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Como a ciência e a técnica se tornam ideologia Uma reflexão a partir de Jürgen Habermas

Marlon Tomazella

Este escrito tem o intuito de identificar em nossa sociedade moderna algumas consequências do apogeu do sistema capitalista que foram possíveis a partir do desenvolvimento da ciência e da técnica, que passaram a ser utilizadas – para além da aquisição de benefícios para o homem através da implementação de controle sobre a natureza – para o controle do próprio ser humano mediante o mesmo método técnico, prejudicando a vigência de elementos fundamentais das relações humanas e do valor interativo e criador de sentido da linguagem. O valor destinado à racionalidade assumiu com frequência caráter arbitrário; o mecanismo de funcionamento da racionalidade instrumentalizante pautada na circulação do capital dificulta possíveis reflexões acerca desse meio de condução da sociedade, pois dificulta a possibilidade de intervenção nesse processo, que assumiu o desenvolvimento tecnológico enquanto forma muitas vezes disfarçada de dominação política, alienando as satisfações, os gostos, as informações e os sentidos atribuídos à vida.

Trata-se de uma inversão de valores que tende a compreender os meios como finalidades neles mesmos, constituindo uma sociedade progressivamente automatizada, inclusive no que se refere ao marco institucional – quer dizer, no que se refere aos critérios de organização coletiva para a conservação e promoção da espécie pautada na interação real entre as pessoas. Perante a análise do conceito de racionalidade assumido e legitimado na contemporaneidade, Habermas é um filósofo que tenta pensar num modo de lidar com esse mesmo processo de evolução tecnológica de forma que ela passe a ser entendida como algo que não seja imprescindível à vida, principalmente no que diz respeito ao caráter de finalidade atribuído a ela. Para fazer isso, é preciso atentar ao mundo da vida, de tal maneira que ele possa se constituir de indivíduos realmente autônomos e construtores de suas individualidades, o que somente pode acontecer com a incitação à consciência política de todos, para que assim possamos nós mesmos estabelecer os rumos da história da sociedade e do indivíduo, ao invés de deixar esta tarefa essencial nas mãos dos cientistas e administradores industriais e estatais.

A racionalidade como conceito problemático

O conceito de racionalidade sugerido por Max Weber no século XIX se pauta na instauração de um modelo de planificação da vida através dos procedimentos burocráticos e do direito privado burguês, que, por meio da técnica, como condutora a fins previamente determinados, realiza a ação de seu poderio inserindo-se nos meios de comunicação, nas estruturas urbanas, na divisão social do trabalho e, por conseguinte, no processo industrial. Ou seja, essa racionalidade escolhe os meios adequados para o alcance do “planejado”, da finalidade, entendida como aumento de produção de riqueza. O que acontece no sentido de haver sempre o aprimoramento e ampliação desse sistema com vistas a esses fins, o qual, por sua vez, depende do desenvolvimento técnico-científico, que acaba por ofuscar os referenciais presentes na tradição da cultura, ditando assim os novos sentidos, novas regras e novos motivos para o que deve ou não ser feito.

Herbert Marcuse, no século XX, atentou para a concepção de racionalidade do empresário capitalista e do trabalhador industrial como uma oculta forma de dominação política; este modo de racionalidade se refere somente ao caráter estratégico de realização de fins previamente estabelecidos, inviabilizando os interesses globais de escolha ou mudança de caminho do movimento da história, e, por consequência, inviabilizando a possibilidade da reflexão.

Como racionalização dirigida a fins, ela tem necessariamente seu procedimento voltado ao controle, tanto da natureza quanto do homem. E, consequentemente, na vigência de sua função calculadora e preventiva, ela se instaura como controle político que dificulta ou mesmo evita outras possibilidades de ação ou pensamento que escapem ao seu sistema, pois a utilização do aparato técnico na sociedade reflete os interesses de grupos dominantes, que, para a constante realização de seus objetivos, impõem o modo de vida que deve ser seguido pelos outros membros dessa mesma sociedade. O que, portanto, evidencia que no próprio desenvolvimento da técnica vige a dominação, como fato materialmente concreto, histórico-social.

