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“Aquele cara do olho azul” e a Mulher Melão

Mariana Cruz

A máxima “gosto não se discute” tenta evidenciar o quanto tal sentimento é subjetivo, o quando ele diz respeito à inclinação de cada um. Claro que alguns gostos podem mudar com o passar do tempo, com as companhias, com o hábito.

Parece-me, contudo, que aqueles mais imediatos, os que mais “falam” aos sentidos, são os mais difíceis de mudar. E, geralmente, quando mudam isso se dá devido a alguma reflexão em cima dele. Foi o que pude presenciar quando, há uns dois anos, trabalhei com meus alunos a música Construção, de Chico Buarque. Minhas turmas eram (e ainda hoje são) compostas majoritariamente de adolescentes, de classe média baixa, moradores de áreas desfavorecidas. Apesar de alguns já terem ouvido falar de Chico Buarque, não sabiam bem quem ele era e não conheciam nenhuma música sua, até que um arriscou: “é aquele cara do olho azul?”. Foi o máximo a que chegaram.

Pelo que percebo, os estilos musicais que meus alunos mais escutam é funk e pagode. Alguns dizem que, mesmo quando não querem, são “obrigados” a escutar tais ritmos, pois são dominantes nos lugares que frequentam, nas festas e no som da vizinhança, sempre nas alturas. Talvez essa falta de costume de ouvir outros estilos musicais tenha feito meus alunos, assim que coloquei Construção, começarem a rir, para em seguida comentarem: “que música doida”; “musica estranha”. Entretanto, depois de terem lido a letra, de terem escutado diversas vezes a música e sentido a intensidade que ela vai ganhando em seu decorrer, compreenderam que é algo muito mais próximo de seu cotidiano do que julgavam, com diversos elementos próximos a eles, aspectos presentes na vida de um operário de obra (máquina, tijolo, cimento, feijão com arroz) – profissão que seus familiares, vizinhos ou pessoas próximas a eles exercem.

Ficaram fascinados ao notarem que a troca de paroxítonas ao final de cada verso dava um novo sentido à canção, e concluíram que esse “tirar e colocar” palavras era também uma “construção” (primeiro ele atravessou a rua com seu “passo tímido”, depois com seu “passo bêbado”; ergueu no patamar “quatro paredes sólidas” que, posteriormente, viraram “flácidas”). Assim, as expressões iniciais de estranhamento foram substituídas por adjetivos como “maneiro”, “irado”.
Fiquei satisfeita em vê-los curtindo uma música considerada difícil e refletindo sobre ela.

Este ano, porém, tive a sensação de estar vivendo o inverso. Foi na festa junina da escola, em que, depois de tocarem algumas músicas típicas e de ter sido dançada a quadrilha, o DJ (que também é aluno na escola) colocou, “a pedidos”, diversos funks para a galera dançar. Meu conhecimento de funk parou na década de 90, com aqueles famosos “eu só quero é ser feliz/andar tranquilamente na favela onde eu nasci” e “massa funkeira não me leve a mal/vem com paz e amor curtir o festival”; dos batidões da nova geração eu não tenho a menor ideia. Quer dizer, não tinha até o dia da festa.

Se inicialmente houve grande estranhamento de minha parte, não só pelas gírias ininteligíveis, a mixagem exagerada, as danças que se dividiam entre coreografias descritivas e aquele famoso passo com as mãos no joelho de forma bem mais sensual que outrora, ao final da festa, já estava até balançado o esqueleto sem sentir. E os alunos rindo e me chamando para dançar com eles. Sem condições. Até que já no final tocou um funk em que eu não tinha prestado atenção, apesar de já ter tocado outras vezes no evento. Dessa vez prestei devido à quantidade de vezes que o pronome “você” era pronunciado. Era de fato uma letra muito estranha, cantada pela intérprete que atendia pela não menos estranha alcunha de “Mulher Melão”. O nome da música, depois vim a saber, era  Você quer. Ao ler a letra, vê-se que a primeira estrofe é composta de 32 palavras, e 28 são “você”. Vendo a minha perplexidade diante de tal letra, até meus alunos disseram: “é assim mesmo, essa música só tem ‘você’”. Foi estranho para mim como para eles foi estranho ouvir o Chico.

A diferença é que, após os meninos se aprofundarem na letra e na melodia de Construção, surgiram muitas interpretações, ideias, reflexões. No caso de Você quer não existe aprofundamento; é o raso do raso, é só superficialidade. O problema, como atestei depois, não estava na repetição incessante do mesmo vocábulo; afinal, podia ser algo experimental, como o que os Novos Baianos faziam nos anos 70.

O mais bizarro ainda estava por vir; era a mensagem passada pelas outras estrofes que se seguiam.

Mas de tudo dá para se tirar algo. Por que não estudar a música da senhorita Melão? Pensando bem, em vez de se aprofundar na construção das frases, nas diversas nuances propositalmente pensadas de cada palavra, na realidade da vida do operário, entre outras infindáveis formas de trabalhar uma música do quilate de Construção, Você quer pode se tornar um interessante objeto de estudo, ao ser feita uma abordagem sociológica sobre o que se está sendo exaltado, o que a sociedade almeja e os valores passados pela mídia e, assim, promover um debate na turma – que conhece de cor e salteado tal música. Posso até arriscar a fazer essa aventura. O duro vai ter que ser, em cada uma das minhas turmas, ficar escutando “você, você, você, você, você...”.

Você Quer?

Mulher Melão

Você, você, você, você, você, você, você quer?
Você, você, você, você, você, você, você quer?
Você, você, você, você, você, você, você quer?
Você, você, você, você, você, você, você quer?
Você quer?
Você quer? Você quer? Você quer? Você quer?
Paga pra mim
Você quer? Você quer? Você quer? Você quer?
Paga pra mim
Você quer? Você quer? Você quer? Você quer?
Paga pra mim
Eu sou a Mulher Melão
O meu ritmo é assim
Paga pra mim, paga pra mim, paga pra mim
Paga pra mim, paga pra mim, paga pra mim
Quero pôr silicone
Quero carro importado
Quero cordão de ouro
Quero roupa de marca
Paga pra mim, paga pra mim, paga pra mim
Paga pra mim, paga pra mim, paga pra mim
Eu vou te seduzir
Eu vou te deixar louco
Vou fazer você gastar todo dinheiro do seu bolso
Você, você, você, você, você, você, você quer?
Você, você, você, você, você, você, você quer?
Você, você, você, você, você, você, você quer?
Você, você, você, você, você, você, você quer?
Quer? Você quer?
Você quer? Você quer? Você quer? Você quer?
Paga pra mim
Você quer? Você quer? Você quer? Você quer?
Paga pra mim
Você quer? Você quer? Você quer? Você quer?
Paga pra mim
Mas eu não sou mercenária
Os homens é que são "facinho"
Fazem o que as mulheres querem
Só pra ter nosso corpinho
Só pra ter nosso corpinho

Veja, sobre Construção, de Chico Buarque
Música pr’aprender brasileira http://www.educacaopublica.rj.gov.br/oficinas/lportuguesa/musica/index.html

Publicado em 20/09/2011

Publicado em 20 de setembro de 2011

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