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Breve relato das experiências da Escola de Cinema do CAp/UFRJ
Janaina P. Garcia
Doutoranda em Educação (UFRJ), professora de Sociologia no Ensino Médio
O presente artigo investiga algumas reflexões possíveis sobre currículo e linguagem cinematográfica em diálogo constante com as experimentações desenvolvidas na Escola de Cinema do CAp/UFRJ, oferecida como uma proposta extracurricular ao grupo de alunos do Ensino Médio, no ano letivo de 2008.
O projeto da escola de cinema no CAp/UFRJ foi algo novo nessa instituição e de caráter experimental. Inicialmente, o intuito era oferecer aulas de cinema duas vezes por semana; porém, uma vez abertas as inscrições, descobriu-se que a disposição no horário dos alunos era mínima, visto que a maioria fazia atividades fora do horário curricular, tais como, cursos de idiomas, de artes e esportes. Logo, duas aulas por semana condenariam, a priori, o efetivo andamento das aulas, o que acarretou somente um encontro semanal de aproximadamente duas horas com a turma do Ensino Médio.
Foi privilegiada a metodologia de aulas expositivas, centradas no primeiro semestre na introdução histórico-metodológica do cinema como linguagem artística, com ênfase nos elementos constitutivos da linguagem cinematográfica. No segundo semestre, o critério adotado foi fazer dialogar o cinema com outras linguagens artísticas.
Ainda na metodologia, as professoras envolvidas optaram por não passar filmes inteiros para assistir em sala, devido ao pouco tempo que possuíam para desenvolver os conteúdos. Para resolver tal problema, elas se remeteram à proposta de Bergala (2002, p. 121) acerca dos “fragmentos postos em relação”, pois na escola nem sempre é necessário, e às vezes nem conveniente, assistir a filmes na íntegra. A proposta de trabalhar com planos, fragmentos permite dialogar com diversos filmes para introduzir uma ideia, parâmetro ou elemento da linguagem, penetrar por diferentes períodos históricos tendo como finalidade mostrar exemplos de filiação artística, estética ou autoral.
Dessa maneira, a metodologia utilizada fugiu do que Bergala (2002, p. 96) chamou de “teoria de Pokemon a Dreyer”, isto é, partir do que os adolescentes gostam de maneira espontânea para conduzi-los pouco a pouco até os filmes mais difíceis.
Ainda falando de metodologia: ao final do primeiro semestre, os alunos tinham por exercício fazer um curta de um minuto, em plano fixo, chamado Minuto Lumière, idealizado por Alain Bergala e Nathalie Bourgeois, em homenagem aos irmãos Lumière pelo centenário do nascimento do cinema (1995), como prática das oficinas pedagógicas da cinemateca francesa.
Observando as aulas, nota-se a importância de dominar o arcabouço teórico do cinema para poder haver integração entre a teoria e a prática. Desde a primeira aula introdutória foi possível observar a preocupação de abordar o cinema como linguagem artística específica, pois na apresentação do curso foi enfatizado que ele seria tratado a partir de seus elementos constitutivos da imagem (enquadramentos, planos, etc.), do roteiro e da montagem.
Ver filmes juntos foi se tornando uma prática. Essa experiência muda – coletiva foi essencial nas aulas, pois os alunos iam endereçando seu olhar a partir de critérios mediados pelos “passadores”, que pretendiam acompanhá-los na leitura do filme tentando partilhar as escolhas do autor e suas emoções. Isso permitiu também, quase por efeito, que a cada aula fosse permitida outra compreensão se aproximar – mesmo que na imaginação – dos gestos cinematográficos do autor e ainda entender e se familiarizar com alguns códigos da linguagem. Isso contribui tanto para apurar uma prática de análise crítica e criativa como a apropriação de conhecimentos específicos para suas próprias produções.
