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A arte não existe sem a técnica: relação entre arte e tecnologia
Janaina Pires Garcia
Doutoranda em Educação (UFRJ); professora de Sociologia no Ensino Médio
Existe o predomínio de uma determinada visão que coloca arte e cultura de um lado e tecnologia de outra, como se fossem inimigas. Essa visão na arte surge no Romantismo e é acentuada a partir da Revolução Industrial (Hauser, 2003). Os produtos industriais passam a adquirir caráter estético e a competir com a arte. É nesse momento que se fortalece a Estética como teoria que fundamenta a obra do artista separada de outros setores da vida e da cultura.
O artista e a arte reivindicam sua autonomia e independência em relação a outros setores da sociedade, e passa a prevalecer o que chamamos de “arte pela arte”. Ganha força a ideia do artista como criador individual, muitas vezes como gênio inspirado. O trabalho artístico adquire caráter essencialmente individual e com forte cunho subjetivo.
Essa dicotomia gera polêmica ainda hoje: ainda se discute se a fotografia, o cinema, o vídeo e a televisão, a computação gráfica e os produtos gerados por essas tecnologias são arte ou não; essas pessoas esquecem-se de que arte e tecnologia sempre estiveram de mãos dadas. Em todos os períodos da História da Arte as evoluções técnicas influíram na arte. Os mosaicos, a pintura a óleo, as gravuras, foram técnicas e procedimentos inéditos em seu tempo. Os artistas sintonizados com sua época acompanharam essas mudanças e incorporaram as novas tecnologias em suas obras:
A história da arte não é apenas a história das ideias estéticas, como se costuma ler nos manuais, mas também e sobretudo a história dos meios que nos permitem dar expressão a essas ideias. Tais mediadores, longe de se configurarem dispositivos enunciadores neutros e inocentes, na verdade desencadeiam mutações sensoriais e intelectuais que serão, muitas vezes, o motor de grandes transformações estéticas (Machado, 1996).
O advento de novos materiais e novas tecnologias, não somente na arquitetura mas também na música, na pintura, na escultura, sempre revolucionou a arte e abriu caminho para novas formas artísticas. Essa transformação se acentuou a partir do século XVIII, com o uso de novos meios mecânicos, como a fotografia e o cinema e, mais ainda, com as tecnologias eletrônicas: a televisão e o computador.
Nesse contexto, a emergência do capitalismo representa não somente o surgimento de um novo modo de produção econômica como também o surgimento de uma nova ordem cultural, que se expressa na substituição do trabalho manufaturado e artesanal pela produção seriada da linha de montagem, na presença da máquina no processo de produção, na fragmentação do trabalho e no envolvimento de um maior número de pessoas na produção, na redução do tempo de trabalho empreendido em cada peça produzida, na produção e reprodução de peças iguais, na relativização do tempo de durabilidade das peças produzidas que podiam então ser mais facilmente substituídas.
O filósofo Walter Benjamin (1892-1940), associado à Escola de Frankfurt, observou essas transformações no campo da produção artística (Benjamin, 1996). As obras de arte se caracterizavam pela sua exclusividade e existência única. Essa existência única fazia com que as obras de arte só pudessem ser vistas por um número muito restrito de pessoas, e por isso mesmo precisavam ser muito duráveis para que pudessem ser contempladas ao longo dos anos. Sua unicidade, aliada à dificuldade de acesso a essas obras, acabou por gerar um tipo de relação com a arte que era sagrada, que seguia os rituais de um culto. É certo que ainda hoje obras desse tipo, únicas e irrepetíveis, continuam sendo produzidas, ou seja, esse modo de produção artística continua vivo e cumprindo um papel importante na história cultural da humanidade (exemplos: Casulos,de Lygia Clark; Constelação,de Miró etc.). Benjamin chama a atenção para o fato de que as transformações engendradas pelo capitalismo operam na esfera artística mudanças tão profundas que transformaram, inclusive, os modos de relação com a arte no seu todo.
