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Sobre a Filosofia da Natureza de Schelling

Marlon Tomazella

A origem da postura propriamente filosófica e a filosofia moderna

Schelling afirma que o primeiro filósofo foi aquele que, diante da sucessão das representações dos objetos, conseguiu se distanciar da imersão nessa sucessão, separando a representação enquanto tal dos objetos que ela apreende. Ou seja, diante de tudo aquilo que lhe aparece (as coisas ao seu redor, suas sensações diante das coisas, os pensamentos e sentimentos suscitados nele pelas coisas), foi-lhe possível se distanciar, ao invés de ser afetado pelas coisas e simplesmente reagir imediatamente. A representação sendo aqui entendida como o elemento do conhecimento presente no sujeito que conhece, e não nas coisas por ele conhecidas – pois sujeito e objeto seriam os dois elementos que constituem o conhecimento para a Filosofia moderna.

É somente a partir desse rompimento originário que se torna possível colocar em questão a efetividade da realidade, pois enquanto simplesmente há representação não refletida dos objetos, estes e o sujeito representante são como que uma mesma coisa – o que ocasiona a convicção do senso comum na realidade do mundo externo é justamente esse não pôr-se como praticante da cisão que pensa na atividade do próprio representar, abstraindo daquilo que é representado. É por isso que, para a maioria das pessoas, é até mesmo absurdo questionar a existência ou os modos de apreensão do mundo exterior pela nossa mente, pois as pessoas estão sempre imersas na vida e nas ocupações (ou seja, realizando representações não refletidas dos objetos), não se interessando em colocar-se em parênteses para analisar o nível de correção de suas apreensões. Quem faz isso é o filósofo, e, a pergunta sobre o nível de correção da apreensão humana do mundo ao seu redor (o mundo externo) é a pergunta por excelência da Filosofia moderna. O que significa que o filósofo é aquele que rompe a identidade originária entre sujeito e objeto ao colocar a questão: "como surgem representações de coisas exteriores em nós?" (Schelling, 2001, p. 42). Com esse ato, a princípio, concede-se à realidade exterior uma independência ontológica, quer dizer, se a considera como um ser completamente distinto e independente daquele que a representa (que a vê, a sente, pensa sobre ela), ao mesmo tempo que se pensa numa conexão estabelecida entre ela e nossa representação, pois, afinal de contas, representamos coisas, relacionamo-nos com coisas existentes ao nosso redor. Na necessidade de admitir a conexão entre a representação e o objeto, fazemos uso do único critério de que dispomos para estabelecer a ligação entre duas coisas diferentes: a relação de causalidade. Ou seja, a Filosofia nasce da separação do que era unido no intuito de explicar como essa unidade ocorre; ela nasce separando, abstraindo, e a primeira forma de a filosofia tentar compreender a relação entre os dois polos fundamentais então cindidos (sujeito e objeto) é por meio da relação de causa e efeito. Como isso ocorre?

Essa tendência primeira de atribuir independência ao objeto diante da representação (a ideia de que as coisas estão aí dadas independente de nós) ocorre porque as coisas, de uma forma ou de outra, sempre se apresentam à nossa representação; cabe a esta realizar a correspondência adequada para conhecer efetivamente o objeto ou não. Ou seja, ao mesmo tempo que postula-se a independência do objeto, pensa-se na dependência da representação, pois, para que seus conhecimentos sejam reais, ela depende dessa habilidade, dessa capacidade de estabelecer a ponte adequada entre ela e os objetos; ela tem que conseguir se adequar aos objetos para conseguir conhecê-los de forma correta. Ela é obrigada a assumir essa posição de dependência ao pensar na relação de causalidade; ela não pode ser pensada como causa do objeto, mas, ao contrário, a partir da consideração da independência do objeto. Este passa, então, a ser considerado causa da representação. Quer dizer, pensando na relação de causalidade, os objetos seriam a causa de nossa representação sobre eles. Nossas representações seriam o efeito.