Outra questão interessante que emergiu nessa análise foi o fato de as aulas de cinema serem apresentadas como algo extracurricular. Sabe-se que, dentro do contexto escolar, o extracurricular significa tudo aquilo que não está inserido na grade curricular, isto é, não faz parte do corpo das disciplinas instituídas pela escola. Entretanto, deve-se repensar e problematizar essa questão, pois o fato de as aulas de cinema acontecerem dentro do espaço escolar já faz com que elas sejam parte da cultura escolar, sejam parte desse contexto de disciplinas. A melhor nomenclatura, na minha opinião, seria “extraclasse”, e não extracurricular. Se, por um lado, isso tiraria legitimidade como estatuto curricular, traz um ganho no que diz a afirmação de Daney citada por Bergala (2002, p. 77) quando diz que “só o desejo instrui”, já que das aulas extraclasse nenhum aluno participa, sob nenhuma forma de obrigação. Só o desejo de ser iniciado no universo do cinema, de aprender algumas questões, trouxe esse grupo de alunos e é o que os tem segurado até hoje. Para se manterem nas atividades extraclasse era preciso que eles não tivessem sido chamados à atenção pelo comportamento em horário curricular obrigatório.
Igualmente foi possível observar a importância dada à questão de trabalhar o som juntamente com as imagens. O cinema não seria somente a arte das imagens em movimento, mas também a arte dessas imagens articuladas com o som. Notou-se aqui a articulação entre duas linguagens: a das imagens e a do som, e, em outros casos, não só som: também da música.
Bakhtin (2003) já demonstrou a importância da articulação entre as linguagens. Ele defende que as artes conseguem fazer essa superposição de linguagens de forma mais ampla, diferentemente das línguas, em que a mesma situação não é possível, pois uma pessoa não consegue falar duas línguas ao mesmo tempo com outra; não posso falar inglês e português ao mesmo tempo com o outro. Já nas artes essa superposição de linguagens se dá de forma flexível, como no caso do balé ou do próprio cinema, por exemplo. Por sua vez, ele acredita que as linguagens devam ter uma troca entre si e não se aprisionarem em seus respectivos sistemas. O conceito de dialogismo evidencia-se: as linguagens dependem umas das outras, demonstrando a necessidade de troca e interação entre elas. Logo, ao trabalhar tal perspectiva em sala de aula, acredito que ocorra uma aproximação do cinema como linguagem artística, aproximação essa que traz elementos da teoria da translinguística bakhtiniana (Stam, 1992).
As aulas de roteiro, por sua vez, consistiram em demonstrar a especificidade desse elemento da linguagem cinematográfica. A partir da narratividade, que é encarnada pelo roteiro, surge outro elemento importante, que é a montagem. Como diria Christian Metz, a montagem é um dos elementos principais da linguagem cinematográfica, pois aqui temos o que ele chamava de “manipulação do real” (Metz, 1972).
O roteiro de cinema organiza e conta a história de um filme; a história é o argumento, conteúdo da obra cinematográfica.O filme precisa se guiar de uma forma escrita, efêmera e controvertida em produto audiovisual. Michelangelo Antonioni, sabiamente, disse certa vez, em uma entrevista, que “roteiros são páginas mortas que, filmadas, perdem o uso. São bases importantes, fundamentais, mas que se transformam no ato de filmagem e, depois, de montagem” (Duncan; Chartman, 2004). Essa passagem do cineasta italiano lembra bastante a ideia de roteiro exposta em algumas aulas, na visão do roteirista francês Jean Claude Carrière. Ninguém vê um filme com o roteiro na mão; e se presta muita atenção na fotografia é porque o filme não é bom. O filme é mergulho audiovisual. O roteiro tem de estar lá dentro, não chamando a atenção para si mesmo. Vale destacar que a importância atribuída em aula ao roteiro não dogmatizou sua força em relação a outros momentos de criação.
Em inglês chamado de screenplay e em francês de scenário, significando peça para a tela e conjunto de cenas, na língua portuguesa a palavra roteiro designa uma via em rota de ser seguida até o seu objetivo final. É claro que na rota sempre há margem para o imprevisto, para o novo, para as “rachaduras” que surgem no que está exatamente planejado, como afirma a cineasta de origem argentina Lucrecia Martel (em palestra no dia 1º de dezembro de 2009, na Cinemateca do MAM-Rio, durante o III Encontro Internacional de Cinema e Educação da UFRJ).
No cinema, o roteiro é visto como ferramenta; um discurso verbal e escrito que permite que o filme seja assistido pela equipe. Antes de assistir ao filme, há a imaginação e a pesquisa seguida da vivência dos roteiristas. Participar desse processo em sala de aula e através das atividades extraescolares ou “deveres de casa” foi um exercício que os alunos fizeram partilhando diversas produções, suas escolhas e emoções.
