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Ensinar cinema: a experiência do aprender fazendo

Janaina Pires Garcia

Doutoranda em Educação (PPGE/UFRJ); professora de Sociologia no Ensino Médio

Ensinar e aprender cinema. Uma questão de limites? Uma contiguidade? Provavelmente, se este artigo fosse escrito em francês ou em russo, não teríamos a dificuldade que temos ao escrever em português a palavra “ensinar” cinema. Em russo, OBUTCHÊNIE deriva do verbo OBUTCHÍT. Trata-se de um verbo transitivo direto que significa ensinar, ilustrar, adestrar, transmitir algum conhecimento ou habilidade a alguém, disciplinar. Até aqui, tudo igual, mas a mesma palavra, derivada do verbo OBUTCHÍTSYA é um verbo transitivo indireto que significa ser ensinado, aprender, ensinar conhecimentos, ensinar alguma coisa. A elasticidade semântica desta segunda palavra faz com que Vigotsky (2001) a use indistintamente ao referir-se aos processos de ensino e de aprendizagem.

Nota

Essa distinção aparece feita na nova tradução da obra Pensamento e Linguagem, da Editora Martins Fontes, feita diretamente do russo, com 496 páginas (as versões anteriores tinham apenas 135), na qual o próprio tradutor, Paulo Bezerra (da USP), alerta para fazer uma releitura dessa nova versão, que muda até o título: A construção do pensamento e linguagem e mantém as reiterações e estilo do autor e não corta trechos de conteúdos políticos no texto. No prólogo, um dos alertas do tradutor é justamente sobre este fato: o mesmo verbo utilizado para aprender e ensinar.

Ensinar cinema inclui, de modo inseparável, a experiência de aprender. Porém isso não significa que estejamos ignorando a força e indissolubilidade dessa experiência.

O ensino, na sociedade ocidental, está marcado por um discurso monológico, ideia essa vinda de Aristóteles que perdura até os dias de hoje, na qual o docente fornece aos discípulos uma definição pronta e eles devem apenas entendê-la, assimilá-la; se a entendem, estão no verdadeiro; se não, estão no erro. Não há espaço de troca entre alunos e professores. Nossas escolas infelizmente não se vêm sempre livres desse modelo viciado e reprodutor. O cinema não pode ser ensinado como outras disciplinas ditas “duras”, como a Matemática ou a Física, por exemplo. O cinema se constitui numa arte e, para permanecer arte, “deve permanecer um fermento de anarquia, de escândalo e de desordem” (Bergala, 2002, p. 30). A arte é, por definição, um elemento perturbador dentro da instituição. Não pode ser concebida pelos alunos sem a experiência do fazer. Tanto para os alunos quanto para os professores, deve ser, na escola, uma experiência de outra natureza que não a do curso localizado.

Por sua natureza, a instituição tem a tendência de normalizar, amortecer e até mesmo absorver o risco que representa o encontro com toda forma de alteridade para tranquilizar-se e tranquilizar seus agentes. Seguindo o pensamento de Godard,

a arte não se ensina, mas se encontra, se experimenta, se transmite por outras vias além do discurso do saber, e às vezes mesmo sem qualquer discurso. O ensino se ocupa da regra, a arte deve ocupar um lugar de exceção (Bergala, 2002, p. 31).

Nesse sentido, o filme não deve ser pensado como objeto, mas como marca final de um processo criativo; pensar o filme como um gesto de criação. Não como um objeto de leitura, decodificável, mas, cada plano como a pincelada do pintor pela qual se pode compreender um pouco seu processo de criação. Isso implica dizer que se deve ter em contexto escolar outra forma de abordagem do cinema: como arte e não aquela canônica, do cinema como vetor de sentido e de ideologia.

