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Rubem Fonseca – novos livros, velhos hábitos

Alexandre Amorim

Parte 1 – José, autobiográfico

Contar a história de uma vida seria aborrecido e inacreditável. São palavras que Rubem Fonseca repete em sua disfarçada autobiografia, José. Aos 86 anos, esse autor de Juiz de Fora que mudou a narrativa brasileira resolveu, mais uma vez, mostrar que a literatura tem suas fronteiras tão mal traçadas quanto os limites entre a verdade e a mentira. Assim, lança um livro tangente à sua biografia, mas que, ao mesmo tempo, não desmente nem assume em nenhum momento que narra a vida do próprio autor. Uma vida pode ser aborrecida; torná-la literatura é fazer dessa vida algo tão interessante e verossímil quanto a arte.

É desnecessário descrever José. Rubem Fonseca já o faz com sua habitual maestria em metalinguagem, desde a primeira página. Fala de esquecimento e invenção, de memória que trai, da cronologia e da relação entre lembranças e fatos. Podemos compreender que ele se isenta de assumir o preto no branco, da verdade objetiva ou de encarar o desejo de conhecimento do leitor sobre sua vida como uma linha de conduta. Fala de sua vida como se não fosse sua, mas com um interesse de quem se debruça sobre um personagem cativante – que ele realmente é, ou se faz ser, pela escrita.

A fascinação por José é contagiosa. Seja pelo modo como sua história é contada – em frases curtas, limpas de qualquer gordura, cheias de paixão encapsuladas em palavras quase frias, de uma exatidão cirúrgica, seja pela rica vida cultural e intelectual desse personagem – que até hoje sabe criticar e pensar nosso cotidiano em seus contos e romances, seja pelo entorno do personagem – a cidade do Rio de Janeiro, maravilhosa para um menino que vem de Minas no que pode a expressão maravilha traduzir de assombro e admiração.

O menino de família abastada que acaba por viver em sobrados do Centro da cidade é testemunha do carnaval, dos teatros e das mulheres cariocas, convive com as cidades misturadas (como cantaria Fernanda Abreu) que formam o Rio e consegue trazer para seu mundo literário essa vivência. Rubem Fonseca não deixa que o sentimento do sublime – isso é, do assombro perante a grandeza da vida – abandone sua personagem, José.

O livro é narrado em terceira pessoa. O autor se refere a José como “ele”, e não como “eu”. Mas, ao final da página 123, durante uma conversa entre José e um sargento – quando José estava servindo o Exército e falava com seu superior sobre literatura comunista –, Rubem Fonseca decidiu escrever um parágrafo curtíssimo, de apenas uma frase:

Contei para ele o meu problema.

Isso é, José contou ao sargento que ocorrera um mal-entendido em sua apresentação para servir, e acabou sendo preso. Por que Fonseca resolveu colocar a voz de seu personagem em primeira pessoa, e justamente como narrador? Para que pudéssemos usar essa chave e afirmar, sem dúvida, que José e Rubem são, afinal, a mesma pessoa? Salvo engano, essa é a única vez em que o narrador fala em primeira pessoa e se encarna em José.

José que é Rubem Fonseca? Tanto quanto o advogado Mandrake, o delegado Raul, o escritor Gustavo Flávio e até a prostituta Lúcia McCartney. Personagens da obra ficcional de Fonseca que se entrelaçam com sua realidade, vivida nos anos de magistrado, policial e escritor. José parece ser Fonseca até seus vinte e poucos anos, sua idade quando o livro termina. E a palavra “parece” é a grande chave que abre e fecha portas na literatura. Desde sempre, a mimese, a recriação da realidade, é uma das linhas que sustenta a escrita. A autobiografia de Rubem Fonseca – escritor por excelência – não poderia ser diferente. José é o primeiro nome do autor, mas é também o nome de tantos. Um nome próprio que parece um nome comum. Que é um nome comum, na língua portuguesa. Na língua de Rubem Fonseca. O nome José não poderia ser mais apropriado a essa autobiografia disfarçada e a esse autor, que se disfarça de tantos personagens para contar suas histórias.

Ficha técnica do livro:

  • Título: José
  • Autor: Rubem Fonseca
  • Editora: Nova Fronteira
  • Ano: 2011
  • Páginas: 168

Publicado em 20/09/2011

Publicado em 20 de setembro de 2011

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