O roteiro permite ainda minimizar os riscos de perdas de investimentos, dando uma perspectiva ao diretor do que e como pode ser filmado. Através do roteiro escrito há a possibilidade de calcular quantos atores, cenários, equipamentos e estúdios serão necessários e o financiamento para todos esses elementos. Tal exercício resultou, na prática de aula, em pequenos roteiros filmados, na forma de curtas, que foram chamados “cenas capianas”, para a realização dos quais os alunos se dividiram em minigrupos.
O que acredito que seja interessante reter dessas aulas, além da importância do roteiro propriamente dita, é a relação entre o diretor e o roteirista. Um relata os fatos como se deram; o outro os reconstrói como poderiam ter sido. Em ambos os casos, o que temos é uma versão possível da realidade. O roteirista escreve em função do outro, isto é, do diretor. No caso desse grupo de alunos, as funções foram intercambiadas e todos puderam fazer exercícios de roteiristas e de diretor.
Na prática das aulas de roteiro, essa relação se deu de forma intensa. Num primeiro momento, a turma se dividiu em minigrupos de três alunos cada. Depois dessa divisão, num segundo momento, cada membro dos minigrupos se atribuiu uma função (diretor, roteirista e cameraman). Num terceiro momento, o roteirista começava a escrever a escaleta (ou découpage, isto é, a descrição das sequências e dos planos), que várias vezes passava pela mão do diretor e era modificada a cada vez até atingir o que ele queria realmente passar.
Outro aspecto interessante foi que as aulas de roteiro foram usadas como um tipo de estratégia metodológica para introduzir a questão de montagem e seus elementos específicos. Nesse sentido, foi possível perceber que as aulas de roteiro englobavam mais coisas do que o próprio roteiro, o que acredito que tenha sido uma boa metodologia, no sentido de não compartimentar os conteúdos em aulas específicas de montagem, o que poderia não ter sido tão proveitoso para os alunos, visto que dessa forma a professora privilegiou um conteúdo mais abrangente e cultural, o que possibilitou que os alunos assistissem a vários filmes. Percebi que tanto o roteiro quanto a montagem são elementos inseparáveis pedagogicamente; logo, foi de extrema importância articular esses conteúdos para tais aulas.
Stanley Kubrick, um dos mais importantes diretores do cinema, sempre creditou grande importância ao roteiro, mas, certa vez, definindo o que era o cinema, foi enfático, pois para ele “o roteiro vem da literatura, a fotografia pertence ao domínio das artes visuais, a interpretação tem origem no teatro”. E ele arrematou dizendo “cinema é montagem” (Duncan, 2008). A palavra de Kubrick tem de ser levada em consideração, mas Steven Spielberg, na cerimônia de entrega do Oscar de 1989 disse que não se fazem bons filmes sem bons roteiros.
Analisando o planejamento geral do segundo semestre do respectivo ano letivo, foi possível observar que a sua característica principal foi privilegiar o diálogo do cinema com outras formas de linguagens artísticas, o que é bastante instigante.
Dessa forma, no segundo semestre, a estratégia didática foi falar do cinema em diálogo com a pintura, com o teatro, com a fotografia e com a dança; para tal planejamento das aulas foi feita uma pesquisa prévia de filmes que articulavam tais expressões artísticas.
Acredito que a teoria do dialogismo proposta por Bakhtin (Stam, 1992) apareça nessa parte do conteúdo do curso de forma bastante expressiva, pois na relação do cinema com as outras formas artísticas observa-se a relação de interdependência entre essas expressões artísticas. E tudo isso ficou bem evidente ao longo do segundo semestre, em que, em cada aula, um filme dialogava com outra linguagem artística. Para dialogar com a pintura, os alunos assistiram ao filme Mistério Picasso, de Henri Georges Clouzot, de 1956; para dialogar com a dança, o teatro e a música, assistiram ao filme Bodas de Sangue, de Carlos Saura, de 1981; para dialogar com a fotografia, assistiram aos filmes Terra estrangeira, de Walter Salles Jr., de 1996, e Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, de 2001, somente para citar alguns exemplos.
Nesse sentido, o fato de ter feito trabalho de campo durante o ano letivo de 2008 no CAp/UFRJ foi muito produtivo para refletir outras formas de propostas curriculares e múltiplas questões sobre didática, metodologia e práticas de ensino.
