Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Sobre a preguiça – primeira parte

Alexandre Amorim

Preguiça e produção

Quase todo defensor da preguiça recorre à etimologia para mostrar que trabalho é sinônimo de suplício. A palavra vem do latim, tripalium, uma armação de três paus entrelaçados que servia como instrumento de tortura.

Talvez toda essa veemência contra o trabalho seja, a priori, uma reação contra a culpa imposta a nós, criada através dos séculos em que a religião e o desenvolvimento da sociedade pós-industrial condenam a preguiça a ser malvista, execrada até mesmo como um pecado. Assim como a gula, o prazer da preguiça foi logo condenado, pela necessidade de controlar a massa. Onde já se viu um trabalhador ter direito à preguiça? Além disso, a preguiça pode gerar novas ideias, dar oportunidade à criatividade. E o novo é sempre perigoso. Não à toa, o demônio ligado à preguiça, Belphegor, é o mesmo ligado à invenção e às descobertas.

Talvez o elogio à preguiça em detrimento do trabalho seja necessário também para enfrentar a máquina imposta ao trabalhador, que o faz obedecer a uma burocracia preocupada apenas com o produto, nunca com quem o produz. A máquina industrial pode se assemelhar a um instrumento de tortura.

O uso de ferramentas pelo homem sempre foi aceito com naturalidade por diferentes sociedades. Nossos ancestrais usaram pedras, índios usam pilões e lanças, contemporâneos usam tanques de guerra. Cubanos e norte-americanos voam em jatos, japoneses, alemães e africanos dirigem tratores, o mundo inteiro está conectado por computadores. Vista como facilitadora da vida cotidiana, qualquer ferramenta nos parece simpática. Quem não fica feliz de ter em mãos uma chave de fenda para apertar o parafuso solto da prateleira? O problema surge quando essa ferramenta toma empregos e gera uma demanda maior do que o necessário para consumo.

E esse problema se agrava quando a ideia ingênua de que a máquina vai dar ao homem a oportunidade de gozar seu tempo livre se mostra, além de ingênua, errada. Cada tempo livre conquistado é usado para aumentar a produção, uma vez que essa produção, hoje, não é mais sinônimo de consumo, mas de acúmulo. A Revolução Industrial criou máquinas que substituem homens e produzem mais do que o necessário. E o próprio industrial compreendeu que pode lucrar mais assim – aumentando a produção no mesmo tempo de trabalho.

A preguiça continuou, portanto, sem espaço nesse mundo de confortos tecnológicos. Graças à tecnologia, qualquer carioca poderia chegar a Salvador em duas horas, vestir um velho calção de banho e tirar um dia pra vadiar, como dizia a canção. Mas a necessidade de trabalhar oito horas diárias e ter que produzir mais do que o necessário não permite o usufruto da tecnologia e a vivência da poesia. A preguiça tem tempo marcado: noites e fins de semana, quando muito.

Mesmo dento de uma sociedade que se diz pós-moderna (portanto, pós-industrial), o trabalho ainda é moeda de valor ético. E, se o desemprego e agonia da produção são gerados por essa ética, a solução está em determinar que todo trabalhador deve ser independente o suficiente para saber lidar com a crise. Isto é, a crise gerada por um sistema de produção que ignora qualquer sinal de humanismo, alegando um interesse do “bem comum”, deve ser gerenciada em nível subjetivo. Assim, o indivíduo, incapaz de sustentar um conflito muito maior que ele, é levado ao substituto de sua satisfação: a sedação. Aquele que poderia ter o prazer da preguiça vive o torpor da alienação. O desejo se torna obediência a regras. Descansar sábados e domingos, distrair-se entre o jantar e o sono, viver sua subjetividade nos espaços pequenos entre sua obrigação de produzir. O espaço do desejo é submetido a regras, como se isso fosse possível.

Por isso, o sociólogo Domenico de Masi define como maiores inimigos da criatividade a burocracia e o hábito. A repetição de tarefas no dia a dia, por força de uma obrigação imposta pela necessidade capitalista de produção, torna o cidadão um ser impensante e insensível; logo, sem criatividade.

E a criatividade não é qualidade usada apenas para escrever belos poemas, produzir bons filmes ou pintar quadros originais. Ela é necessária para que possamos viver o cotidiano sem que este nos esmague. Como diz De Masi: “Para ver o mundo e poder comparar situações, conhecer mais gente, ficar mais consigo mesmo. Poder procurar o luxo do silêncio, da solidão, do espaço, da meditação... Todos luxos sempre mais raros”.

O ócio é necessário, sim. Necessário, enfim, para a produção, mas uma produção subjetiva, completa de humanidade. Se o trabalho dignifica o homem, a preguiça o torna o que ele é: um ser único, com ideias e desejos próprios.

Leia também:

Publicado em 13/09/2011.

Publicado em 13 de setembro de 2011

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.