo, designa uma entidade em que se engajam pessoas para um trabalho coordenado. É sob esse aspecto que se deve entender a teoria das organizações formais. Mas como seriam lidas nesse mundializado cenário em que nos encontramos em um país pós-escravista, que vivencia um quadro de violências desmedidas em áreas de favelas e que afeta a ordem estabelecida (Cortezão, 2003)?
Ao contrário do que imaginavam no século XIX e antes da Primeira Guerra Mundial, partindo de um preconceito evolucionista, categorias conservam seu caráter específico ao longo do processo de industrialização sem necessariamente fundirem-se umas às outras. No século XIX, prognosticou-se o desaparecimento, na agricultura e na indústria, das pequenas unidades, que seriam absorvidas pelas grandes organizações. Nesse cenário cresceram mais ainda coisas esdrúxulas, como o tráfico de drogas. Coisas do capitalismo diante das dificuldades de poder multiplicar e multiplicar-se no processo de acumulação. No mundo da exclusão social (Forrester, 1997) constataremos isso! Vemos que se conseguiu desenfrear de certo paralelismo social (Schmitt, 1990) urbano, que se manteve pela crescente mercadologia do consumismo desenfreado e alucinante do vício. Levando de roldão alguns do mundo da pós-escravidão.
Novaes dá ênfase ao trabalho livre não organizado, que exige uma estrutura social diversa do que se chama de sociedade organizacional, voltada para a pessoa e a comunidade. A tarefa de analisar a complexa História das Organizações no século XX é bastante desafiador, onde coisas como o tribalismo tornou-se a leitura mais acertada da sociedade. O termo escolha, ao que se refere o paradigma, difere inteiramente do sentido dado a si mesmo pelas teorias políticas de tomada de decisões. O paradigma econômico proposto então supõe que o mercado, um enclave em uma realidade social multicônica, como na História das Organizações, supõe também que o indivíduo, nesse espaço social, não se comporte como um maximizador das relações de fins escassos, postulado pela ideologia de mercado, mas que tente ordenar sua existência de acordo com suas necessidades de atualização pessoal.
É de Jürgen Habermas a lembrança de que o Direito antecede as formas organizadas de domínio estatal e/ou político. O Direito sancionado pelo Estado e o poder estatal organizado juridicamente surgem simultaneamente como uma forma de dominação política. O poder estatal e o Direito estatal constituem-se reciprocamente. No Brasil temos áreas em que esse poder não é ouvido: onde se conhece o poder paralelo, que nasce à revelia, a partir do vício e do poderio econômico. Ele propõe a elaboração de uma (re)construção crítica do papel do Direito moderno nas diversas esferas da ação social, em seus grandes campos temáticos, que contribuem para as questões relativas às teorias críticas do Direito, como a crítica ao projeto desenvolvido por Max Weber, ao abordar a modernidade e, suas consequências para os discursos jurídicos. As propostas desenvolvidas por Habermas se referiam aos postulados críticos e reflexivos elaborados com vista à tradição do discurso jurídico da modernidade na história social.
Max Weber acabou elaborando pressupostos de Sociologia estreitamente vinculados aos princípios das Ciências Humanas, às formas de constituição da modernidade: o capitalismo, o Direito, a economia, a religião etc. foram temas fundamentais da obra weberiana. As ideias e os limites daí resultantes auxiliaram Habermas a desenvolver seus estudos sobre o Direito e seu projeto da modernidade.
Em um mundo da infocomplexidade nas comunicações, Luiz Alberto de Oliveira (2001) chama a atenção para a mínima movimentação física de corpos, apenas com o fluir de correntes, por circuitos eletrônicos, mas onde o transporte de sinais, dados, imagens, palavras é máximo. O motor informacional opera aumentando o número de relações entre as fontes de informação e reduzindo a demora do contado. Assim, seu efeito é de amplificar e intensificar as trocas de informações entre as secretarias envolvidas no plano-síntese, até dos fantásticos CIEP que defendemos e que agora propomos existindo em rede. Poderia se dar plenamente, prevenindo riscos, antecipando movimentos, adiantando ações e agendas integrada e transdisciplinarmente. Poderíamos propor já a infovelocidade que possa dar às conexões intersecretarias de governo, seguidas e operacionalizadas pelos infobjetos, que seriam programas e aparelhos, softwares e hardwares impregnados de caracteres cognitivos, dantes exclusivos dos sujeitos. Trata-se de amplificação de processos intensivos (tempo). Não deslocaria corpos, mas compactaria relações. Não aumentaria movimentos, mas incrementaria ritmos. Seriam todos elementos que, juntos, configurariam uma nova potência de mudar o mundo, pelo menos o mundo humano, uma vez que necessariamente todos seriam levados a se converter em uma forma dialogal mais ativa sobre os globalismos locais e os localismos globais. Seriam, elementos capazes de exercer o que Maquiavel, um dos máximos pensadores sobre a natureza do poder, chamou de mudar o mundo de virtú. Os ciberespaços aparecem e se revelam como domínios constituídos por entidades e ações puramente informacionais, conceitualmente análogos a um espaço físico onde a interconectividade é total de seres humanos por computadores e telecomunicações, sem levar em conta a geografia física.