Dessa forma, é interessante destacar que os responsáveis pela elaboração do material didático para esse grupo de alunos do Ensino Médio do CAp/UFRJ foram os próprios professores que ministravam as aulas. Observa-se, nesse caso, que ocorre uma requalificação do trabalho docente, segundo Apple (1989), pois o professor deixa de ser um mero reprodutor de conteúdos dados por um pacote didático do governo; ele mesmo passa a participar da elaboração desses conteúdos, o que de certa maneira poderia ser um começo de um processo de descolonização do currículo tradicional, na tentativa de criar outras formas para além das já conhecidas e institucionalizadas.
Tal movimento engendraria uma nova prática docente, pois, a partir do momento que o professor está envolvido na elaboração desse material, ele sai de sua posição passiva de reprodução de conteúdos e começa a refletir sobre os conteúdos que serão ensinados e aprendidos, podendo sair da lógica hegemônica dominante dos currículos oficiais para se transformar no que Giroux chamou de “intelectual transformador” (Giroux, 1992) e no que Bergala chamou de passeur (Bergala, 2002, p. 63).
Nesse sentido, sugiro pensar outras perspectivas em currículo como uma máquina que não para de produzir, algo que não é dado e estático, mas algo que está sempre em processo de construção. Algo que pode ser visto, revisto, desconstruído e reformulado.
Remeto-me ao cineasta Jean-Luc Godard como uma possibilidade de pensar uma outra forma de currículo, pois ele se alinha com a questão que Michael Apple coloca acerca dos currículos escolares, que possuem o papel de criar e recriar a hegemonia. Quando um cineasta como este é levado para a escola, é justamente na tentativa de desconstruir um pouco essa hegemonia, pois ele adota diversos mecanismos destinados a promover o distanciamento do espectador em relação ao roteiro e enquadramentos e planos que escapam à lógica de toda e qualquer narratividade e transparência realista; logo, eu diria que é um cinema contra-hegemônico.
Uma ideia interessante seria aliar as aulas de roteiro, por exemplo, que foram muito ricas em conteúdos específicos do cinema, à proposta da “pedagogia godardiana”, que aposta na escola como um lugar onde tudo sempre começa do zero, a cada ano letivo, a cada aula, em cada quadro-negro (Daney, 2007), traçando justamente a ruptura de narrativas, em que se privilegia a atividade didática e crítica do espectador. Seria, talvez, uma tentativa de descolonizar o currículo, segundo Apple (1989) e de pensar novas práticas em sala de aula, novas metodologias, pensando num enfoque mais pós-moderno.
Então, questões e tensionamentos se colocam: como esses conteúdos foram selecionados? Com que objetivo? Porque foram organizados de tal maneira? Como construir um currículo que possa ser mais multicultural, trazendo mais cultura (outras formas de conhecimento) para os alunos e para a escola?
Quando se insere uma Escola de Cinema em horário extracurricular correm-se riscos, que se transformam em desafios. Entretanto, tudo isso é motor para refletir e criticar a lógica da escola, que, como diz Bergala,
continua gostando dos grandes temas, às vezes por boas razões em termos de educação geral e cívica (fazer falar de... guerra, racismo etc.), mas o cinema não sai disso forçosamente engrandecido, e, em alguns casos, nem mesmo respeitado enquanto arte (Bergala, 2002, p. 51).
O que ele quer enfatizar com isso é que o cinema se faz grande especialmente quando se trata de coisas pequenas, do cotidiano mesmo, como faz o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, um dos preferidos de Bergala. Pequenos assuntos se tornam grandes temas na tela do cinema; outras vezes, grande temas, como a honra, a justiça social, entre outros, ficam empobrecidos, como se fosse necessária grande intimidade com aquilo que se tem que filmar. A escola sempre teve tendência a enquadrar as coisas de forma aprisionadora, numa pedagogia que inventa procedimentos que permitem ganhar tempo no desenrolar natural das aprendizagens. O que importa, nesse sentido, é que tenha ocorrido uma experiência, e que ela tenha ensinado realmente alguma coisa por outras vias que não a do ensino no sentido clássico do termo.
Logo, o fato de a escola de cinema constituir-se como uma atividade extracurricular dá certa autonomia dentro desse contexto, pois isso permite analisar de certa distância uma possibilidade de implementação curricular que se reflita em outras metodologias de aula e outras possibilidades curriculares. A utilização da “pedagogia da criação” (Bergala, 2002, p. 128) e da “pedagogia dos fragmentos em relação” (Bergala, 2002, p. 113) nos dá bons exemplos disso.