Nesse sentido, para Tyler (1949), a expressão “experiência de aprendizagem” (1949, p. 55) não é equivalente ao conteúdo de que trata o curso nem às atividades desempenhadas pelo professor. Tal expressão refere-se à interação entre o aluno e as condições exteriores do ambiente a que ele pode reagir. A aprendizagem ocorre mediante o comportamento ativo do estudante: este aprende o que ele mesmo faz, não o que faz o professor. É possível encontrarem-se dois estudantes na mesma classe e terem, ao mesmo tempo, experiências diferentes. Os meios essenciais de educação são as experiências proporcionadas, não as coisas a que é exposto o estudante. Essa definição de experiência como interação do estudante com seu ambiente implica que aquele é um participante ativo, que alguns aspectos do seu ambiente lhe atraem a atenção, e que é a esses aspectos que ele reage. Pode-se indagar até que ponto é possível a um professor oferecer uma experiência educacional a um estudante, visto que o próprio aluno deve realizar a ação que é fundamental à experiência.

Seguindo essa mesma ideia, Orson Welles, em entrevista concedida a Peter Bogdanovich e publicada na revista El amante Cine,responde:

Para ensinar uma arte não é fácil. Pode-se encher a cabeça de um jovem com muitos poemas, mas para se fazer chegar à experiência poética falta muito talento da parte dos professores (Beceyro, 1994, p. 31).

Um bom professor, segundo o cineasta, é aquele que ajuda o outro a fazer suas próprias experiências,

“se seu entusiasmo for comunicativo, e ainda acrescenta: os professores não deveriam ser somente provedores de informação” (Beceyro, 1994, p. 31).

Orson Welles subestima a importância do ensino dos aspectos técnicos, assegurando na mesma entrevista que qualquer ser inteligente é capaz de aprendê-los num único final de semana. O difícil é admitir que um bom filme tem muito mais a ver com a sorte, com a graça, com um determinado tipo de experiência, com o desejo do que com o ato sistemático de ensinar/aprender técnicas.

Essa afirmação pedagógica pode encontrar alguns fundamentos filosóficos em John Dewey (1985). O filósofo americano ressaltou que o aprendizado da resolução de problemas valia mais do que os problemas em si e cada uma de suas soluções, pois aprender é sempre aprender a aprender. Tendo o conceito de experiência como fator central de seus pressupostos, chega à conclusão de que a escola não pode ser uma preparação para a vida, mas sim a própria vida. Assim, para ele, vida-experiência e aprendizagem estão unidas de tal forma que a função da escola encontra-se em possibilitar uma reconstrução permanente feita pela criança da experiência. É importante que o educador descubra os verdadeiros interesses da criança para apoiar-se nesses interesses, pois, para ele,esforço e disciplina são produtos do interesse, e somente com base nesses interesses a experiência adquiriria verdadeiro valor educativo.Logo, resumindo, o processo de ensino-aprendizagem, para Dewey, estaria baseado em:

  1. Uma compreensão de que o saber é constituído por conhecimentos e vivências que se entrelaçam de forma dinâmica, distante da previsibilidade das ideias anteriores (Dewey, 1985). Nesse aspecto, Dewey dá ênfase à experiência educativa que resulta em novos conhecimentos. O aluno deve estar numa verdadeira situação de experimentação, em que a atividade o interesse, que ele possua os conhecimentos para agir diante da situação e que tenha a chance de testar suas ideias.
  2. Alunos e professores detentores de experiências próprias, que são aproveitadas no processo. O professor possui uma visão sintética dos conteúdos; os alunos, uma visão sincrética, o que torna a experiência um ponto central na formação do conhecimento, mais do que os conteúdos formais. (Dewey, 1985). A filosofia deweyana remete a uma prática docente baseada na liberdade do aluno para elaborar as próprias certezas, os próprios conhecimentos, as próprias regras morais. Isso não significa reduzir a importância do papel do professor. O educador deve apresentar os conteúdos escolares na forma de questões ou problemas, e jamais dar de antemão respostas ou soluções prontas.
  3. Uma aprendizagem essencialmente coletiva, assim como é coletiva a produção do conhecimento. (Dewey, 1985). Aqui se nota sua crença de que o conhecimento é construído de consensos, que por sua vez resultam de discussões coletivas.