Mesmo nas civilizações avançadas tecnologicamente, em meio à ideia de que a forma opressora capitalista tende à racionalidade e ao progressivo desvanecimento desse caráter explorador, Marcuse vê o quão inexorável é a continuidade do domínio político dessa perspectiva; o desenvolvimento do sistema sob o jugo da vigência técnica tem interiormente o intuito de sua manutenção e expansão, fazendo com que as forças incessantemente produtivas (os trabalhadores) gastem a maior parte de suas vidas exercendo uma tarefa que não lhes diz respeito como seres humanos na busca por sentido, de modo a não poder desfrutar dos privilégios da própria máquina do desenvolvimento técnico que eles mantêm em movimento. Diante da realização, na prática, desse conceito de racionalidade, tem-se por meta a legitimação desse sistema como algo necessário para as sedutoras formas de aquisição de conforto e prazer, abandonando a preocupação relativa ao esclarecimento político e ao movimento sempre crítico de uma racionalidade mais autêntica, o que, por sua vez, evidencia a ausência de liberdade e a impossibilidade de autonomia do homem “de determinar pessoalmente a sua vida” (Habermas, 1997, p. 47), havendo assim uma racionalidade embasada meramente na intensificação do sistema produtivo e de pequenas comodidades e confortos ordinários – e, ainda assim, não necessariamente para um grande contingente populacional, tornando explícita, dessa forma, a meramente aparente superação dos sistemas políticos ditos “caducos” (como os legitimados por Deus, por exemplo). A finalidade fundamental continua a mesma: a dominação, ao invés da realização da promessa de libertação do homem por meio do crescente domínio da natureza.

O que é claramente detectado por Marcuse é que, com a melhoria das condições de vida do homem pelo desenvolvimento da técnica, ele acaba por ser também submetido ao pleno controle dos senhores desse complexo aparelho, o que, por conseguinte, revela a hierarquia dessa racionalidade atrelada a uma consequente hierarquia social. Esse é o ponto gerador de toda a problemática inerente a esta nossa sociedade moderna industrial e tecnológica. E, desta forma, Marcuse entende que a única forma de mudança possível é a transformação no interior do próprio processo científico, de tal maneira que pudesse realmente libertar o homem, garantir-lhe a emancipação de sua condição e garantir-lhe o seu caráter mais próprio: a reflexão. Mas a realização dessa drástica guinada teria por consequência toda uma mudança de perspectiva no que se refere à nossa forma de compreender o que é que vale a pena desejar para ser vivido, porque parece que o progresso tecnológico se desenvolve no sentido de ausentarmo-nos cada vez mais da força de trabalho – inventam-se máquinas para substituir nossos movimentos motores, nossos sentidos e, gradativamente, até nossos pensamentos e nossa avaliação de possibilidades (os sistemas de busca na internet são um exemplo disso).

Para a possibilidade de uma revolução no interior mesmo da ciência, seria necessária a mudança de paradigma no que se refere à organização de nossa “natureza humana”. Seria preciso mudar essa concepção ideal de existência como substituição do trabalho, pois, caso contrário, alguém sempre vai ter que trabalhar e ser explorado para que outro desfrute do produto do trabalho, das forças produtivas. Ideal que somente poderia ser realizado com a mudança de concepção para com a natureza: ao invés de ela ser entendida como um objeto à disposição, de onde se extrai displicentemente o que é pretendido, precisar-se-ia compreendê-la como instância ‘comunicacional’, interativa, relacional com o âmbito humano, havendo assim o abandono dessa clássica cisão entre natureza e homem. Mas isso poderia acontecer somente se, anteriormente, fossem extirpadas as relações de domínio vigentes no interior das relações humanas. Daí, então, a natureza poder ser entendida como outro sujeito, ao invés de objeto – condição para atitudes que tenham preocupações legitimamente ecológicas. Dessa forma, manter-se-ia o progresso técnico-científico, mas mudando os valores que o regulam.