Ou seja, até esse ponto, Schelling expõe um modo de consequência da cisão originária que a Filosofia empreende como aquilo que o filósofo Kant entendeu por dogmatismo presente na história da metafísica: pressupor a existência de coisas como o fundamento a partir do qual a própria representação é possível, ou seja, a pressuposição de que as coisas estão aí dadas com suas propriedades diante de nossa representação e que, por meio de uma dinâmica acertada de adequação dessa (representação) àquelas (coisas), poderíamos criar representações que correspondessem às coisas mesmas. Trata-se do conceito de adequação da teoria do conhecimento da Modernidade. Mas, ainda que Schelling permaneça fiel a alguns pressupostos da crítica kantiana, ele não se contenta com o modo como Kant estabelece a limitação à nossa capacidade cognitiva ao restringi-la à percepção de fenômenos (quer dizer, restringi-la à superfície, ao modo somente como as coisas aparecem para nós, e não do jeito que elas realmente são, pois, para Kant, nosso conhecimento não teria esse poder de conhecer as coisas realmente do modo como elas são). Schelling visa ir além de Kant e, ao mesmo tempo, não cair no dogmatismo já combatido por ele. Pois, a seu ver, a única forma de garantir a realidade do saber humano é por meio da demonstração de que a representação e o objeto estão unidos em nós, e assim como por um ato de liberdade estabelecemos a cisão originária ao colocar a questão acerca de como se dão as representações em nós, seria necessário, também por um ato de liberdade, restabelecer essa unidade originária. A separação originária se deu em liberdade por conta da saída efetuada pelo sujeito da conexão causal natural e necessária em que ocorrem os fenômenos em geral, quando o sujeito se coloca como uma causa que não é causada por nada externo a si mesma. Diante dessa autoposição, tanto a perspectiva do dogmatismo – que pressupõe o objeto como causa da representação – quanto a perspectiva kantiana – que entende que os objetos são como são para nós, devido ao modo como eles são adequados ao nosso modo de conhecer – estabelecem e perpetuam a cisão que Schelling visa superar.

Apesar desse objetivo de Schelling, ele leva em consideração princípios da filosofia de Kant e afirma que só em nossa representação conhecemos as coisas, ou seja, que o que quer que elas possam ser precedendo a representação que temos delas não nos diz respeito e é desprovido de sentido, pois para isso "nós não temos conceitos" (2001, p. 44), não temos acesso e se trata de uma preocupação inútil que em nada contribui para o melhoramento de nosso conhecimento.

Assim, contrariamente à primeira tendência de manejo da relação entre causa e efeito, a partir da colocação em questão do como se dá o fato de que eu represento, na verdade, segundo Schelling, não há submissão à precedência do objeto em relação à representação; mas, pelo contrário, pois aquele que coloca essa questão (“como eu conheço as coisas?”) se põe acima da própria representação com os objetos por ela representados, ou seja, afirma-se como independente das coisas exteriores, tendo “um ser em si mesmo" (Schelling, 2001, p. 44). Trata-se justamente daquela liberdade, daquela causa incausada que estabelece a brusca fenda entre matéria e espírito e se contrapõe a uma visão de mundo mecanicista, por escapar às relações de causa e efeito; ao mesmo tempo que coloca um problema: se há essa independência do sujeito capaz de se colocar a questão de como as representações são possíveis, como é possível que esse mesmo sujeito que se eleva para além da causalidade seja afetado pelas coisas externas? Pressupondo-se que coisas somente afetem coisas, e o sujeito já foi compreendido como uma instância acima da coisificação do mundo de causa e efeito. Em suma, diante da questão clássica da teoria do conhecimento moderna "como é possível o mundo externo?", Schelling visa uma outra: como que essa sucessão de fenômenos independente de nós é representada como tal por nós de forma necessária? E essa pergunta se estrutura na aparente incompatibilidade entre um espírito livre e a matéria determinada pela causalidade: como o incondicionado (a liberdade, o espírito) pode ser determinado (ou seja, condicionado, limitado)? E, ainda mais, por algo que é condicionado (a matéria ao meu redor)? Ou ainda formulado de outra forma: "que é pressuposto o fato inegável de que a representação de uma sucessão de causas e efeitos fora de nós é tão necessária ao nosso espírito, como se essa sucessão pertencesse ao próprio ser e essência do espírito. Esclarecer essa necessidade é o principal problema de toda filosofia" (Schelling, 2001, p. 68). Se é a representação que causa o objeto, ou seja, se ele é fruto da autoposição livre do ente que representa (o ser humano), se o objeto é efeito dela, por que consideramos os fenômenos como acontecimentos em si mesmos, e não como resultado da aplicação de nossas categorias do entendimento, como, por exemplo, da causalidade? Contemplamos a sucessão dos eventos de modo a procurar suas causas nos próprios fenômenos, e não em nós, no modo como representamos; entendemos que a sucessão dos eventos é uma sucessão das próprias coisas, que nossa representação não tem o poder de interferir nessa sucessão. Esse caráter necessário do fundamento da sucessão residente nas próprias coisas obriga a nossa representação a representar de acordo com a ordem em que as coisas se apresentam, de modo que os fenômenos e a sucessão em que eles ocorrem são inseparáveis, mantendo uma relação recíproca necessária. Cabe então pensar se essa dupla inseparável de fenômeno e sucessão ocorre nas coisas mesmas ou em minha representação. Mantendo-se fiel – até aqui – à filosofia transcendental de Kant, Schelling reafirma a impossibilidade do acesso a algo que prescinda de nossa representação ao dizer que a sucessão só é possível a partir da nossa representação, de que não existe sucessão pensável sem que haja um ser que a represente e que lhe conceda efetividade justamente por meio do ato de representá-la.

