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A MPB sempre renova a MPB

Alexandre Amorim

A nostalgia é uma tecla em que se insiste em bater quando se trata de música brasileira. João Gilberto era estranhado pelos fãs dos cantores de vozeirão e pelos puristas que não queriam saber de jazz no samba, músicos saíram às ruas para gritar contra o uso da guitarra na MPB, defensores de antigos carnavais abominam a transformação do samba-enredo em marcha. Provavelmente alguns críticos ainda hoje devem lamentar a evolução do lundu.

Acontece que essa nostalgia nem sempre é sinônimo de paralisação, de se postar em algum lugar do passado e não querer mais sair dele. Alguns nomes da música brasileira mostraram (e mostram) que é possível ouvir o antigo, trazer para o que é contemporâneo e gerar, dessas diferentes estéticas, uma nova concepção artística. Este artigo quer fazer um apanhado de canções e autores que navegam sem se preocupar com a direção cronológica e acreditando que a colisão de estilos e épocas seja uma vantagem estética maior do que a guarda de uma pureza que já não há em solo pátrio desde a polca, ou desde antes.

E provocar aqueles que não acreditam nesse navegar.

Provocação, é claro, lembra Caetano Veloso. Mas, ao contrário da mediocridade de provocar para chamar a atenção para si, o cantor baiano faz de sua música e sua palavra um estímulo à crítica. Alegria, alegria, a canção que é uma crônica e uma marchinha, foi apresentada contendo o gene do Tropicalismo: a marchinha do coreto se mistura à universalidade de quem anda sem lenço e sem documento. Caminha contra o vento, é contra o senso comum que determina que a música brasileira deve seguir antigos dogmas – ou seja, ter o ritmo ligado ao samba, com instrumentos, melodia e harmonia ligados ao samba. Como A Banda, de Chico Buarque, por exemplo. Caetano subverte a marchinha, com uma banda argentina tocando instrumentos de rock e com uma harmonia mais ligada à música americana.

Mas não se enganem: a música de Chico também não é mera continuidade de uma MPB cheia de regras. Se Chico respeita os cânones musicais da MPB, a letra serve para subverter a situação melancólica em que se encontrava a sociedade civil brasileira na época. A lembrança da velha banda como animadora de uma cidade é ferramenta poderosa na mão do autor para aprontar uma tentativa de mudança que acabou não havendo – “tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou”.

E, por falar em Chico subverter os cânones da MPB, ele mesmo já brincou de rapper, com Ode aos Ratos. Aliás, aproximando o rap da canção, como ele fez, Chico também aproxima dois tipos de declamação musicada: o rap e a embolada, como bem verificou o crítico e músico Arthur Nestrovski (leia o artigo). A canção resiste, às vezes subjacente, às vezes paralela, ao recital poético. A música brasileira se embola em mais uma relação multiétnica.
Gilberto Gil sempre foi um representante da miscigenação musical, e cedo mostrou essa tendência. Em seu primeiro disco havia baião, samba, bossa-nova e letras que falavam de procissões religiosas, louvações, foguetes e satélites artificiais. Mas seu desejo de renovar a MPB ficou claro em 1967, quando trouxe os Mutantes devidamente plugados em suas guitarras para o palco do Festival de Música da Record para cantar Domingo no Parque. Ele mesmo já saíra em marcha contra as guitarras, mas logo reparou no erro de ignorar mais um instrumento a serviço da sua música. Assim, o sangue, a faca e a rosa de João, José e Juliana vieram a público vestidos com elementos psicodélicos, rostos pintados, sons elétricos misturados aos ternos de Gil e da orquestra – e ao som tradicional do violão e dos instrumentos clássicos que costumavam reinar na MPB. Era uma tradução do que os tropicalistas queriam defender: engolir tudo, tudo digerir.

Do tropicalismo surgiu, também, o maracatu atômico, um tanto tardiamente. Jorge Mautner trazia a mescla da música brasileira com instrumentos eletrônicos – e confirmava sua intenção ao citar a arte de um porta-estandarte que dançava ao som de um maracatu eletrônico em meio a arranha-céus. A impressão de uma estética brasileira (moderna, mas ainda barroca; buscando raízes, mas influenciada pelos estrangeirismos) é justamente a chave para compreender que essa estética já bebeu e ainda pode beber de várias fontes.

Mas nem só de tropicalismo vive a renovação da MPB. Se nos anos 60 a Jovem Guarda fazia versões de rocks americanos e dava início a um tipo de composição que iria mesclar baladas americanas, bolero e MPB, nos anos 80 grupos de rock surgiam nos quatro cantos do país para uma volta ao rock americano, que serviu para que alguns compositores compreendessem que a canção brasileira pode se renovar por outros vieses que não só a bossa-nova ou o psicodelismo.

Até que uma certa estridência se ouviu do Nordeste, pela voz de Chico Science (e pelo instrumental do Nação Zumbi). Uma onda veio renovar a proposta roqueira dos anos 80. Agora éramos obrigados de novo a olhar para o próprio umbigo e ver como cabia sujeira ali. Sujeira musical, dissonâncias, percussões além do volume esperado, voz de oprimidos da lama a ser ouvida nas praias do Rio. Tudo isso em releituras de maracatu e samba. A percussão do Nação Zumbi chegava para mostrar que a MPB ainda tinha caminhos novos para seguir. E que a canção pode ser feita para se cantar, mas não necessariamente da forma como se cantava antes. Se houver um banquinho e um violão, os dois vão servir de percussão. Chico Science e a trupe de Pernambuco trouxeram novas harmonias à nossa música.

A MPB se renova de música popular brasileira. O samba dos mestres fez ver que era rico o bastante para ser lido tanto por violões dissonantes quanto por tambores amplificados.

Publicado em 6 de setembro de 2011

Publicado em 06 de setembro de 2011

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