Até aqui foi exposto o problema referente ao modo de expressão concreta da racionalidade e seus consequentes problemas. Por um lado, o apoio de Max Weber a essa razão teleológica (com vistas a fins); e, por outro, a crítica de Herbert Marcuse sobre essa concepção, entendida por ele como meramente instrumental. Em relação a esse impasse, Habermas tenta, em seu ensaio Ciência e técnica como ideologia, a sugestão de uma possibilidade de ação diante desse problema.

Trabalho e interação

Max Weber tende para a tentativa clássica de realização da tarefa da Sociologia: explicar a mudança institucional ocorrida no Ocidente devido ao alargamento de subsistemas e da ação teleológica. Partindo do pressuposto da mudança de uma fase histórica para outra, ele se utiliza de binômios conceituais, como associações sacras e seculares, ordem e classe, sociedade militar e industrial, dominação tradicional e burocrática etc. para explicar esse processo de mudança. Para tal análise, Habermas se utiliza do par categorial trabalho e interação. Por trabalho ele entende a ação instrumental, a escolha racional ou uma combinação das duas. Por um lado, a ação instrumental refere-se às previsões – graças ao saber empírico – que podem ser verdadeiras ou falsas; e a escolha racional baseia-se na estratégia, no pensamento analítico, na escolha do melhor meio para a utilização dos conhecimentos empíricos e prognósticos adquiridos, constituindo-se como esfera do valor da escolha – o qual pode ser correto ou falso –, a partir de máximas dedutíveis dos critérios de controle da realidade possíveis com a ação instrumental. Por outro lado, Habermas entende por ação comunicativa a instauração de normas vigentes como possibilitadoras de criação de entendimento recíproco e sentido à relação entre pelo menos dois agentes, em que a interação é mediada simbolicamente (pela linguagem). Nesse âmbito ocorre a legitimação de regras de comportamento por meio da clarificação da linguagem, em que determinadas escolhas podem ser objetadas ou aprovadas, como o que ocorre na vida quotidiana. Ou seja, essa perspectiva opõe-se inteiramente às estratégias da razão técnica, pois, se esta depende meramente de comprovação empírica e analítica para ser legítima, aquela é atrelada à intersubjetividade de seu significado, possuindo sentido somente quando a regra instaurada é do conhecimento passível de discussão dos concernidos a ela. A ideia de fracasso, de quando as provisões analíticas não são corroboradas no interior do sistema da ação estratégica, passa a ser substituída pela ideia de correção, no sentido de castigo por desobediência ao que foi aceito por quem desobedeceu; o aumento das forças produtivas é substituído pela emancipação do indivíduo; as previsões calculadas, por expectativas recíprocas de comportamento; o aprendizado de habilidades, pela internalização de papéis dotados de sentido e estabelecidos por consenso.

Sociedade tradicional e sociedade superior

A “sociedade tradicional” é entendida como o formato social que é resultado do desenvolvimento histórico da civilização, o qual se identifica pela existência de um poder central, figurado no Estado; pela existência da separação dos indivíduos em classes e consequente divisão diferenciada da riqueza produzida; e pela vigência de uma “mundivisão superior” – como o mito ou a religião – que tem por finalidade a manutenção da dominação. Essa sociedade se desenvolveu a tal ponto que se tornou capaz de produzir um excedente de riqueza para além das necessidades básicas, evento que possibilita a desigual divisão de riqueza, contrariamente ao que ocorreria num sistema de parentesco de sociedades primitivas. Mas nestas sociedades tradicionais o poder da racionalização a partir do desenvolvimento técnico obtido por meio do crescente sistema de divisão social do trabalho nunca alcançou tal poder de legitimação que fosse capaz de sobrepujar as tradições culturais de legitimação da dominação. O que se entende por sociedade tradicional é o caráter inquestionável do modelo de sua vigência, o qual usualmente é sustentado por algum poder mítico-religioso ou metafísico explicador da totalidade da realidade, o que configura o aspecto das sociedades pré-capitalistas.