Tendo em vista a coisa em si (o eu que representa) como o incondicionado, o que resta quando se suspende tudo que se refere à representação? Pois não é essa a condição de uma causa incausada? A resposta de Schelling é: somente o eu é esse algo que resta, o qual é, na verdade, o princípio de toda a filosofia. Mas Schelling se distancia de Kant a partir do momento em que, por considerar a existência de um tipo de intuição que não é empírica (como a dos nossos cinco sentidos), mas sim intelectual, o acesso ao incondicionado seria possível por meio da intuição do próprio eu pensado de um modo que tivesse um "passado transcendental" (Barbosa, 2005, p. 56). Compreendamos melhor o que isso significa.

A influência da intuição intelectual de Fichte

Já no filósofo Fichte a intuição intelectual tem papel fundamental para a dedução da afirmação fundamental de toda a filosofia. Em sintonia com a filosofia transcendental de Kant, Fichte afirma que um ser ou uma coisa só é para um sujeito que a representa, e por isso o conceito de ser não é um conceito originário, mas derivado. Schelling, a princípio, em concordância com Fichte, afirma a autoposição do eu (ente livre, que é causa mas não é causado) antes de qualquer não-eu (o mundo dos objetos), evitando assim deduzir o incondicionado do condicionado. O não-eu não pode ser fundamento do eu, pois com isso seria inviabilizada a liberdade cognitiva do eu que faz com que os objetos girem ao seu redor (cabe lembrar o sentido da revolução copernicana em Filosofia empreendida anteriormente por Kant, quer dizer, ao invés de girarmos em torno dos objetos, são os objetos que se adéquam às nossas capacidades de conhecimento). Conforme a filosofia de Fichte, se o eu é independente do não-eu, o seu ser se concentra no interior dele mesmo, sendo captado só por ele "na absoluta atividade de uma reflexividade primeira" (Ibid). Assim, o sujeito absoluto é dado por uma intuição intelectual, e não por uma intuição empírica (ou seja, vendo, ouvindo, sentindo).

Fichte afirma que não se pode estabelecer a possibilidade do eu por meio de conceitos prontos ou construídos, pois é necessária a liberdade e a autoexperimentação, a autorreflexão, de pensar a si mesmo e observar como se dá o procedimento de construir esse conceito de eu. Encontrar-se-á no pensamento desse conceito a atividade que retorna a si, fazendo de si mesma objeto. O eu surge de fato nesse retorno a si mesmo, nessa ação sobre o próprio agir; isso constituiria a intuição intelectual. O conceito se refere a alguma coisa, enquanto a intuição se percebe de forma imediata no movimento da própria mente de voltar-se sobre si mesma. O eu se percebe enquanto um estado de ação, e, por ser pura atividade, quando o filósofo tenta apreendê-la, ela já se furtou. Assim, o fundamento primeiro do conhecimento não pode se tornar conhecimento, pois todo saber brota da reflexão, a qual é sempre limitada, condicionada. A compreensão do eu como atividade tem como pressuposto a recusa do princípio do ser na filosofia, em prol do de atividade. A intuição intelectual é o saber incondicionado do incondicionado (unbedingt); assim não pode se referir a um ser qualquer, a uma coisa (Ding), pois uma coisa só se torna coisa quando é condicionada (bedingt), delimitada. Assim, uma coisa incondicionada seria uma contradição. Por isso, aquilo que se põe a si mesmo não pode pôr-se como coisa, pois então estaria sujeito a condições, não sendo portanto incondicionado – o eu seria justamente o ente que não é condicionado originariamente por nada.

