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Leitora por acidente

Mariana Cruz

Pensemos no velho dilema sobre o que determina indivíduo, a genética ou o ambiente. Qual desses dois fatores é mais influente? A hereditariedade é transmitida pelos progenitores às células do sexo que vão formar o novo indivíduo. O ambiente é tudo aquilo que cerca tal indivíduo. E o meio diz respeito tanto aos fatores físicos quanto aos fatores sociais em que o indivíduo está inserido. Mas, longe de entrarmos em uma profunda – e interminável – discussão acerca das teorias inatistas, comportamentalistas ou interacionistas, fiquemos só nos interessantes exemplos fornecidos pela literatura, pelo cinema e, quiçá, pelo cotidiano a respeito da influência que o meio exerce sobre o homem.

O clássico filme Sabrina, de 1954, com Audrey Hepburn no papel da filha do motorista de uma rica família, mostra bem como uma mudança de ambiente pode ser decisivo para um upgrade na vida de uma mulher. A moça, depois de crescidinha, vai passar dois anos em Paris e volta linda e refinada, fazendo os patrões caírem de amores por aquele mulherão que ela se tornou. Eis uma mostra do poder glamourizador que a Cidade-Luz pode exercer sobre os humanos mais insossos.

Mas não precisamos ir a Paris para presenciar tal mudança – que nem sempre é tão positiva. O livro O Cortiço é um dos melhores exemplos da teoria de que o homem é produto do meio, ao mostrar como um ambiente degradante é capaz de acabar com a reputação de qualquer protótipo de bom moço. É assim que o português Jerônimo, de início um trabalhador esforçado e disciplinado, abandona gradualmente suas raízes lusitanas e vai “abrasileirando-se” cada vez mais, troca o fado pelo samba, o vinho do Porto pela cachaça e a esposa portuguesa dedicada – por quem tinha muito apreço – pelos encantos da mulata faceira, Rita Baiana.
E o que dizer da transformação da angelical Pombinha, “a flor do cortiço”? A pura garota que, depois do suicídio do pai, fica pobre e é amparada pela prostituta Léonie, com quem acaba se relacionando e passa a ter uma vida de luxúria?

Da ficção para o mundo real isso também pode ocorrer a partir de uma simples mudança de bairro. Pessoalmente testemunhei os novos hábitos de consumo que se instauraram em uma família conhecida minha quando se mudou, há pouco mais de três anos, para a Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Antes, meus conhecidos compunham uma tradicional família do não menos tradicional bairro de São Cristóvão. A casa era da família havia gerações (tanto que no quintal eles tinham um lindíssimo banco dos anos 1920 que lá estava desde então, tendo sido comprado pelo avô do avô). O bairro, oficialmente denominado Bairro Imperial de São Cristóvão no Rio de Janeiro, teve seu período áureo no século XIX, quando o príncipe-regente D. João adotou a Quinta da Boa Vista. Naquela época, boa parte da nobreza escolheu o lugar como residência. Depois, com a volta da Família Real para Portugal, o bairro proletarizou-se: muitas fábricas surgiram e, com elas, imigrantes de diversas partes do Brasil. Com isso, cresceu o número de residências populares que juntaram-se aos casarões dos descendentes de portugueses que ainda hoje moram por lá. No ponto onde meus conhecidos moravam, o centro comercial mais próximo era o Largo da Cancela, que ficava a uns três quarteirões da casa, de modo que faziam suas compras nos grandes supermercados da Barra da Tijuca e só iam à Cancela ocasionalmente consertar um eletrodoméstico ou comprar algum produto de urgência. Devido ao crescente número de assaltos, a família mudou-se para um bairro vizinho, a Tijuca. Lá o comércio é abundante: mercearias, farmácias, délicatessens, lojas de sapatos, do mais chique ao mais popular.

Percebi o quanto tal mudança influenciou no jeito de ser da família. Eles antes tinham mais ou menos os mesmos produtos em casa; agora, a cada visita que faço, deparo-me com diferentes marcas e maior variedade: queijos importados, pastas, bolos integrais. Tudo é motivo para brindar; afinal está tudo ali, tão à mão, tão perto. E nessa variação de consumo os gostos refinaram-se também, assim como as constantes idas ao shopping os tornaram mais fashions e o convívio social com os amigos no clube, mais antenados.