Já o conceito de “superioridade” da sociedade moderna se refere a esse modelo de organização estatal que possibilita a produção de excedentes de riqueza de maneira relativamente segura, contínua e a longo prazo, para além dos valores das tradições culturais, o que, por sua vez, possibilita realmente o desenvolvimento de inovações técnicas, ou melhor, a sua institucionalização. Com o advento do caráter constante de desenvolvimento desses subsistemas (como o Estado, a economia política, o capital etc.) que sempre visam a uma finalidade predeterminada, substitui-se a valoração dos atos segundo o valor inerente a eles mesmos – como o que era possível na sociedade tradicional –, em prol da obtenção de seus resultados, que são continuamente aperfeiçoados e inovados. Se antes se compreendia o mundo terreno como algo precedente da vida eterna, ou coisa que o valha, a partir de então passa-se a fazer uso do desenvolvimento da técnica como que para a instauração do céu na Terra, para a resolução definitiva de toda pergunta essencial acerca da vida, o que valeria o mesmo que dizer que as ações passam a ser medidas pela eficácia e pela expansão de posse, e não pelo aprimoramento subjetivo, individual, corretivo do caráter de cada um dos sujeitos componentes de tal sociedade. Com essa mudança, chegamos à sociedade moderna, em que se compreendem determinados meios como se abrigassem em si a própria finalidade: trabalha-se pelo conforto, e este não é mais entendido como meio para, por exemplo, um melhor trabalho reflexivo acerca de si e sobre o sentido de qual caminho seguir e por que motivo; mas, sim, simplesmente pelo conforto.

O antigo modo de institucionalização legitimada tinha a intenção de proporcionar alguma forma de resposta às perguntas mais essenciais da humanidade, como questões sobre a morte, a liberdade, a justiça, o destino etc., estabelecendo um formato linguístico proveniente da interação, da partilha de sentimentos e de questões sentidos de forma comum, a partir diretamente do mundo da vida, do âmbito relacional de indivíduos que sentiam algo em comum, passível de transmissão ao outro e do entendimento do outro, o que se confronta diretamente com a razão estratégica, que não leva em consideração o âmbito intersubjetivo das relações, pois visa somente à expansão dos processos componentes de seu sistema de cálculo e expansão de provisões e controle.

A ideologia da livre troca como justificativa para a dominação

O capitalismo surge justificando a dominação legitimada através do trabalho social, da troca ou venda daqueles que têm propriedade e da venda da força de trabalho daqueles que não a têm. Então, a reciprocidade, pela equivalência “justa” de medida de valor do trabalho, acaba tendo por finalidade somente uma organização colonialista dos processos de produção – legitimando-se assim a dominação política a partir de baixo, a partir da Terra, ao invés do céu ou de Deus. A ideia de um liberalismo proveniente do desenvolvimento do sistema capitalista isenta tal formato de legitimação do poder da nomeação de dominação política, podendo, a partir de então, ser entendido como fruto das relações de produção, de uma pura lógica do mercado, mascarando assim o que realmente legitima tal domínio. Portanto, o modo de produção capitalista atingiu tal força devido à sua garantia de ampliação dos subsistemas que o compõem progressivamente a longo prazo, e por legitimar-se economicamente como maneira de dominação. Weber entende esse processo por racionalização, a qual vigora por dois lados. De um deles figura-se a necessidade irrevogável de adaptação de todos os indivíduos a esse sistema vigente; todos se enquadram nesta bipolaridade: ou como empresário, ou como trabalhador – condição esta que assegura a crescente produção de riqueza, mesmo que à custa de crimes econômicos. A modernização coage todos os âmbitos de ação da sociedade a se enquadrar no seu sistema, desde os meios jurídicos, comunicacionais, de transporte, da burocracia estatal, da educação e da saúde. Relegando o indivíduo a migrar, a todo momento, da interação para a razão estratégica, pois, com a perda das visões cosmológicas míticas e metafísicas de mundo, que eram inquestionáveis e, por seu turno, continham a objetividade em si, instaura-se uma ética subjetiva do direito privado, por meio da pressuposição de direitos naturais jurídicos e da equivalência de troca de forma crítica à vigência do tradicional regime e ao dogmatismo, realizando um cientificismo que legitima o poder sem expô-lo à reflexão pública. Assim, a ideologia propriamente surge como crítica à ideologia.