Para Fichte, é no imperativo categórico (“aja de tal modo que sua máxima possa ser universalizada”) que a intuição intelectual se evidencia melhor, pois aí se mostra a espontaneidade do absoluto, pois pela moral eu posso me perceber como autoativo numa tarefa infinita de aperfeiçoamento que consiste na constante expansão do eu sobre o não-eu (por exemplo, controlando os meus impulsos e instintos por meio do meu espírito), a autodeterminação em oposição à sujeição ao exterior; a natureza (não-eu) é vista como resistência à atividade moral, a Bildung – o processo de formação humana – passa a consistir na "habilidade de, em parte, suprimir e eliminar as inclinações deficientes surgidas em nós mesmos antes do despertar de nossa razão e do sentimento de nossa autoatividade; e em parte, de modificar as coisas fora de nós e alterá-las conforme o nosso conceito" (Fichte, Zeno.org-Meine Bibliothek); o mundo exterior é privado de legitimidade ontológica, quer dizer, ele não é de forma tão legítima como o eu é.

O modo como Schelling se apropria da filosofia de Fichte e a transforma numa filosofia da natureza

Schelling, por outro lado, sempre tentou se livrar desse excesso de concentração no eu e na moral, pois, a seu ver, a causalidade do eu não pode se restringir à moral e ao saber, mas deve ser entendida como poder absoluto voltado para o infinito, dentro do qual a moral e o saber ocupam lugar bem delimitado. Ele pensava ser necessária uma lei superior, à qual elas se submetessem e se circunscrevessem. Essa lei seria a lei natural, e nisso consistiria o advento da filosofia da natureza: a compreensão de que uma atividade livre e inconsciente se dá no mundo em geral e na mente. Ocorreria na natureza a mesma atividade absoluta que ocorre na autoposição do eu por meio da intuição intelectual, mas de uma forma sem consciência de si, envolvida num processo de tomada de autoconsciência que culmina na mente humana. Assim, Schelling expande a intuição intelectual de Fichte para o eterno na medida em que entende a natureza como uma produtividade infinita, de uma forma livre da limitação da finitude da consciência, de modo que, sem negar a unidade transcendental de sujeito e objeto dada pela intuição intelectual, ele concede objetividade à natureza.

O modo de fazer isso sem cair no dogmatismo é atribuir espiritualidade à própria natureza, e, ao invés de entendê-la como não-eu, encará-la como uma manifestação do eu absoluto ainda inconsciente de si. Pois o que Fichte tinha feito foi expor o lado subjetivo da filosofia sendo que, segundo a perspectiva de Schelling, um idealismo, para ser absoluto, tem que abranger a natureza. Assim, passa a não ser mais o eu consciente (individual, humano) o que produz o mundo. O eu passa a ser pensado originariamente, quando ainda sem consciência de si, antes do abrir do olho livre da consciência de si como atividade absoluta; esse acontecimento é ele mesmo um estágio do devir da plena consciência que alcança seus resultados por meio de diversos estágios no interior da natureza.

Se a natureza passa a ser considerada um modo não consciente de si de manifestação do próprio eu absoluto, do espírito, passa a não ser mais questão colocar em dúvida a sua existência, pois ela seria um momento do não saber no decorrer do processo que chega à consciência. O abrir do olho consciente vê somente o resultado desta atividade originária diante de si, desta atividade que também o produziu, ele, o eu consciente que representa; pois não foi ele que a produziu, ele foi produzido por essa atividade absoluta, ainda que de forma inconsciente. Desse modo, o eu possui um passado, e cabe à filosofia da natureza reconstruir esse processo que chega a um estágio em que aparenta ser um produto independente (o eu consciente); cabe a ela mostrar como, na verdade, subjaz uma unidade originária a partir da qual foi possível constituir a própria representação. É somente assim que Schelling vislumbra a possibilidade de ver a natureza como livre em sua atividade, pois o mundo inconsciente consistiria somente em estágios preparatórios, ensaios para o surgimento do eu consciente. Assim, se a natureza participa dessa autoposição livre por estar impregnada de espírito organizador e autorregulador (como ocorre no eu consciente), passa a ser possível pensar na superação da cisão entre especulação e experiência, mundo exterior e mundo do pensamento, o "sistema da natureza é ao mesmo tempo o sistema do nosso espírito" (Ibid, p. 63).