O conceito central do pensamento de Dewey é a experiência, a qual consiste, por um lado, em experimentar e, por outro, em provar. Com base nas experiências que prova, a experiência educativa torna-se, para a criança, um ato de constante reconstrução.

Nessa visão educativa, ele propõe ainda que a aprendizagem seja instigada através de problemas ou situações que procurem de forma intencional gerar dúvidas, desequilíbrios ou perturbações intelectuais. O método dos problemas valoriza experiências concretas e problematizadoras, com forte motivação prática e estímulo cognitivo para solicitar escolhas e soluções criativas. Nesse caso, leva o aluno a uma aprendizagem significativa, pois ele utiliza diferentes processos mentais (capacidade de levantar hipóteses, comparar, analisar, interpretar, avaliar), de desenvolver a capacidade de assumir responsabilidade por sua formação. A problematização requer do professor uma mudança de postura para o exercício de um trabalho reflexivo com o aluno, exigindo a disponibilidade do professor de pesquisar, de acompanhar e colaborar no aprendizado crítico do estudante, o que frequentemente coloca o professor diante de situações imprevistas, novas e desconhecidas, exigindo que professores e alunos compartilhem de fato o processo de construção, e não apenas o de reconstrução e reelaboração do conhecimento.

O processo de mudança da educação traz inúmeros desafios, entre os quais romper estruturas cristalizadas e modelos de ensino tradicional e formar profissionais na educação com competências que lhes permitam recuperar a dimensão essencial de oferecer uma aprendizagem significativa. Para que esse processo de mudança se inicie, é necessário que o professor esteja consciente dessa responsabilidade e busque inovações pedagógicas, adaptando-as à sua realidade. É necessário também que o educador utilize as condições físicas e sociais para extrair tudo de proveito saudável e válido, para que as possibilidades de ruptura ocorram inerentes ao processo de ensino-aprendizagem.

Logo, ensinar cinema é, para começar, um novo endereçamento do olhar, de dar espaço a uma outra percepção, aceitar ver as coisas, com sua parte de enigma, antes de sobrepor-lhes palavras e sentidos. O verdadeiro acesso à arte não pode ser confortável ou passivo. Não se arrastam as crianças para a arte como os bois para o arado. Trata-se de expô-las à arte, mesmo que isso às vezes seja explosivo. Não é a arte que deve ser exposta sem riscos aos jovens espectadores, eles é que devem ser expostos à arte e podem ser abalados por ela. A única experiência real do encontro com a obra de arte provoca o sentimento de ser expulso do conforto dos hábitos de consumidor e ideias preconcebidas.

Assim sendo, entende-se que o objetivo de fazer cinema na escola é fazer uma experiência de criação. Para iniciar uma prática criativa, uma experiência direta e pessoal, trata-se de uma diferença de exigência entre ensinar, no sentido clássico, e iniciar. Pois é de uma experiência de sujeito a sujeito que se trata na transmissão de um gesto de criação, para a qual é indispensável ter corrido o risco, ao menos uma vez na vida, de escolher sua posição, seu eixo, sua distância, seu enquadramento; de decidir o que se deve ou não dizer ao ator, seu deslocamento, sua adequação de interpretação, de fixar a velocidade do movimento de câmera etc.

Nas palavras de Kneller (1976), o que define o ato criador é o seu processo mental, e o termo significa um grupo de capacidades relacionadas, como fluência, originalidade e flexibilidade. Mas esse processo mental se assenta sobre formas distintas do pensamento rotineiro. Enquanto este se guia por símbolos e conexões já estabelecidas, o pensamento criador procura estabelecer novas relações simbólicas. Procura conectar símbolos e experiências que, anteriormente, não apresentavam quaisquer relações entre si. No entanto, o pensamento criador não aproxima pura e simplesmente símbolos diversos, num jogo de ensaio e erro. Antes a relação se dá primordialmente por meio dos significados sentidos ou dos sentimentos. Para o criador, as ligações ocorrem inicialmente num nível pré-simbólico, vivencial.