Mas que transformações foram essas? A arte inaugurou sua produção em série com o surgimento da fotografia, do cinema etc. A fotografia e o cinema nasceram sob a condição de serem cópias. Não existe um “original” da fotografia; o que existe é o negativo. O filme a que assistimos no cinema também não é a sua fita original, mas uma montagem de cenas relacionadas, cortadas, editadas. Se a produção nasce de maneira seriada, isso é, em grande quantidade, a exigência de que a obra de arte tivesse uma existência única é posta em questão, e com isso seu critério de valoração deixa de ser a unicidade e passa a ser a quantidade de cópias produzidas. Quanto maior o número de salas que exibirem determinado filme, mais valorizado ele será. Esse tipo de produção vai deixando de ser feito por um único artista e passa a ser produzido de maneira mais coletiva. Entretanto, tais transformações apresentam um aspecto positivo: a reprodução técnica traz em si uma possibilidade de democratização estética, desde que as obras de arte conservem as características daquilo que até então chamaríamos de original. O aparecimento e o desenvolvimento de formas de arte (como a fotografia ou o cinema) em que deixa de fazer sentido distinguir entre original e cópia traduzem-se no fim de uma “aura”, o que liberta a arte para novas possibilidades.
Contrário ao pensamento de Benjamin, Theodor Adorno e Max Horkheimer (Adorno, 2006), também associados à Escola de Frankfurt, analisam que toda reprodução contribui para a perda de identidade da originalidade e está à disposição de uma elite que manipula aqueles que não possuem acesso aos originais por meio de cópias feitas em série, conferindo a todas elas uma característica mercadológica, portanto massificante. Ao contrário disso, Benjamin acredita que isso gera, desde que observadas as técnicas, uma politização capaz de moldar o senso crítico daquele que observa.
Benjamin passa a contestar a oposição que se faz entre as massas, que buscariam na obra de arte apenas a distração, e o conhecedor que preza o recolhimento. A massa, segundo Benjamin, possui uma nova atitude diante da obra de arte. Com ela, “a quantidade converteu-se em qualidade”. Benjamin critica a posição contrária esclarecendo o que seria distração e recolhimento:
A distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segunda a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo (1996, p. 193).
Essa exposição da visão benjaminiana do cinema deixa claro o ponto de vista do autor. Ele se distingue das demais posições da chamada Escola de Frankfurt, e isso no que se refere especificamente ao problema da cultura e do cinema, embora também em outros pontos que aqui não nos interessam diretamente. Sua posição diante do cinema e da arte é radicalmente oposta à posição de Adorno; isso envolvia inúmeras outras questões, entre as quais a questão da tecnologia, ressaltadas por Benjamin em sua análise da “reprodutibilidade técnica”. Benjamin destacou as possibilidades abertas pela tecnologia e as consequências positivas dessa percepção modificada (especialmente a dessacralização, em relação à concepção de aura), enquanto Adorno ressaltou as consequências negativas e as deficiências ali presentes. Para o primeiro, um salto qualitativo para frente; para o segundo, para trás.
Em uma série de respostas epistolares aos ensaios de Benjamin, o teórico crítico da Escola de Frankfurt Theodor Adorno acusou-o de um utopismo tecnológico que a um só tempo fetichizava a técnica e ignorava o seu alienante funcionamento social na realidade. Adorno foi bastante cético com respeito às afirmações de Benjamin sobre as possibilidades emancipatórias dos novos meios e formas culturais. A celebração benjaminiana do cinema como um veículo para a consciência revolucionária, para Adorno, ingenuamente idealizava a classe trabalhadora e suas aspirações pretensamente revolucionárias (Stam, 2006, p. 86).
Para uma melhor inserção em tal debate, é fundamental examinar o significado de alguns termos para entender melhor essa relação entre arte e tecnologia na História da Arte. Segundo Hauser (2003), na Antiguidade, sobretudo entre os gregos, arte era entendida como tekhné, que abrangia qualquer prática produtiva, inclusive a produção artística, acentuando o aspecto de execução da obra de arte:
Os gregos não faziam qualquer distinção de princípio entre arte e técnica, e esse pressuposto atravessou boa parte da história da cultura ocidental, até pelo menos o Renascimento. Para um homem como Leonardo da Vinci, pintar uma tela, estudar a anatomia humana e a geometria euclidiana e projetar o esquema técnico de uma máquina constituíam uma única atividade intelectual (Machado, 1996).