Em um mundo revolto como o nosso, a sexualidade então se transformaria também em textualidade e dispensaria o corpo como um novo design ou desenho modelar da comportamentalidade moderna, mexendo com o volitivo das individualidades, alterando-lhes as preferências. Como afirma Sherry Turkle (1997, p. 14), “entre os que vivem uma experiência sexual telemática, alguns falam no sexo, mas, o essencial é o mental”. Levam para outro lugar, a fim de evitar o controle dos guias e/ou monitores.
A recente revolução tecnológica tem sido um fato da maior relevância no cenário internacional moderno. É necessária a analise das revoluções tecnológicas na sua parte econômica em termos da lei do valor, como afirmava Samir Amim. A produção é o fruto do trabalho social que agora vive sob a presença concorrencial do cérebro de obra, e o progresso da sua produtividade que se manifesta por meio da redução da quantidade de trabalho social total necessário para a produção de uma unidade de valor de uso.
As revoluções tecnológicas, como a da máquina a vapor e das indústrias têxteis, processadas nas passagens dos séculos XVII-XVIII e início do XIX, a segunda, a do ferro, carvão e dos caminhos de ferro, das locomotivas, e a terceira, a da eletricidade, do petróleo, do automóvel e do avião, em princípios do século XX, traduziam-se como uma redução da quantidade de trabalho social total. E inclusive para a produção dos valores de uso como querem os economistas. Mas traduziam-se também no aumento da proporção que representava a quantidade de trabalho indireto atribuído à produção dos meios do produzido em relação à de trabalho direto, atribuído à produção final, de difícil mensuração.
A produtividade do trabalho social duplicaria quando se passava de um a dois, à custa da intensificação capitalista das tecnologias adotadas. As relações de produção capitalistas implicavam, obviamente, que a entrada na produção estaria reservada aos que possuíssem capital suficiente para instalar os equipamentos necessários.
Aqui se tinha uma escravaria plena, a qual era a tônica inclusive no âmbito do trabalho, onde também a tecnologia impunha uma lenta produtividade, comparativamente ao que se tinha no cenário mundial. Essa escravaria era agravada pelas fugas dos trabalhadores escravizados para formações sociais e socioculturais quilombolas, que atormentavam a ordem senhorial estabelecida. O resultado dessa complexa roupagem do capital só poderia reverberar no que se denominou pós-escravidão.
Tudo isso acabava resultando em sérios ônus, sempre maiores para os investidores/proprietários, como os senhores de engenho, maquiados e mimetizados hoje em muitos empresários do nosso moderno Brasil. Principalmente, porque eram vividos por aqui os estertores do século XIX e o início do século XX, à beira de um século que se configuraria bastante convulsionado.
Assim, de maneira absolutamente centrípeta, de fora para dentro, o aumento da intensidade capitalista proporcionou ao capital um domínio crescente sobre os trabalhadores, como ainda proporciona no decorrer do século XXI. Principalmente sobre os desprovidos de outro meio de vida que não fosse a venda da sua força de trabalho, como os oriundos da nossa velha escravidão. Eles eram incapazes e/ou incapacitados de produzir por si mesmos.
Assim, a inversão do movimento através do qual se manifestara o progresso científico e tecnológico tendia a abolir o poder do capital, abrindo o acesso à produção. Há pelo menos duas razões para que não o seja em absoluto. Talvez por causa da questão “gênero, cor & qualidade”, a qual nos leva a discutir internamente outras questões como a socioculturalidade moderna…, que se vê envolta pelo enfrentamento de coisas como globalização e que precisa ser urgentemente transformada. Ela nos traz sinais insistentes de coisas culturais dos velhos quilombos e seus quilombolas, que habitavam um mundo de regras do diferente, marcado por um capitalismo diferenciado no jogo das trocas.
O mundo hoje é marcado pela velocidade tecnológica do computador, que Lúcio Kowarik denominou de traquitana diabólica, e, a sua parceira, a via internet, a caminho da globalização. As revoluções tecnológicas sucessivas das Revoluções Industriais, incluída a que está em curso hoje, que chamamos mimeticamente de tecnológica implicaram uma crescente centralização do capital. A unidade mais eficaz para a produção de numerosos valores de uso lhe foi sempre chave. Pode-se afirmar que é ela que centraliza uma maior quantidade de produção de “efetivos valores”. Exemplificando, poderíamos dizer que uma fábrica concebida para produzir dez automóveis ou dez computadores por ano não é competitiva. Mas um advogado, um médico ou um pequeno gabinete não são menos eficazes que uma grande empresa que opera nesses setores da atividade. Por isso, mesmo que baixasse sensivelmente a intensidade capitalista, a entrada na produção continuaria reservada aos que dispunham de capital sempre considerável para adiantar para a compra de equipamentos.
A continuação da revolução tecnológica exige, como exigia, investimentos de investigação cada vez mais significativos. Um trabalhador isolado ou um pequeno coletivo de trabalhadores, mesmo que fossem bem qualificados, cérebros de obras, não estavam em condições de levar a efeito tais investigações. Era urgente então a vantagem dos centros capazes de concentrar capacidades de investigação, através de pesquisas, e outros que-tais, no ex-Brasil/Brésil também republicano ao atual Brasil/Brazil também pós-escravista, mobilizando um grande número deles, como o Estado & grandes empresas, que se associavam definitivamente. O quadro muda, então, radicalmente junto com a troca. Era então preciso novo quadro de regras, normas, leis, etc. objetivamente, e ingressávamos em um desenho em que o novo Império, a ONU, se agigantava na historicidade do seu tempo e diante do novo arranjo, que trazia o cenário político-econômico internacional, como afirmava Hardt e Negri (2000). Era o início da globalização. Esse elemento constitutivo do monopólio dos proprietários, face à indigência dos outros os "proletários", exigia uma proporção do investimento total dos capitais necessária para a entrada na produção muito mais forte do que o era há cinquenta anos. É posto então em marcha o reforço desse monopólio de uma maneira cada vez mais sistemática por parte das legislações, chamadas protetoras da propriedade intelectual e industrial, destinadas de fato a superproteger os oligopólios de produção que seriam como são urgentes.