Num segundo momento é que ele busca expressar tais relações, encontrando símbolos que possam traduzi-las. Segundo Gendlin (apud Duarte Jr., 2007), o indivíduo criador é justamente aquele que dirige sua atenção a seus sentimentos, para depois expressá-los por meio de símbolos e de novas relações simbólicas. Portanto, o ato criador é essencialmente um processo pré-simbólico ou pré-verbal. Guilford (1967) forjou duas expressões para explicar o ato criativo: “pensamento convergente”, para o rotineiro, e “pensamento divergente”,para o criador. A essência do pensamento divergente reside na capacidade de produzir formas novas, de conjugar elementos habitualmente considerados independentes ou discordantes. É, se se quer assim dizer, a faculdade criadora, a imaginação, a fantasia. Dessa maneira, como substrato da criatividade, do pensamento divergente, encontra-se a imaginação. Com esse conceito, pode-se englobar as diversas considerações acerca dos processos envolvidos no ato de criar. A imaginação diz respeito à articulação dos sentimentos, à sua transformação em imagens e ao encontro de símbolos que expressem esses processos e resultados.

Imaginar é não se ater às coisas como elas são, de acordo com o pensamento racionalista. Contudo, as coisas são da maneira como as descrevem nossos processos simbólicos, nossa linguagem. E nossa linguagem desenvolve-se em íntima associação com a imaginação. Pela imaginação o homem se afirma como um rebelde. Um rebelde que nega o existente e propõe o que ainda não existe; logo, a rebeldia é a pressuposição básica de qualquer ato criativo. O mundo da cultura seria literalmente impensável, se não fosse pelos atos de rebeldia de todos aqueles que fizeram algo para construí-la. O ato de criação é profundamente subversivo: visa alterar a ordem (ou a desordem) existente para imprimir um novo sentido. Galileu, Joana D’Arc, Van Gogh por testemunhos! O ato criativo visa transformar aquilo que é naquilo que ainda não é, atento ao desejo da imaginação. Em consequência, o ato criativo ou criador se desenvolve quase totalmente na clandestinidade. O criador é um rebelde que não se adapta à nossa educação “bancária” (Freire, 2004), à mecânica organização de nosso trabalho e às leis que regem nossa civilização. O ato de criação é, então, um ato (quase) proibido num mundo civilizado e tecnocrático, porque somente a produção do que possa se converter em lucro é assimilada. Esses são os limites impostos à criatividade; em parte, isso explica a baixa adesão dos estudos de arte e de uma pedagogia da criação nas escolas: tem que se produzir mão de obra especializada para as indústrias ao mesmo tempo eliminando quaisquer vestígios de criticidade e criatividade no interior da educação, pois o sistema escolar está voltado para o treinamento, o adestramento do estudante, tornando-o um dócil servidor do sistema econômico.

Nosso modelo educacional voltou-se exclusivamente à transmissão de sentidos já prontos e acabados. Trata-se de transmitir fórmulas e conceitos específicos sem despertar o educando para o sentido de sua vida num ambiente histórico-cultural. Tal processo termina então por inibir e cercear a criação como possibilidade dos educandos, já que sua situação concreta não interessa ao sistema e os significados válidos são apenas aqueles propostos verticalmente pelo professor. Logo, com a crescente industrialização, com a cisão mais e mais entre a intelecção e os sentimentos, a educação institucionalizada voltou-se para o simples treino de habilidades intelectuais e a produção de mão de obra. Em grande escala, o sistema educacional está engrenado para uma única fase do desenvolvimento: a da evolução intelectual. Aqui, a aprendizagem é muito fácil de medir, mas isso equivale a definir aprendizagem numa acepção muito estreita. Aprendizagem não significa meramente acumulação de conhecimentos; também implica compreensão de como esses conhecimentos podem ser utilizados. Aprendizagem supõe integração harmônica entre o saber e o agir, entre o sentir e o pensar.