A necessidade de uma nova legitimação

Então, a partir da permanente intervenção estatal no que se refere ao controle e manutenção desse sistema e sua interdependência com o desenvolvimento técnico que fomenta a pesquisa científica, aquela concepção de capitalismo liberal não é mais vigente, porque, pelos métodos corretivos do Estado, de estabilização da economia movimentada pela troca de valores, a sociedade não se mantém num processo autorregulativo característico do livre comércio (a grande novidade que o capitalismo exibira). Isso, ao invés de auxiliar a controlar os disparates de que a autorregulação do capital mostrou ser capaz, acaba por inviabilizar totalmente qualquer movimento crítico da sociedade como crítica à economia política, pois se trata exatamente de um poder exercido e legitimado politicamente, ao invés das meras relações de produção. Dessa forma, o meio de dominação não é mais mediado pelo livre comércio, mas se estabelece diretamente mediante a força política e econômica do Estado, o qual reaviva o modo de legitimação do poder pré-capitalista, só que, agora, sem finalidades objetivas, essenciais, fundamentais – somente estratégicas, ao mesmo tempo que, com a existência de uma democracia formal e com a dissolução das antigas tradições, seria impossível simplesmente retroceder a tal sistema. Assim, a ideologia da livre troca precisa ser substituída por outro fundamento justificador da dominação, o qual passa a ser orientado pelo âmbito social, numa espécie de compensação das disfunções do livre poder de troca, prometendo proporcionar algo de bem-estar social, de segurança e estabilidade ao povo, no que se refere à estabilidade do posto de trabalho, dos rendimentos e da segurança pública (ou seja, da propriedade privada). Assim, de uma forma tenuamente transfigurada de defesa do que é privado, por uma limitação das instituições do direito privado, essa estrutura é capaz de, a partir de então, garantir de algum modo o assentimento das massas perante essa nova legitimação do poder. Assim, com a emergência do estatuto econômico de manutenção de controle, a política assume caráter negativo, funcionando somente como elemento sanador de eventuais desequilíbrios econômicos, agindo como elemento de evitação do colapso desse novo sistema, havendo assim a grande novidade desta estrutura, que é o caráter antecipador, prognóstico de riscos manipuláveis para a estabilidade do mecanismo.

Seguindo essa linha de raciocínio, a resolução de conteúdos práticos é totalmente eliminada, uma vez que o sistema hoje dominante se dirige somente ao caráter regulativo do funcionamento da estrutura, esquecendo assim as relações de interação referentes à antiga interpretação do que significava uma “vida boa”. Portanto, essa perspectiva abandona a atenção ao que há de vontade democrática, que se configuraria pela discussão dos critérios de manutenção de tal sistema, pois as soluções técnicas não estão à disposição das discussões públicas, configurando-se assim um modelo estatal que exige, para a continuidade de sua vigência, a despolitização das massas, o que, por sua vez, mantém a incógnita referente à sua própria justificação de legitimação, que se refere a “como tornar plausível a despolitização das massas a estas mesmas massas?” (Habermas, 1997, p. 72).