Deu-se então a evolução das revoluções tecnológicas articuladas com a da qualificação do trabalho social exigido para a produção que abrangiam, como abrangem, que era o que defendemos aqui, a troca da velha mão de obra, para o cérebro de obra! As formas anteriores da produção não exigiam nenhuma qualificação particular à maioria dos trabalhadores, aos operários das linhas de montagem, que foram, então, desqualificados. As formas novas agora são frequentemente muito mais exigentes. Pode-se dizer que, posto que o trabalhador antes tivesse maior qualificação, desfrutaria de maior liberdade face ao capital que o emprega? E que se beneficia, ao menos, de um poder de negociação melhor? Sobre esse tema existem muitas ilusões, ainda que se tenha que dissipar. Sabemos que nos segmentos particulares, conjunturalmente, a força de trabalho qualificada, agora o cérebro de obra, chega a conseguir marcar pontos significativos e os beneficiários dessa situação podem aproveitar a sua capacidade de negociar.
Empregados de empresas modernas, ou trabalhadores mesmo independentes, podem estar subempregados em múltiplas ocasiões, vivendo de uma subcapitalização (De Sotto, 2001) vil. Mas continuam, apesar disso, a depender, na sua esmagadora maioria, de quem os emprega.
O frequente processo de debilitação da intensidade capitalista nas formas modernas de produção permite a melhoria da taxa de lucro, mantendo iguais as demais condições. Estendido à massa da população, quer esteja estagnada, quer em crescimento lento, o lucro tende a açambarcar uma proporção crescente dos rendimentos líquidos. A tendência do sistema para produzir um excedente que, a seguir, não pode ser absorvido por investimentos dedicados à ampliação e aprofundamento do sistema produtivo é forte no capitalismo moderno dos então conhecidos oligopólios, como mostrava Paul Sweezy. Esse desequilíbrio então global está na origem da crise estrutural do capitalismo neoliberal contemporâneo, ou seja, da “estagnação relativa” que o caracteriza na história social e socioeconômica do tempo presente e que leva de roldão países ou economias como um todo, principalmente as periféricas, que necessitavam garimpar empréstimos aos órgãos de fomento e através da ONU, OEA etc.
Esse excedente pode ser absorvido de diferentes maneiras: pode ser aplicado em despesas suplementares de esbanjamento social, como a manutenção de polícias privadas, associadas à crescente desigualdade na repartição dos rendimentos. Mas poderia também sê-lo através de políticas de gastos sociais úteis, como educação e saúde, que constituem formas indiretas de reforço dos rendimentos dos trabalhadores, além de garantir espaço de locação de trabalho regular para os desprovidos e desassistidos, que permitem, aliás, o relançamento da procura e da produção. Ou por meio dos gastos militares, que foi opção dos EUA, que poderia dar certo em outros países que acompanharam sua reluzente carruagem mimeticamente. Acrescentamos ainda que as formas da globalização postas em marcha pelo neoliberalismo dominante da época permitem tornar mais profundas as assimetrias internacionais graves, no acesso de uns e de outros ao excedente em questão. A esse respeito, temos a atual conjuntura política marcada pelo breve interregno da militarização da globalização e pela ofensiva hegemonista de Washington, que absorveria boa proporção do excedente gerado pelos demais para o aplicar num reforço dos seus gastos militares (Amin, 2003, p. 129).
Uma revolução tecnológica transforma sempre as formas concretas de organização do trabalho, como vemos hoje com o cérebro de obras, que faz qualquer trabalho. Mas a revolução contemporânea não abriu um campo amplo à organização de redes horizontais de trabalhadores capazes para se emanciparem, ao menos em parte, das exigências do capital dominante. As situações desse tipo são completamente marginais, paralelas, pertencem ao espaço da exclusão social. Pelo contrário, a evolução dominante dos mercados de trabalho é caracterizada por um fracionamento reforçado, que dá ao capital e seu jogo uma margem de manobra onde ele sabe obter benefícios. A pauperização produzida por essa evolução se expressa por meio da crescente proporção de trabalhadores não estabilizados, desempregados, informais, (a)formais ou mesmo excluídos.
O conjunto dos fenômenos que aqui tratamos, associados à revolução tecnológica contemporânea, interpela quem se coloque a questão do futuro do capitalismo e do que implica a lógica dos seus desdobramentos para os trabalhadores e os povos sem geral. Parece-nos que essa evolução acaba por colocar em causa a legitimidade do capitalismo e do sistema social civilizado e eficazmente presente. O capitalismo obtinha a sua legitimidade do fato de que o crescimento da produção exige investimentos de capital cada vez mais maciços, que somente os capitalistas podiam reunir. Estes, além disso, assumiam um risco cuja importância a teoria convencional sempre exagerou. Davam empregos a uma mão de obra pouco qualificada e, reiteramos, que agora vive tempos do cérebro de obra efetivamente, aceitando com isso, a ideia de que os trabalhadores não eram capazes, por si mesmos, de assegurar a eficácia da produção. Quando os trabalhadores organizados em sindicatos de massas conseguiram se impor ao capital, os salários beneficiaram-se de um crescimento igual ao da produtividade social do trabalho, e a legitimidade do sistema saiu reforçada. Mas ainda exige medidas urgentes para nascer definitivamente o cérebro de obra que defendemos aqui e que representa uma questão basicamente de educação (Paulston, 1999, p. 437), que tanto esse autor defende em seu trabalho.