Japiassu (1975), citando Piaget, afirma que compreender deve ser entendido como inventar ou reconstruir por invenção. Ou seja, todo ato de conhecimento, no fundo, envolve certa criação ou certo re-arranjo (parcial ou total) de nosso esquema conceitual. Quando aprendemos algo, estamos de certa forma criando-lhe uma significação com base em nossas vivências e conceitos. Por isso no ato de conhecer está envolvida certa criação: a criação de um lugar para o novo conhecimento na estrutura cognitiva anterior; a criação de condições para que o novo possa ser utilizado na ação sobre o mundo. E este talvez seja o ponto crucial com relação à uma aprendizagem significativa: ela envolve a articulação do novo com o já existente; envolve a criação de um sentido para o aprendido em função do já conhecido. Enquanto na simples memorização, isto é, no ato de decorar, o novo conceito não se articula aos anteriores, não se integra à visão de mundo do sujeito, e assim, por não receber uma significação e uma valoração, é rapidamente esquecido. Para que a aprendizagem e o conhecimento se deem é necessário, portanto, este pequeno ato criativo: a constituição de um sentido e de um lugar para o novo conceito a partir dos conhecimentos anteriores.

Pela arte o homem explora aquela região anterior ao pensamento onde se dá seu encontro primeiro com o mundo. A forma discursiva da linguagem toma este encontro e o fragmenta em conceitos e relações. A forma não discursiva na arte tem função diferente: articular conhecimentos que não podem ser expressos discursivamente, porque ela se refere a experiências que não são formalmente acessíveis à projeção discursiva. Tais experiências são os ritmos da vida, orgânica, emocional e mental, que não são simplesmente periódicos, mas infinitamente complexos e sensíveis a todo tipo de influência. Nesse sentido, pode-se dizer que a arte possui algumas funções cognitivas ou pedagógicas (Duarte Jr., 2007, p. 102), que, de acordo com o pensamento do professor Duarte, explicitarei aqui de forma mais sintética.

A primeira delas é apresentar-nos eventos pertinentes à esfera dos sentimentos, que não são acessíveis ao pensamento discursivo. Pela arte somos levados a conhecer nossas experiências vividas que escapam à linearidade da linguagem. O conhecimento dos próprios sentimentos, que a arte possibilita, pode ainda ser ampliado, na medida em que é possível repetir-se a experiência frente a ela. Podemos voltar a uma obra e explorar os sentimentos que ela desperta segundo direções diferentes e em diferentes momentos de nossa vida. Assim, ao objetivar sentimentos a arte permite ao espectador uma melhor compreensão de si próprio. O segundo fator pedagógico da arte seria a agilização da imaginação, a sua libertação da prisão que o pensamento rotineiro de certa forma lhe impõe. Pela arte, a imaginação pode realizar sua potencialidade, criando sentidos fundados nos sentimentos, desdobrando e detalhando-os. Por isso a arte é também um fator de descoberta: por ela a imaginação descobre e cria elementos até então insuspeitados na maneira de nos sentirmos no mundo; com ela colocamo-nos em posição similar à da criança, para quem a descoberta de novos eventos é motivo de prazer e fantasia. A arte pode constituir-se num elemento liberador justamente por negar a supremacia do conhecimento exato, quantificável, em favor da lógica do coração. Embora quase uma década atrás Mitjáns (1999) já propusesse uma figura ainda mais interessante no sentido de privilegiar a indissociabilidade das funções humanas, o ato criativo parte da configuração personológica da criatividade, máxima expressão de unidade das capacidades cognitivas e afetivas do ser humano.

Até aqui foram considerados dois fatores pedagógicos da arte: a livre atuação da imaginação e o conhecimento de nossos sentimentos que ela possibilita. Por outro lado, temos de considerar que a arte não apenas permite que conheçamos nossos sentimentos, mas também propicia o seu desenvolvimento, a sua educação – fato esse a ser assinalado como o terceiro fator educativo da arte.