É bem verdade que não se pode justapor uma didática à outra, um currículo a outro e muito menos impor de forma violenta e vaidosa uma pedagogia ou um currículo contra outro em nome do que é mais “moderno”. Mas se pode pensar outras formas pedagógicas e curriculares por meio da experiência da Escola de Cinema do CAp/UFRJ.
A pedagogia do cinema proposta por Bergala, de cujos princípios se apropria a Escola de Cinema do CAp/UFRJ, é caracterizada pelo modo de aproximação ao objeto, isto é, de se aproximar dele de modo não dogmático. Ela trata de não reduzir a experiência de iniciação a uma aprendizagem dos elementos da linguagem do cinema, aproximando-se assim das posturas pós-modernas em currículo e educação. O currículo, dessa forma, não é mais visto como algo técnico que visa a eficiência social, como foi argumentado nas teorias tradicionais do currículo por Bobbit e Tyler (Silva, 2003), mas é visto como algo que despreza tal controle técnico, aproximando-se das ideias sobre currículo de Michael Apple (1989), em que é possível refletir sobre outras formas que se apoiam nos materiais já existentes, ressignificando-os e recontextualizando-os, como no caso da aproximação da pedagogia godardiana em contexto escolar.
A contribuição da experiência da Escola de Cinema do CAp/UFRJ nos permite refletir acerca dos currículos escolares, olhando-os de outra forma; eles, juntamente com os alunos, podem servir de base para a produção de outros conhecimentos.
Nesse sentido, descobrimos que essa experiência corrobora algumas questões principais das quatro funções que Bergala (2002) atribui à escola.
A primeira delas é “organizar a possibilidade do encontro com os filmes” (Bergala, 2002, p. 62). Trata-se de um tipo de proposta para disponibilizar todas as estratégias possíveis para pôr os alunos em contato com os filmes cada vez mais difíceis de achar fora da escola e no circuito comercial. Criar um acervo de DVDs no contexto escolar e organizar visitas a cinematecas e a salas de cinema que ofereçam proposta alternativa.
Outra observação que emerge da análise dessas aulas é a identificação da segunda função da escola em relação ao cinema: O professor é “se fazer passeur” (Bergala, 2002, p. 63). Isso significa falar do risco que o professor assume de se tornar um “passador”, o que muda seu estatuto simbólico, abandonando seu papel docente para retomar a palavra e o contato com seus alunos de outro lugar, menos protegido, no qual entram em jogo suas preferências pessoais, seu gosto, sua relação mais íntima com tal ou qual obra de arte; um lugar no qual o eu que poderia resultar nefasto na sua função docente se torna vital para uma boa iniciação. Isso marca uma diferença fundamental entre o que a instituição tem direito a esperar de um docente que leciona uma disciplina e o que ele pode fazer como “passador”, iniciador, em um domínio da arte que lhe concerne de modo pessoal.
A terceira função da escola identificada nas aulas analisadas é “aprender a frequentar os filmes” (Bergala, 2002, p. 65). Uma vez produzido o encontro, é de se esperar que a escola facilite o acesso simples, individual e vivo dos filmes. Também é necessário iniciar os alunos numa leitura criativa deles, não apenas analítica e crítica. Trata-se de proporcionar condições para revisitar passagens, trechos de filmes, durante um longo processo, que não guarda parâmetros nem compete com as leis e modos de funcionamento da diversão. A proposta de produzir espectadores criadores consiste em favorecer as condições de ter a paciência de aguardar o tempo necessário para que as obras vistas consigam ecoar e se revelar em cada um, segundo a sua sensibilidade. Para que o espectador se torne realmente criativo, terá que virar um revisitador de filmes (Bergala, 2002, p. 65).
A quarta e última função da escola que também foi possível identificar nas entrelinhas dessa breve análise das aulas, é “tecer laços entre os filmes” (Bergala, 2002, p. 67). Na escola podem ser tecidos laços entre os filmes atuais e filmes mais antigos que, por sua vez, se entrelaçam com outras produções culturais, com movimentos, escolas e épocas. É quase uma forma de combater uma cultura do zapping cada vez mais imposta, que nos apresenta mosaicos, nem sempre relacionados ou afiliados a produções anteriores.