A proposição "eu sou" só tem sentido na medida em que se pensa que ela é resultado de um vir a ser exterior, pois, segundo Schelling, só vem a si o que estava exterior a si. O eu da filosofia da natureza é universal, para além dos indivíduos, mas de modo que em cada indivíduo ele está plenamente presente. A consciência que conhecemos é só o fim do caminho que ela percorreu anteriormente. O eu individual não encontra em si esse processo anterior; cabe ao filosofo mostrar como o absoluto vem a si mesmo. A filosofia constituir-se-ia então como recordação deste processo.

Se o ponto de partida de Schelling é o de uma duplicidade que é unida originariamente, ela se compõe de um lado ideal (subjetivo) e de outro real (objetivo), de modo que há a presença da natureza na consciência e a presença do espírito na história do mundo natural inconsciente, de modo que o eu absoluto se dá tanto na reflexão quanto até mesmo na natureza inorgânica. Assim, poder-se-ia falar como que numa "odisseia da consciência", em que o encontro de si do eu que ocorre na consciência humana seria um resultado, depois de passar pelo inorgânico e pelo orgânico, em que ele recorda o seu caminho.

Evitando o ser e considerando a atividade como o que contém o incondicionado, Schelling concorda com Fichte; mas ele o extrapola quanto à abrangência do absoluto ao pensar numa atividade do cosmos, conferindo realidade (ao invés de somente idealidade) à autoatividade livre do absoluto. Assim, a natureza, como natura naturans (natureza criadora), é incondicionada, como livre atividade; e seus produtos, suas manifestações, constituem o condicionado da natura naturata (natureza já criada). De modo que uma questão que passa a ser problemática se refere justamente ao modo da passagem de uma para outra.

A série infinita das coisas reais seria a constante exposição "de uma infinitude intelectual ou ideal" (Ibid). Se é por meio da limitação, da determinação que homem toma consciência de si, fazendo de si um objeto para si mesmo, ele suspende uma parte da atividade absoluta para poder refletir sobre a outra. Mas se Fichte compreendia essa limitação como o ato do eu pôr o não-eu como oposto a ele, para Schelling isso que Fichte chamava de não-eu (o mundo externo) é o próprio eu absoluto, a consciência universal, só que ainda não ciente de si. Assim, o que é mais próprio da consciência do eu é o dar-se conta de que ele é constituído por uma duplicidade originária, a qual estaria presente em todos os entes da natureza. Essa duplicidade se refere a todos os tipos de oposição residentes na Química, na Física e na dinâmica da vida como um todo, como a relação estreita entre vida e morte, atração e repulsão, polos positivo e negativo, união e desunião, inspiração e expiração, sístole e diástole, forças centrífuga e centrípeta, de modo que o eu absoluto é composto essencialmente por polaridades. De modo que os seres seriam como que resistências à força centrífuga do eu absoluto, com tendência infinita e incondicionada para se expandir sem delimitações; os entes particulares seriam obstáculos a essa expansão infinita, frutos da contradição originária da natureza. A produtividade seria infinita (a natura naturans), enquanto a permanência dos produtos seria aparente em meio à atividade produtiva, de modo que a forma de cada produto (cada coisa que existe), por ser uma estabilização temporária em meio à inexorável autoprodução da natureza, nunca seria uma forma fixa. Os produtos seriam a constante determinação dessa atividade produtiva indeterminada.

Para que a natureza possa ter produtividade absoluta, o fundamento de sua determinação precisa residir nela mesma. A negatividade (determinação, delimitação, existência fenomênica), quando vista de um ponto de vista superior, é sempre novamente positividade, pois o negativo é parte constituinte do positivo que constitui a identidade absoluta. A natureza, por ser identidade do real e do ideal, contém em si a possibilidade da não identidade, o que evidencia o caráter dúplice de sua identidade e explica a presença do negativo como elemento constituinte de uma dialética que precisa de opostos para se dar e se superar continuamente, para assim, serem colocadas novas contradições, e assim por diante – para que a dinâmica de vida, crescimento, morte e vida de novo siga adiante. A natureza é originariamente discórdia, e somente assim os produtos empíricos são possíveis. A resistência, o obstáculo que possibilita o fenômeno (a vinda de qualquer ente ao mundo) é reabsorvido na força produtiva positiva (por meio da morte e da dissolução), para em seguida fazer surgir outro obstáculo e novamente ser reabsorvido, infinitamente; trata-se de um "contínuo devir produtivo" (Ibid, p. 68), em que o produto é, a cada vez, anulado e reproduzido novamente. É por isso que a multiplicidade dos seres da natureza, apesar de lutarem sempre entre si, nunca se exterminam completamente, pois a dialética orgânica nunca se esgota, conservando o equilíbrio. É importante lembrar que essa passagem da infinitude ideal para a infinitude real segue graus de devir. Já no magneto (no ímã) aparece a discórdia da duplicidade positivo/negativo, de modo que um polo não é perceptível sem o outro; é a oposição que possibilita a identidade dos polos, sem que um seja suprimido pelo outro.