O tempo do cérebro de obras
Defendemos a terminologia cérebro de obra por ser o mundo da infomotricidade e da infotecnologia na glocalização, característico de um novo formato de trabalhador diferenciado, que começa a surgir ao lado da mão de obra no cenário da revolução tecnológica recente, da nipônica para cá. Notamos que cada vez é maior a exigência mercadológica competitiva desse mesmo mundo. Daí o preparo da mão de obra oferecida antes, a mão de obra qualificada, que denominamos hoje de cérebro de obra. A química para o preparo desse novo profissional no novo tempo e a sua história do tempo presente nos grandes centros urbanos modernos é mais exigente. Com comprovação de acesso já feito a novo perfil de sua indústria, a universidade constitui a mais verdadeira e real indústria dos tempos modernos. Pois é nela que se forja e se forma esse trabalhador urbano, na maioria dos casos. Lá o formando é cada vez mais é exigido e levado a produzir efetivamente. Ou seja, parece que ele deve estar mais próximo da poiese no ato de produzir, descartando-se cada vez mais a oportunista mimese (Maffesoli, 1990). É mais valorizado, inclusive quando realmente produz um paper ao final do curso de graduação que lhe dá destaque. Ou é seu diferencial.
Exige-se dos envolvidos mais felling em tudo e para tudo. A questão continua sendo educar. Os envolvidos em seu complexo métier se veem obrigados a qualificar-se cada vez mais todo o tempo, pois trata-se de uma questão até de sobrevivência na competitividade.
Maior quantidade de trabalhadores agora está mais qualificada e, com isso, mais apta a organizar eficazmente a produção por si mesma. Mas simultaneamente apresenta-se debilitada também face aos patrões como afirmara Amin (2003, p. 129). Os investimentos requeridos para iniciar uma produção são menos importantes e estariam ao alcance de um possível coletivo se as instituições do Estado e da economia estivessem concebidas para tornar possível a realização dos projetos que eram e ainda são capazes de formular. Dito de outra forma, o capitalismo, como forma de organização social, possivelmente teve o seu tempo histórico social e sociocultural. Outras formas parecem em melhores condições de assegurar a eficácia e a redução do desperdício, a justiça social e a equidade internacional. Mas as relações de produção capitalistas, com seu mais recente rebento no fim do século XX, as conhecidas relações imperialistas, sempre dominadoras e dominantes, opuseram-se ainda aos avanços nas direções necessárias para superação do sistema, pois opunham-se a isso com violência redobrada, cujas reverberações ainda são notadas no tempo presente.
A análise de Amin põe a tônica nas contradições do sistema e na sua agudização. Esse enfoque não é o que nos propõem os textos dominantes referentes à revolução tecnológica. Esta que ignorou logo à partida a lei do valor, substituindo-a pelo conceito superficial de competitividade nos mercados. Mas esse discurso da economia convencional é perfeitamente tautológico, porque a única produtividade que tem sentido é a do trabalho social, que por definição ignora até os efeitos da dominação do capital oligopolístico. Todos os autores criticados até agora se inseriram na denominada corrente pós-modernista, como queriam Castells (1999) e outros e se coíbem de abordar essas questões de método, fundamentais, aderindo à economia convencional, sem pôr em dúvida.
Além disso, o método da pós-modernidade defendido por Castells e Negri pressupunha que a evolução do sistema, devido à revolução tecnológica já abolia classes e nações ou estava em vias de fazê-lo. Já se fala até da existência de uma sociedade paralela como uma nova maneira de abordar, utilizando esse categorial sistêmico, e até de um poder paralelo (Schmitt, 1990) e/ou de uma paralogia social e sociocultural (Lyotard, 1998), e já fez do indivíduo o sujeito direto e principal da história.
Por si próprio, o capitalismo não engendra uma sociedade melhor e, sim, possivelmente, a mais pura barbárie. Desmente o realismo da análise a ofensiva generalizada dos poderes a serviço do capital dominante e a militarização do antigo imperialismo, como ainda se vê em claros exemplos em sua reverberação pelo planeta. Apesar da gritante e inaceitável lógica inversa de coisas, como a nossa difícil pós-escravidão, tudo com a lógica dos desdobramentos do próprio sistema, que se mostra também mutável, inclusive on-line. Queremos dar valor a presença da sombra do concreto, que é o emocional-histórico-social e sociocultural e suas respectivas razões.
Rejeitar liminarmente qualquer propensão dogmática à comprovação da infalibilidade das formulações marxistas talvez permita nos beneficiarmos da confrontação entre as interpretações do fundador da filosofia da práxis e as diferentes leituras desenvolvidas na atualidade. O mundo, agora, é da revolução da tecnologia e do capital financeiro. As teorias de Marx foram construídas no período industrial, marcado pela maquinofatura, e o produzir era centrado no valor da mão de obra. Há muito que o mundo industrial clama pelo cérebro de obra; basta ver que a terceira Revolução Industrial que atravessamos, a tecnológica, acena para um mundo novo, ou um admirável mundo novo, marcado pela infomotricidade, a infotecnologia etc. Obviamente que se deve trocar de ferramentas de análise para se contar sua história.