Dessa forma, as quatro funções da escola sugeridas por Bergala aparecem bastante visíveis na análise das aulas do Ensino Médio da Escola de Cinema do CAp/UFRJ, numa tentativa de não pedagogizar o cinema, mas de pensar a hipótese de Bergala, a do cinema como arte e como alteridade em contexto escolar (Bergala, 2002), hipótese essa que pretende ler arte e não ensino da arte, de ver o cinema como um “outro”, um estrangeiro, levando para dentro da instituição escolar algo que não é próprio desse contexto, que é a criação (Bergala, 2002, p. 29).
Observei que as professoras, ao planejar, desenvolver e avaliar as aulas (no que tive oportunidade de acompanhar), sempre estiveram preocupadas com a questão da alteridade, de privilegiar uma aproximação ao cinema como arte e de desconstruir ou reendereçar um olhar já naturalizado pelo cinema industrial (sobretudo hollywoodiano) e pelos meios de comunicação de massa, produções que mais são vistas por jovens, sobretudo no Brasil e nos países de industrialização tardia, em que o acesso aos bens culturais estão, na maioria dos casos, restritos à televisão e ao “cinema-shopping”. O projeto tentou introduzir o cinema na escola através de uma “análise e uma pedagogia da criação” (Bergala, 2002, p. 128).
É nesse sentido, adotando a hipótese de Bergala, aliada às propostas de uma “pedagogia godardiana”e de uma visão de linguagem menos aprisionadora e mais plural, na translinguística bakhtiniana, que se poderia pensar o cinema em contexto escolar constituindo novas formas de subjetivação ao propor diferentes formas de nos relacionarmos com o outro. Assim, foi possível perceber também que o cinema introduziu aspectos culturais, pois os filmes (como também outras obras artísticas) são produções da cultura: obedecem a condições de produção, contingências de mercado, mas não são produtos de objetivos pedagógicos, didáticos ou seriações artificiais. Sua aproximação na educação é importante porque eles trazem para a escola aquilo que poderia transformá-la em algo vivo e fundamental: participante ativa e criativa dos movimentos de cultura, e não repetidora e divulgadora de conhecimentos massificados, muitas vezes já deteriorados, defasados e inadequados para a educação atual. A escola é parte da cultura; porém da parcela mais conservadora e desatualizada dessa cultura, o que lhe confere baixo poder político e alta exposição manipulatória. O estudo das imagens e sons da sociedade moderna pode ser um momento para a educação fazer-se cultura e, talvez, poder.
Nesse sentido, entendo que considerar a implementação do cinema – como arte, linguagem artística, cultura e conhecimento – no currículo das escolas constitui uma possibilidade de apostar numa educação de qualidade, que introduz de forma consistente o ato criativo e penetra (mesmo que timidamente) no conhecimento da arte e de sua história, pois o cinema tem ajudado a olhar com mais atenção o nosso entorno e a nós mesmos num mundo disperso e acelerado. O cinema é, como já dizia Walter Benjamin, uma “outra consciência” (Benjamin, 1996, p. 56), “uma possibilidade de dar a ver” (Benjamin, 1996, p. 23).
Logo, atrelado ao processo de mudança da educação observam-se inúmeros desafios, entre os quais romper com estruturas cristalizadas e modelos de ensino tradicionais e formar profissionais na educação com competências que lhes permitam recuperar a dimensão essencial de oferecer uma aprendizagem significativa. Quem sabe introduzir o cinema como linguagem artística no currículo de educação básica estaria contribuindo para que esse processo de mudança se fortaleça, junto de outras artes. Seria interessante que o professor pudesse ficar consciente dessa responsabilidade e que assim, contagiado pelo desejo de criar, buscasse gerar inovações pedagógicas na sua realidade.
Referências bibliográficas
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1996.
BERGALA, Alain. L’hiphòthèse cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 2002.
CHARTMAN, Seymour Benjamin; DUNCAN, Paul. Michelangelo Antonioni – The complete films. Taschen, 2004.
DANEY, Serge. A rampa. Rio de Janeiro: Cosac & Naif, 2007.
DUNCAN, Paul. Stanley Kubrick. Madrid: Taschen, 2008.
FRESQUET, Adriana. Projeto Cinema para Aprender e Desaprender, Faculdade de Educação. Plano de trabalho na Encomenda MCT/SEBRAE/FINEP - COOPERAÇÃO ICT/MPE, Economia da Cultura Nº 02/2007.
SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
STAM, Robert. Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
Publicado em 16/08/2011..
Publicado em 16 de agosto de 2011
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