Uma outra tendência evolutiva do capitalismo tardio aparece na sua cientificização técnica; se anteriormente, as invenções que compunham o desenvolvimento do aparato técnico capitalista se davam de forma esporádica, ainda estabelecendo uma relação com algo como um processo natural. Com a evolução técnica fomentada pela ciência moderna, uniram-se a investigação industrial, a ciência, a técnica e a revalorização do capital. Boa parte das pesquisas industriais é incentivada pelo próprio Estado.

O interesse pela manutenção de tal sistema se expressa de maneira a estabelecer o controle de interesses sociais atrelados diretamente ao crescimento econômico; o fator determinante que passa a ser entendido como condição de possibilidade para a produção do bem-estar social é o progresso técnico-científico, o que, por consequência, ausenta qualquer ímpeto democrático das decisões cruciais referentes aos caminhos a serem tomados pela sociedade, porque somente a ciência passa a ter tal autoridade legitimada, havendo assim a decisão de administradores, ao invés da voz do povo, instaurando-se assim uma autocompreensão arbitrária da sociedade de maneira independente da ação comunicativa, do mundo da vida e das relações mediadas simbolicamente, sendo impostos como válidos somente o modelo e o discurso científico. Esse projeto, que nunca havia sido levado a tais consequências como na contemporaneidade, sinaliza o perigo de assimilar os dispositivos técnicos automatizantes dos produtos que o homem produz, o próprio homem com suas relações sociais. Figura-se aqui o perigo da não mais diferenciação entre interação e razão estratégica voltada a fins; esta, para além do domínio institucional, tende a um domínio cada vez maior dos âmbitos da ação comunicativa, pois os comportamentos são cada vez mais condicionados exteriormente, de maneira adaptativa, e as questões práticas sobre a determinação de rumos e caminhos próprios, individuais e coletivos, estão sendo progressivamente descartadas em prol de tarefas técnicas. Em suma, tal tecnocracia vislumbra um horizonte de possibilidades que, apesar de causar a aparência de certa liberdade de escolha dos indivíduos – como escolha do candidato a se votar e do produto de consumo –, mascara um condicionamento composto de uma limitada variedade de escolhas já predeterminadas, induzidas ou mesmo impostas.

Essa tecnocracia é, então, capaz de uma ideologia mais refinada do que todas as outras anteriores a ela, pois através dela justifica-se a supremacia de uma classe sobre as outras por argumentos econômicos ou jurídicos. Enquanto isso, intensifica-se a manipulação da natureza e se tem o consequente acúmulo de capital, ao mesmo tempo que o gênero humano se reduz cada vez mais à condição de personagem cuja vida se justifica somente pela busca de bens e como acompanhante das novas tendências.

Portanto, a nova ideologia passa a servir para a não tematização dos fundamentos sociais e tem por meta, para que haja o assentimento das massas, a satisfação de interesses meramente privados relativos ao poder aquisitivo e ao tempo livre do trabalho. Dessa forma, a simpatia das massas passa a ser conquistada independentemente de qualquer justificativa baseada na interação, somente necessitando vinculá-los ao sistema de uma racionalidade dirigida a fins. Isso se refere aos perigos que tinham sido sugeridos antes: numa crescente indiferenciação entre ação comunicativa e os modelos coisificados de comportamento e de ação a partir somente de uma razão dirigidas a fins, o mundo científico automatizado se transfere a passos largos em direção à abrangência do mundo sociocultural, da vida, trazendo para si toda e qualquer conjectura ou interpretação autocompreensiva da realidade, ou melhor, construindo assim uma realidade cada vez mais plastificada nas engrenagens de seu aparato técnico em meio ao âmbito da interação componente das relações entre os indivíduos, o que, por conseguinte, caminha para uma total extinção do sentido da linguagem; seu anseio é simplesmente torná-la designadora de símbolos desencadeadores da execução de funções práticas, vazias de sentimento, de reflexão ética e estética, de vida, de humanidade.