É sobretudo na análise do processo de constituição histórico-genética dessa nova fase do desenvolvimento do capitalismo mundial que poderemos verificar a pertinência ou não da reivindicação do legado teórico-político do pensador de Trier. Do esgotamento do ciclo econômico do pós-guerra e do choque do petróleo para cá, tudo se alterou. A (re)estruturação produtiva e a crise do Welfare State certamente levou-nos a um novo horizonte.
Por maior que seja a dissensão entre os estudiosos da história econômica do século XX acerca da caracterização do momento presente do desenvolvimento econômico mundial, existe certo consenso na consideração de que vivemos uma época subsequente ao ciclo de crescimento econômico internacional, inaugurado com a reconstrução do pós-guerra. Esse ciclo, no bojo do qual verificaram-se fenômenos como a consolidação da hegemonia estadunidense no mundo, a divisão do globo em dois sistemas concorrentes, as economias de mercado do Ocidente e as economias de comando do bloco soviético na velha fase da Guerra Fria, a recuperação econômica europeia, a ascensão japonesa e a industrialização retardatária e dependente da América Latina, por ocasião dos dois choques internacionais dos preços do petróleo na década de 70 mudaram bastante a trajetória de tudo, complexificando as formas de diálogo. No Brasil, viviam-se tempos de uma pós-abolição ou uma pós-escravidão ainda mal definida e que se reflete principalmente no mundo do trabalho, o que exige que a história pesquise mais o desenho do nosso social, para que não cometamos descalabros.
Quem tem medo da globalização? Ela está pondo em confronto, fazendo colidir, diferentes perfis de mundos diferentes do trabalho na história sociocultural. Diferente da atitude adotada pelos demiurgos, como diz Alan Minc (1993), tem adotado, perante o fenômeno da globalização, comportamentos que conflitam diametralmente com aqueles assumidos por Marx e Engels ante os processos de unificação dos mercados e internacionalização da economia.
Estamos vivendo tempos da primazia da tecnologia. Tempos da negação in totum do conjunto de valores associados ao processo de globalização, como o livre comércio, a internacionalização da produção e do consumo e a intensificação do intercâmbio internacional, tempos da infovelocidade em tempo real. É possível que tal reversão de atitudes em relação aos dois grandes teóricos tenha se operado sob influência dos prognósticos leninistas acerca dos horizontes do capitalismo na época do velho imperialismo.
A principal ruptura teórica verificada no estudo de Lênin em relação às visões de Marx e Engels diz respeito à mudança de atitudes quanto às possibilidades criadoras do capitalismo, com suas sucessivas trocas de pele. Se para eles a hoje conhecida mundialização do modo de produção capitalista promovia o progresso material, desenvolvia também as forças produtivas e universalizava as conquistas da ciência, sob o olhar leninista o sistema se convertia em um ente cômodo e parasitário, em estado de decomposição. Incapaz, portanto, de acelerar os avanços históricos, tendo se constituído em seu principal obstáculo. A história mundial do século XX gerou o desmentido das previsões do leninismo, não obstante suas apreciações acerca do aprofundamento das contradições do MPC, no período de dominação dos monopólios, mostrem-se claramente pertinentes.
Ocorre que os gigantes do pensamento Marx, Engels e Lênin pertenceram a essa categoria de pessoas que, mesmo quando equivocadas, conseguiram legar elementos analiticamente inspiradores. O mesmo Lênin, que se equivocava com respeito ao futuro do capitalismo, legou também um exemplo de busca do conhecimento da realidade condicionada pela perspectiva da ação política revolucionária. O empreendimento desse esforço combinava o aperfeiçoamento do domínio do método histórico dialético de compreensão do real no mesmo ritmo com o estudo detalhado e sistemático da realidade concreta.
Se, no caso de Lênin, o estudo do método o conduzira ao reencontro com a obra de Hegel, nos dias de hoje tal passo não pode dispensar o reestudo da obra de Marx. Já no que concerne ao exame sistemático dos processos em curso, atualiza-se a “demanda” por uma apreciação a mais objetiva possível para além dos preconceitos e da mistificação ideológica de tempos passados. Isso é um desafio ao olhar!
Identificar as possibilidades positivas no processo de globalização não significa abdicar da abordagem crítica do fenômeno nem da denúncia de suas atuais implicações perniciosas, como o desemprego estrutural, o reforço da dependência econômica dos países periféricos, a face do Brasil frente às potências centrais, a concentração de riqueza a nível mundial. Inversamente, trata-se de combater as falsificações produzidas pela homilia neoliberal do passado recente, e para tal somente um olhar para uma efetiva história do tempo presente. Tal concepção, verdadeira ideologia do grande capital neste fim de século XX e início do XXI, se propõe a conduzir o processo de globalização, acentuando seus aspectos absolutamente excludentes e antipopulares, em detrimento das forças do mundo do trabalho e da cultura.