Outra transformação ocasionada pela troca de endereço aconteceu com uma amiga, antes moradora do Centro. Há cerca de dois anos resolveu subir a ladeira e instalou-se no boêmio bairro de Santa Tereza. Lá a vida social é intensa, sobretudo para ela, que é comunicativa por natureza. Assim que se mudou, passou a ser requisitada por todos, nunca era encontrada em casa, mas era só dar uma ronda pelos bares para encontrá-la eloquente e gargalhante. No final de um ano, de muitas cervejas e tira-gostos, adquiriu seis quilos. Medidas urgentes foram tomadas. Cerveja e salgadinhos só fim de semana. E, para evitar o constante assédio dos boêmios locais, começou a utilizar caminhos alternativos no bairro mais alternativo da cidade: as rotas sem bares.

Percebo também a influência do local onde resido não só na minha maneira de ser como na personalidade de minha filha, que, aos três anos, já começa a se desenhar com fortes cores. Segundo alguns amigos, ela é uma “garota-JB”, uma alusão ao Jardim Botânico, onde moramos. O bairro não tem o comércio como ponto forte; para o público infantil, há menos opções comerciais ainda: nada de loja de brinquedos ou roupas de crianças (mas existem dois belos parques, uma pracinha e a Lagoa, que suprem, mesmo que momentaneamente, qualquer desejo das crianças por um ou outro produto). Perto de casa tem apenas uma livraria onde funciona um bom café. Assim, meus presentes de última hora são sempre livros. Já estou até ficando marcada. Toda semana, ou quase, dou um pulo lá, especialmente nas tardes de domingo, quando faz frio, seja para tomar um café, folhear um livro ou para atender a um pedido da minha pequena. Sempre que entramos, ela já corre para a seção infantil, senta-se num pufezinho laranja e começa a folhear os livrinhos que mais chamam a sua atenção. Depois de muito olhar, pergunta se pode levar este ou aquele. Foi assim que, sem planejar, ela acabou se afeiçoando ao lugar. Numa dessas tardes, passando lá por perto, ela disse: "Mãe, vamos na loja de livros?” (ela não chama de livraria, para ela é “loja de livros” sabe-se lá por quê). Como já tínhamos ido lá na véspera e ela já tinha adquirido um livrinho, recusei, alegando que tínhamos compromisso. Ela não se convenceu, e, do lado de fora, na frente das mesinhas onde algumas pessoas tomavam seu café, ela começou a fazer birra (que as crianças de três anos fazem com uma teatralidade impecável), pedia chorando para eu comprar um livro, “um livrinho, mamãe, só um”; aí me virei para ela: “Filha, você já ganhou um ontem e ainda nem leu, já cheia de livros”; “Só mais um, mamãe”. Uma moça de cabelos vermelhos que estava em uma das mesas não se conteve começou rir da inusitada cena. Afinal, seria mais adequado se o objeto do desejo fosse um brinquedo, uma boneca ou uma roupa de princesa, mas... um livro? Não vejo como mérito nem demérito tal gosto por livros, a historinha é somente para ilustrar o quanto o ambiente em que se vive pode influenciar os gostos pessoais, ou pelo menos fazer aflorar algo que, se o ambiente fosse diferente, não afloraria. Provavelmente, se no lugar da livraria houvesse uma loja de brinquedos onde eu fosse com a mesma frequência, o choro de minha pequena seria para comprar uma Barbie, “só uma”.

Foi assim que, graças à única livraria perto de casa, minha filha acabou se tornando uma leitora (mesmo que ainda não leia) por acidente.

E, apesar do riso da ruiva, não entrei no estabelecimento. O livro Estela, fada da floresta, adquirido no dia anterior, ainda aguardava para ser lido.

Publicado em 30 de agosto de 2011

Publicado em 30 de agosto de 2011

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