O domínio técnico ao invés do prático

O que passou a diferenciar essencialmente o homem em meio aos outros animais foi sua adaptação ativa na natureza; com a técnica, ele pôde prover-se das suas necessidades de maneira ativa, sem ser relegado aos processos adaptativos de sua natureza frente às condições do ambiente. Mas, com o desenvolvimento das novas tecnologias, esse homem passou a uma posição de adaptação passiva; passou a não haver mais controle racional da produção dos bens e se esvaiu a preocupação em se fazer a história com vontade e consciência, por meio de uma dominação prática do desenvolvimento social que enveredou por caminhos cada vez mais descontrolados. Essa interpretação de uma adaptação passiva somente foi possível com a crítica às ideologias burguesas, principalmente a efetuada por Marx. Mas, por outro lado, outros quiseram estabelecer o domínio sobre essa sociedade, só que, ao invés de meios práticos, utilizando meios técnicos, aplicando em tal dominação o mesmo método de ação racional dirigida a fins utilizado no domínio da natureza. Mas, desta forma, o marco institucional somente poderia ser substituído às custas da eliminação do que há de essencialmente humano: a linguagem comum. Assim, em nosso presente, vivemos em meio a um mundo repleto de meios de controle cada vez mais abrangentes, que seguem essa lógica dos subsistemas de razão dirigida a fins, como processos educativos não reflexivos e maus condutores de comportamento; sistemas monitorados de vídeo por todos os lados; drogas para controlar o humor, fadiga, potência sexual e personalidade; controles genéticos etc., tudo realizando um movimento em direção à extinção das interações linguísticas como meios de construção dos sujeitos e seus comportamentos, evidenciando que corremos sério risco de seguir o rumo da consumação do homem-máquina.

Conclusão

Assim, a única possibilidade de uma racionalização no âmbito do marco institucional é através da interação linguisticamente mediada, acabando com os meios de distorção dos processos de comunicação, havendo discussões públicas e sem censura acerca dos diferentes princípios de normas orientadoras de ação, num processo reflexivo, em que a internalização de papéis a serem assumidos espontaneamente em meio à sociedade sejam resultados de discussão e pensamento, para que assim possa haver, no interior desse convívio em sociedade, uma ampla emancipação e construção da individualidade dos sujeitos componentes dela. Então, os meios seriam entendidos como meios e não como fins, porque o aumento das forças produtivas não coincide com a “vida boa”, ainda que possam ser colocadas a seu serviço. Entraríamos aqui na discussão das bases de manutenção do sistema a partir da reflexão acerca da práxis vital que compõe originariamente a vida – movimento este que é interceptado pelo capitalismo tardio despolitizador e espoliador.

Habermas entende que as bases desse capitalismo tardio são frágeis, somente mantidas pela manutenção da despolitização. Devido a isso, grandes esperanças são fomentadas no meio estudantil e principalmente em meio às Ciências Humanas, em que é percebida a ilusão proveniente do desenvolvimento tecnológico aliado à produção de um conforto cada vez maior às custas da pobreza. Mas, mesmo no interior daqueles privilegiados pelo conforto, é possível perceber que a imposição do trabalho profissional, da ética da competitividade e do rendimento, juntamente com a alienação das satisfações morais, estéticas e de sensibilidade, caminha para um rumo que se torna insustentável e insuportável. Portanto, a politização das massas se faz urgente para que não cheguemos de vez a um Admirável Mundo Novo e para que seja possível a reabilitação da linguagem como instrumento de resolução de questões práticas da vida, da relação entre os sujeitos, os quais terão sua dignidade como indivíduo assumida de fato quando puderem estabelecer argumentativamente, reflexivamente, os valores das ações componentes do incessante decorrer de suas vidas.

Referências bibliográficas

BAUMER, Franklin L. O pensamento moderno europeu Vol. II. Trad. Maria Manuela Alberty.  Rio de Janeiro: Edições 70, 1977.
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

Publicado em 30 de agosto de 2011

Publicado em 30 de agosto de 2011

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