Assumir criticamente a globalização, aceitando participar ativamente dela, disputando a condução do processo ao neoliberalismo, significa realizar um ajuste de contas com a reprovação romântica do movimento do capital, o elogio dos modelos de "desenvolvimento econômico autárquico e endógeno" e o apego aos particularismos. Pois agora temos um imbricamento que se revela pelos estranhos diálogos entre os globalismos locais e os localismos globais (Cortezão, 2003). Isso consiste em aproveitar as possibilidades que o projeto engendra, do ponto de vista do avanço técnico, da redução das distâncias entre os povos do mundo e da universalização de valores políticos e sociais avançados na modernidade. Se para Marx a unificação do mundo, iniciada pela burguesia, seria concluída pela classe operária, podemos investir na perspectiva de que a globalização, até aqui hegemonizada e conduzida pelo neoliberalismo em benefício exclusivo do grande capital, pode ser conquistada e revertida em benefício dos povos do planeta. É fundamental entender que a globalização não deve ser compreendida como uma guerra perdida e sim como um novo ambiente, ou mesmo um cenário complexo, no qual as batalhas futuras pela emancipação humana terão trajetória e desenvolvimento. No Brasil, a escravidão somada à pós-escravidão, ainda mal compreendida, mas que o professor sulista Décio Freitas, já antevendo no que resultaria tal situação, chamava de desescravização (1999, 2005), tem prioridade em um cenário pós-escravista.
A nossa pós-escravidão compõe a educação das diferenças. É fator decisório para um enfrentamento de um mundo complexo e globalizado. Isso resultava na aglomeração do desenvolvimento econômico por aqui e em países mais atrasados, que passavam a manter gaps com relação aos mais desenvolvidos desde o século passado, principalmente após a fase do keynesianismo no mundo. Tanto que não víamos que nosso pós-escravismo desenhava-se nas zonas cinzentas de Alan Minc; aqui as favelas; nos EUA, os guetos etc. Todos ao redor das cidades e algumas até em seu interior, nos bairros pobres. O Rio mergulharia nisso no século XX, maquiando e poluindo seu social e sociocultural. O seu multiplicar teria se acelerado nos tempos da ditadura militar e sua economia planejada.
A nossa sociedade da pós-escravatura apresentou figuras respeitáveis: padre Cícero Romão Batista, Antônio Conselheiro, que defenderam os despossuídos nordestinos. Os beatos: Severino Tavares, José Lourenço, no Vale do Cariri; o beato José Senhorio na Bahia, com a fundação da comunidade Pau de Colher, dava uma presença histórica no início da fase republicana do Brasil. Mas povoavam o pensamento da burguesia também intelectualizada uma preocupação de imputar-lhe coloridos de esquerda no campo ideológico, uma internacionalização propagandista ideologizada como o comunismo. Era o grito nas sombras daqueles excluídos sociais e socioculturais. E provocando uma resistência também pós-escravista na Serra do Araripe.
As formas novas agora são inexoravelmente exigentes. Se o trabalhador antes estivesse, como se exige agora, com mais qualificação, desfrutaria de maior liberdade face ao capital que o emprega? Nos segmentos particulares conjunturalmente a força de trabalho qualificada, agora o cérebro de obra, chega a conseguir marcar pontos significativos, e os beneficiários dessa situação podem aproveitar a sua capacidade de negociar, mas os poderes públicos perseguem o objetivo de poieticamente criar a mais longo prazo um excedente de oferta de trabalho. Empregados de empresas modernas ou trabalhadores independentes podem estar subempregados em atividades produtivas da subcapitalização. Mas continuam, apesar disso, a depender, na sua esmagadora maioria, de quem os emprega.
O frequente processo de debilitação da intensidade capitalista nas formas modernas de produção permite a melhoria da taxa de lucro, e são visíveis nos centros urbanos modernos, mantendo iguais as demais condições. Estendido à massa da população, quer esteja estagnada, quer em crescimento lento, o lucro tende a açambarcar uma proporção crescente dos rendimentos líquidos. O que também acontece na educação: a tendência do sistema para produzir um excedente que, a seguir, não pode ser absorvido por investimentos dedicados à ampliação e aprofundamento do sistema produtivo. Uma tendência forte do capitalismo moderno dos conhecidos e também já extemporâneos oligopólios, como mostrava Paul Sweezy, vê-se reforçada pela nova revolução tecnológica. Esse desequilíbrio global esteve na origem da crise estrutural do capitalismo neoliberal contemporâneo, ou seja, na estagnação relativa que o caracteriza.
Esse excedente pode ser absorvido de diferentes maneiras, pode ser aplicado em despesas suplementares de esbanjamento social, como a manutenção de polícias privadas, associadas à crescente desigualdade na repartição dos rendimentos. Mas poderia também sê-lo através de políticas de gastos sociais úteis, como a educação, e saúde, que constituem formas indiretas de reforço dos rendimentos dos trabalhadores. E que permitem, aliás, o relançamento da procura e da produção, ou por meio dos gastos militares, a opção dos EUA.
Uma revolução tecnológica transforma as formas concretas de organização de qualquer trabalho e, por conseguinte, a estrutura das classes dominadas. Mas a revolução contemporânea não abriu um campo amplo à organização de redes horizontais de trabalhadores capazes, com isso, de se emancipar das exigências do capital dominante. As situações desse tipo são completamente marginais. Pelo contrário, a evolução dominante dos mercados de trabalho é caracterizada por um fracionamento reforçado, que dá ao capital uma margem de manobra, em que sabe obter benefícios. A pauperização produzida por essa evolução se expressa por meio da crescente proporção de trabalhadores não estabilizados, desempregados, informais.