Para fundamentar a idealidade da natureza, Schelling toma como exemplo e instrumento privilegiado o caráter autorregulativo presente nos seres organizados, nos seres orgânicos: no modo como sua constituição exige alguma outra forma de explicação que não seja a causalidade mecanicista – o que, por sua vez, nos coloca novamente no interior do pensamento sobre uma autoprodutividade da natureza em que seus produtos organizados seriam constituídos como que por uma finalidade interior, uma conformidade a fins, sendo esta não mais somente uma prerrogativa do sujeito consciente. Nada no orgânico é sem utilidade ou finalidade para ser considerado uma mecânica cega. Além disso, o mundo, entendido como um relógio, como em Descartes, torna-se algo problemático como poder explicativo, pois o relógio não é causa de si mesmo, não se reproduz nem se organiza – pois Kant também já tinha observado como certos organismos, quando submetidos a alguma perda importante, são capazes de se reestruturar, remanejando sua própria organização de forma autônoma.

Schelling, inspirando-se em Kant, afirma: "mas o mecanismo não é nem de longe o que constitui a natureza" (Schelling, 2001, p. 86), justamente pelo fato de que todo organismo é independente de qualquer outro ser, produzindo-se e se reproduzindo somente a partir de si mesmo, dando continuidade somente ao seu próprio gênero e não a qualquer resultado diferente. O orgânico produz sempre algo idêntico a si mesmo, por isso a causalidade – que serve para explicar a relação entre coisas distintas – não serve para explicar a estrutura de funcionamento do orgânico, pois ele (em sua espécie, por exemplo) não é causa nem efeito de algo diferente dele mesmo. O seu caráter fechado sobre si ocasiona a necessidade de que cada parte que o constitui somente possa surgir numa relação com a totalidade do organismo; essa totalidade mesma nada mais é do que o constante resultado do efeito recíproco dessas partes. No corpo orgânico a relação entre as partes e o todo é necessária, é objetiva, real; essa relação recíproca entre parte e todo constitui o que Schelling chama de "conceito", de modo que o conceito constitui a essência daquilo que existe de modo conforme a fins (visando alguma finalidade). Assim, um ente só pode se organizar se já for organizado, pois uma planta, por mais que se nutra de elementos externos, só o faz por já ser organizada de tal modo a poder fazê-lo, pois "só a partir da organização se forma organização" (Ibid, p. 88). A causalidade seria algo numa instância somente fenomênica, enquanto a organização seria objeto mesmo, em sua pura realidade, que consiste só em si mesma, onde matéria e forma são inseparáveis, pois aqui elas não estão mais somente em nossa representação, mas de forma originária e necessária no objeto mesmo. A vida mesma passa a ser fundamento do suprassensível das coisas, incondicionada, não-criada, autônoma, de modo que o orgânico seria a correspondência no real de que a intuição intelectual é efetiva. E por quê? Na 8ª Carta sobre o Dogmatismo, ao falar sobre uma "atividade secreta" que reside em nós e que possibilita nos retirar das mudanças do tempo para o nosso interior, e aí encontrar o que há de imutável e eterno em nós, Schelling afirma que é somente por meio dessa experiência imediata – a intuição intelectual sobre o eu absoluto – que é possível que concebamos um mundo suprassensível; além disso, é somente nessa experiência imediata que podemos conceber algo como real, como algo que é efetivamente, ao invés de ser somente fenômeno:

É de "experiências", de experiências imediatas, que tem de partir todo o nosso saber: isto é uma verdade que já foi dita por muitos filósofos, aos quais, para chegarem à verdade plena, nada faltou além da explicação sobre o modo daquela intuição. É certamente da experiência, mas – como toda experiência que visa objetos é mediada por outra – de uma experiência imediata no sentido mais restrito da palavra, isto é, de uma experiência produzida por si mesma e independentemente de toda causalidade objetiva, que nosso saber tem de partir. Esse princípio – intuição e experiência – é o único que pode inspirar vida ao sistema morto e inanimado; mesmo os conceitos mais abstratos, com os quais joga nosso conhecimento, estão presos a uma experiência que visa a vida e o estar-aí
(Schelling, 1979, p. 24).