Como, então, podem ser desenvolvidos e educados os sentimentos? Da mesma forma que o pensamento lógico, racional, se aprimora com a utilização constante de símbolos lógicos, os sentimentos se refinam pela convivência com os símbolos da arte. O trabalho desenvolvido mediante símbolos lógicos, que conduzem a altos graus de abstração, permite que, pela crescente familiaridade com tais símbolos, o pensamento se agilize e se acure. Igualmente o contato com obras de arte conduz à familiaridade com os símbolos do sentimento, propiciando seu desenvolvimento. Quanto maior é o contato com a arte, maior a bagagem simbólica para representar e, consequentemente, compreender as minúcias do sentimento. O quarto fator pedagógico da arte se situa no âmbito de que a obra de arte, não transmitindo um significado explícito, mas expressando um campo geral de sentidos, possibilita ao espectador a sua compreensão (fruição) segundo seus próprios sentimentos. Na experiência estética a imaginação toma os sentimentos propostos pela obra, ampliando-os e combinando-os em novas modalidades do sentir. A quinta vertente pedagógica da arte diz respeito à oportunidade que ela nos fornece para sentir e vivenciar aquilo que, de uma forma ou de outra, nos é impossível experienciar na vida cotidiana. E isso é a base para que se possa compreender as experiências vividas por outros homens.

Pela arte expressa-se a produção de uma época e de uma cultura. Dessa forma, o sexto fator educativo da arte diz respeito ao significado cultural da educação que a arte propicia. Ao manter-se em contato com a produção artística de seu tempo e sua cultura, o indivíduo vivencia o sentimento da época, isto é, participa daquela forma de sentir comum a seus contemporâneos. Um problema fundamental em nossas culturas polissêmicas é justamente a dificuldade de conseguir, entre os inúmeros sentidos, uma visão do todo cultural. A arte pode, então, vir a fornecer as bases para que essa visão seja conseguida. Em termos interculturais, a arte também apresenta um importante elemento pedagógico. Na medida em que nos é dado experienciar a produção artística de outras culturas, a compreensão dos sentidos estrangeiros torna-se mais fácil. Isso porque, através da arte, pode-se participar dos elementos do sentimento que fundam a cultura estrangeira em questão, o que é o primeiro passo para que, a partir de nossa visão de mundo, interpretem-se os seus sentidos explícitos. Os símbolos estéticos das diversas culturas tornam-se um excelente meio de acesso à visão de mundo de outros povos, o que podemos considerar como o sétimo elemento educativo da arte.

Por fim, como oitavo fator pedagógico da arte, deve-se considerar o elemento utópico envolvido na criação artística. Ao propor outras realidades possíveis, a arte permite que, além de despertar para sentidos diversos, perceba-se o quão distante (ou não) se encontra nossa sociedade de um estado mais equilibrado e harmonioso (mais estético). Assim, a arte pode despertar para o que pode ser construído, para um projeto de futuro, para uma utopia.

Referências bibliográficas

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BERGALA, Alain. L’hipothèse cinéma. Petit traité de transmission du cinéma à école e tailleurs. Paris: Petit Bibliothèque des Cahiers du Cinéma, 2002.
DEWEY, John. A filosofia em reconstrução. São Paulo: Nacional, 1958.
DEWEY, John. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
DUARTE JR., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Papirus, 2007.
FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
GUILFORD, J. P. The nature of human intelligence. New York: McGraw Hill, 1967a.
JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
KNELLER, George. Arte e ciência da criatividade. São Paulo: Ibrasa, 1976.
MITJÁNS, Albertina Martínez. Los estudios sobre creatividad en Cuba: actualidad y perspectivas. Educar, 10, 61-70, 1999.
VIGOTSKY, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Publicado em 30 de agosto de 2011

Publicado em 30 de agosto de 2011

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