Os trabalhadores organizados em sindicatos de massas, que correspondem à concentração em grandes unidades de produção, conseguiram se impor ao capital e ao seu jogo de capitalismo, uma repartição estabilizada dos rendimentos líquidos, os salários que beneficiavam, como beneficiam ainda um crescimento igual ao da produtividade social do trabalho, e a conjuntura internacional favoreceu esse compromisso social por temor à competição comunista, a legitimidade do sistema saiu reforçada.
Maior quantidade de trabalhadores está mais qualificada hoje. Contudo, simultaneamente está debilitada face aos patrões como afirmava Samir Amin. Os investimentos requeridos para iniciar uma produção são menos importantes e estariam ao alcance de um possível coletivo se as instituições do Estado, incluindo o setor da economia, tivessem sido concebidas para tornar possível a realização dos projetos que eram e ainda são capazes de formular. Dito doutra forma, o capitalismo como forma de organização social teve o seu tempo histórico e sociocultural. Outras formas, talvez as socialistas, pareciam em melhores condições de assegurar ao mesmo tempo a eficácia e a redução do desperdício. Mas, as relações de produção capitalistas, sempre dominantes, opõem-se ainda aos avanços nas direções necessárias para uma superação do próprio capitalismo.
Este retorno à ideologia plena do liberalismo, segundo Amin, no discurso permanente do capitalismo sobre si mesmo, constitui precisamente o objeto central da maioria das críticas modernas, todas expressas em termos de votos piedosos e de formulações "politically correct" que particularmente Castells se preocupou em não superar. Essas visões evolucionistas, dirigidas pelo economicismo e pelo tecnologismo surpreendente da ideologia dominante que pressupõe Amin quando diz que o capitalismo se superará pacificamente por si mesmo!
Um país como o Brasil onde os 10% mais ricos detinham 46% da renda (O Globo, 10/11/2006) levaria a perguntar: quais razões nos impedem de transformar tudo agora? Qual a razão de nos mantermos atrelados a velhos costumes que hoje só nos servem para acobertar velhas doenças sociais e socioculturais? Que história social é essa que nos orgulha tanto, se sob seu manto se esconde algo tão improdutivo, retrógrado, ineficiente e profundamente antieducativo, como a já propalada fábrica de exclusão social? Onde estará a cidadania em nosso meio? É mais fácil educar para o crime ou para a civilização? Uma coisa é clara, cidadania se ensina, e preferencialmente nas escolas. Prender, punir são tarefas emergenciais, últimas. Como denominou Thomas Kuhn, a revolução científica contemporânea motivou toda uma nova compreensão acerca da realidade física básica, acarretando a instalação de uma imagem renovada de mundo com marca muito original: a imagem da complexidade (1987), ou seja, a infocomplexidade. Temos que ter claro o fato de que lidamos hoje com alguns eficientes suplantadores de sólidos conceitos, como os de ordem e desordem (Novaes, 2002, p. 200).
Hoje lidamos com algo mais singular e identitário em nossas vidas, como a auto-organização, a qual se processa a partir do influxo caótico de estímulos dos ambientes endógenos e exógenos do sistema social em que vivemos (Atlan, 1996; Popper, 2002). Por ter vivido uma ditadura, a população oprimida sentia a força da propriedade do poder de punição que o Estado sempre fazia questão de ostentar. Por ser um governo militar, ele dificilmente conseguia assumir caráter popular. Nas universidades, havia a tutela de certa ordem, mas não conseguia ser ideia de universidade, tampouco uma universidade de ideias, Pois a cultura do medo marcava relações entre docentes e discentes, em um ambiente manchado pela violência, controle, coerção e ameaças constantes.
A educação se encontrava diante de um imenso desafio: (re)construção e/ou construção? Onde a cidadania, que representa a qualidade de ser cidadão, a qualidade de uma pessoa que possui em uma determinada comunidade política o conjunto dos direitos civis e políticos (Fernandes; Guimarães, 1993)? Não havia ou era restringida. Praticamente inexistia a cidadania como qualidade do portador de direitos e privilégios individuais, inexistiam os direitos civis, políticos e sociais.
A lei imputa o dever da educação a duas instituições com várias facetas: o Estado e a família. Mas qual família, a nuclear, que hoje passa por uma crise de identidade, nunca vista? A rica, a pobre ou a família do extralegal? Será que o Estado, por seus representantes, aprova e sanciona leis em benefício próprio e deixa a instituição escola e outras instituições sem condição de oferecer serviços de qualidade à população por pura intenção?
Pela lei notamos princípios que nos parecem verdadeiros desafios educacionais: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções ideológicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições públicas e particulares; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização do profissional da educação escolar; gestão democrática do ensino público na forma da lei e da legislação dos sistemas de ensino; garantia do padrão de qualidade; valorização da experiência extraescolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais (Novaes, 2002; Chevalier, 1958; Morin, 1972; Harré, 2002; Jackson, 2001).