Assim, por meio da intuição intelectual seria possível superar a finitude de nosso entendimento e estabelecer o contato com o absoluto, fazendo ver que ele, como substância cósmica, é a própria força vital que a tudo impulsiona. A correspondência entre intuição intelectual e efetividade objetiva (a natureza) se dá por ambas participarem do mesmo movimento originário que é a força autoconstitutiva, que constitui a si mesma; só é possível perceber essa dinâmica autônoma nos entes orgânicos justamente por conta da intuição intelectual que possibilita a compreensão imediata da unidade do eu como a unidade espiritual que rege o cosmos, evitando assim o solipsismo fichtiano, porque ao se intuir o eu, se intui o mundo, pois o universal, em sua dinâmica de funcionamento, nos perpassa, como um dos produtos de sua produtividade infinita – com a peculiaridade de ser consciente de si. Assim, a concepção de organismo de Schelling realiza a junção entre liberdade e necessidade: esta seria a materialidade fenomênica sujeita às leis da causalidade, e aquela a própria vida autônoma do organismo.

Desse modo, Schelling aponta para a insuficiência dos pressupostos científicos da Física mecanicista para explicar o fenômeno da existência da natureza como um todo e da vida em particular, assim como do modo de a metafísica até então lidar com a questão do mundo externo. O equívoco sobre o conceito de matéria conservaria o pressuposto de que, se a matéria tem a qualidade essencial das forças, e de que força só se exerce sobre outra força, todo movimento, por exemplo, seria resultado de uma força aplicada sobre outra – o que não seria diferente na consideração dos corpos orgânicos. Assim, forças são sempre finitas e só existem na relação com outras forças. Só existem duas possibilidades de relação entre forças: ou há um "equilíbrio relativo" a que se chama repouso ou inércia; ou um constante conflito, característico da matéria viva. Schelling, por sua vez, vê a necessidade de um terceiro elemento que seja capaz de sustentar a continuidade desses equilíbrios na relação das forças. Esse princípio superior deve estar para além de todos os limites das ciências naturais empíricas: esse princípio é o espírito (Geist), pois é somente ele que pode representar as forças e o equilíbrio entre forças, de modo que a vida surge de um princípio espiritual. Mas, ao falar do espírito, Schelling não se refere somente ao sujeito cognoscente consciente, mas a um espírito no interior da natureza que, à semelhança do nosso espírito humano, constrói a efetividade a partir de si mesmo, ou seja, de forma imanente; há um poder produtivo na natureza que também nos perpassa, a ponto de ele afirmar que a natureza deve "não somente expressar necessária e originariamente as leis de nosso espírito, mas realizá-las" (Schelling, 2001, p. 114).

Assim, podemos concluir este escrito dizendo que é por meio da intuição intelectual como consciência de si que se faz possível o acesso ao absoluto. O absoluto se refere a uma atividade originária que transpassa todos os seres de forma inconsciente e produtiva. Essa atividade se transmuta na diversidade das coisas existentes, tanto do mundo orgânico como inorgânico, até chegar à consciência expressa no ser humano, de modo que se torne possível restaurar a identidade dessa atividade originária absoluta por meio da compreensão filosófica de como se dá essa unificação, junto do auxílio das ciências naturais – as quais constituiriam o texto que caberia à filosofia interpretar.

BIBLIOGRAFIA

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KANT, Imannuel. Kritik der Reinen Vernunft in Werke (Band II). Frankfurt: Insel Verlag, 1964.

KANT, Imannuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

SCHELLING, F. W. J. Cartas sobre o Dogmatismo. Seleção, tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Coleção Os Pensadores.

SCHELLING, F. W. J. Ideias para uma filosofia da natureza. Prefácio, introdução, notas e apêndices de Carlos Morujão. Edição bilíngue. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001.

Publicado em 13/09/2011

Publicado em 13 de setembro de 2011

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