Em A cor da polêmica, de Josias F. Alves, a adoção do regime de cotas para negros/pretos nas universidades brasileiras provoca celeuma. O racismo sempre foi um tema explosivo; fomos um dos últimos países do mundo a abolir formalmente a escravidão há pouco mais de um século. Assim, no recente Brasil/Brazil, e do antigo ex-Brasil/Brésil também republicano ainda tem espaço para o mito da democracia racial. No livro Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade, publicado pela Editora Renovar, o procurador da República Joaquim Benedito Barbosa Gomes relata a experiência dos EUA com as cotas para negros, para admissão nas universidades e na contratação de empregados. Depois de muitos embates, foi reconhecido pela Suprema Corte esse direito, que se tornou efetivo instrumento de transformação social da realidade dos negros.
Declarado defensor do sistema de cotas, Barbosa Gomes tornou-se o primeiro ministro negro a integrar o Supremo Tribunal Federal. Opositores do sistema de cotas rotulavam a iniciativa como modismo, até mesmo entre militantes do movimento negro. Uns acham que fomentaria o preconceito racial, colocando o negro em condição de inferioridade. Para outros, seria difícil estabelecer critérios objetivos para definir quem é negro/preto, caso desejassem discutir a questão da cor da pele e não a afrodescendência, o que seria também complexo. Há ainda os que sustentavam que a discriminação maior decorria da situação econômica. Tal questão não pode se reduzir a discussões ocasionais ou ao quadro apenas economicista da questão, pois existe a questão cultural, a sociocultural, a de relacionamentos, a de poder etc.
Em outros termos, poucos negros chegariam às universidades porque a maioria é de origem pobre, e não porque é negra. O governo anunciou a intenção de regulamentar a política de cotas raciais para as universidades públicas, e temos dúvidas de que algo tenha efetivamente mudado. Ainda é pouco tempo para notarmos mudanças em nossa pós-escravidão. A proposta será elaborada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e enviada ao Congresso em forma de projeto de lei. Algumas poucas universidades anteciparam-se a ela e já adotaram a reserva de vagas. As universidades estaduais do Rio de Janeiro, da Bahia e do Mato Grosso do Sul foram as pioneiras. A UnB foi a primeira a adotar o sistema proposto, tendo para o seu vestibular mais de 4 mil candidatos (18,7% do total) que inscreveram-se para as cotas de 20% do total de vagas reservadas por ela na ocasião.
Para evitar fraudes, uma comissão iria analisar as fotos dos candidatos. Críticos alegaram absurda a ideia de dar poderes para uma comissão definir a raça dos candidatos. Mas tudo isso somente denunciaria o quão complexa é a questão. E não tocamos em outras candentes questões como empregabilidade, mobilidade, inclusive a social etc. Alguns prometiam entrar na Justiça caso fossem excluídos das cotas. No mínimo, é intrigante que questionamentos sobre as supostas dificuldades para identificação e definição de negros e dos pardos só começaram a tomar corpo depois que algumas universidades passaram a reservar vagas através das discriminativas cotas raciais.
A presença dos negros na TVs, nos papéis tradicionais, ou seja, de serviçais ou em funções consideradas inferiores, foi o retrato do que ocorre na vida real, principalmente no meio urbano. A discriminação e o racismo dissimulado e hipócrita ainda persistem. O quadro sobre a questão era bastante agravado com o passar do tempo e explodia na nossa história sociocultural.
Veja como tem mudado no tempo. Ao explicar a chegada de Cabral ao Brasil, o professor Alexandre Amorim nos deslumbra em artigo publicado na revista Educação Pública, com esta apreciação/revelação desconfiada e também moderna, coisa de alguém preocupado com os diversos questionamentos que se deve fazer em velhas histórias cristalizadas no factual de nossas trajetórias:
“A calmaria pode ser entendida como fato ou como criação, e não há mais como reconhecer a verdade. Podemos acreditar em registros da época como retrato fiel dos fatos ou acreditar que questões políticas levaram os registros da época a registrar distorções dos fatos. Assim como uma criança acredita no Lobo Mau até substituir esse fantasma por outros (e então passar a acreditar no Lobo Mau simbolicamente), pode-se acreditar na calmaria como fato ou como símbolo. A História, atingida em seu cerne de registro dos fatos, se desvanece em conceitos interligados que se misturam e deixam de ser uma só verdade. Passa a ser um conceito, ela também, interligada à estória (a narrativa) e à ex-tória (a falta de uma verdade objetiva)” (Amorim, 2011).
Ele mostra como está realmente curta a lente da história e de velhos historiadores mimetizadores e seus derivados também mimetizadores. É preciso que tenham mais poiese e compromisso com a pesquisa e o pesquisado; não se pode deixar que insistam em manter as atenções em velhas verdades cristalizadas (!?), sem maiores preocupações com a intenção do dito, como incontestável e absolutamente verdadeiro. Assim, vestir a história – por exemplo do capitalismo – é uma coisa. Mas despi-la é outra, muito mais difícil, complexa.
O Instituto de História do Tempo Presente de Paris, criado pelo CNRS, na França, e dirigido pelo professor François Bédarida, sistematizou as principais questões teóricas e metodológicas sobre a abordagem histórica do passado recente para não permitir que tudo caia nas falácias de velhos cientistas das Ciências Humanas, apaixonados pela razão concreta, a cartesiana, sem que se observe a presença de algo que lhe desperte desconfiança sobre o observado! E principalmente ative a percepção, desafiando a historiografia social e sociocultural a encontrar ferramentas mais adequadas para sua abordagem, com a maior precisão possível, para que se revele definitivamente em seu complexo desenho humano, o mais humano possível.
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Publicado em 09/08/2011.
Publicado em 09 de agosto de 2011
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