A palavra técnica aparece na língua portuguesa somente no século XIX e passa a substituir parcialmente a palavra arte. O português, o francês, o italiano, o alemão e o russo têm estabelecido uma distinção entre técnica e tecnologia. No inglês essa distinção é mais tênue, e o termo technology engloba muito do que entendemos como técnica. A palavra tecnologia tem origem no grego tekhnologia (tekno + logos); significa o conhecimento científico das operações técnicas ou da técnica (Japiassu, 2006). Tecnologia, assim como técnica, tinha ligação com a arte até o século XIX. O Dicionário Oxford de 1933 ainda registra como um dos significados de technology o discurso ou tratado sobre uma arte ou sobre as artes.
No Brasil, no início do século XX, a palavra tecnologia foi definida por um engenheiro da Escola Politécnica de São Paulo como "doutrina ou ciência industrial que fundamenta o exercício da engenharia" e seu uso na língua portuguesa seguiu nesse sentido. Fica claro que os termos técnica e tecnologia migraram do campo da arte para o campo da indústria e da ciência conforme essas duas esferas cresceram em importância e atuação na sociedade ocidental. Por outro lado, arte tinha relação com a técnica e com a ciência mais evidente até a separação das duas esferas em campos praticamente opostos a partir do século XVIII. A palavra arte, do latim artis, tem várias definições no dicionário, das quais se destacam: arte como a capacidade que tem o homem de pôr em prática uma ideia valendo-se da faculdade de dominar a matéria; arte como criação de sensações ou estados de espírito de caráter estético; arte como expressão de tais sensações etc.
Arte sempre esteve vinculada à estética. A palavra estética vem do grego aisthesis, que significa tanto conhecimento sensível (percepção) quanto aparência sensível: aquilo que faz apelo aos sentidos (Japiassu, 2006). A estética é também um ramo da filosofia, uma reflexão filosófica sobre a arte, que a define, estuda-a e a classifica, buscando, como toda filosofia, explicações gerais e universais. O objeto e o método da estética dependem do modo como se define arte. Por essa razão, filósofos-estetas elaboraram diferentes tratados estéticos desde a Grécia Antiga até o século XX.
Um ponto comum seria a investigação acerca do que é o belo, o belo capaz de proporcionar prazer aos sentidos ou ao espírito. Atualmente não é mais possível aceitar a estética como impondo regras e modelos universais para a arte. Quem faz arte são os artistas, e se arte pressupõe criação e inovação só poderemos teorizar a partir do produto gerado, e não antes. Com a dilatação do conceito de arte a partir da segunda metade do século XVIII, o conceito de belo também muda. Antes do advento dos produtos industrializados, a beleza era vista como harmonia das partes, perfeição; era dissociada da utilidade. A partir do século XIX, começa-se a pensar na beleza como adequação a um fim.
Arte é uma atividade que une realização com invenção e descoberta. Sua tarefa é libertar a capacidade humana dos esquemas limitativos da vida prática, levar o homem a tomar consciência, em todas as ocasiões, de que as atitudes que pode tomar diante da vida são inesgotáveis, como a própria realidade – que tem um caráter múltiplo e complexo. A arte não está isolada do resto da realidade; entre a arte e as outras atividades do homem não há um abismo, há antes uma passagem gradual, níveis diferentes de inventividade. Da execução técnica de um projeto à invenção mais original há um exercício do fazer que se estende das formas mais elementares do ofício à mais pura criação estética.
Nesse sentido, a arte, como técnica produtora de símbolos de comunicação estética, foi considerada na fronteira entre as técnicas que se podiam aprimorar e as que, pela própria natureza, permaneciam imutáveis. Essa situação ambígua tornou-se preponderante na época moderna. Na verdade, a técnica com que é realizada a arte é um dos mais importantes aspectos de sua existência, tão importante que se torna difícil, senão impossível, separar produção estética de técnica artística. E, por mais que se queira ver na a arte uma possível essência "inefável", qualquer avanço das técnicas autocorretivas traz um avanço concomitante na produção estética.
Somos contemporâneos de um momento de reinvenção da relação arte-tecnologia, em que a hibridação entre arte, ciência e pensamento produz novos paradoxos e questões. Relação que não é nova, mas que sem dúvida é problematizada de forma aguda no contexto atual, em que a arte busca revitalização e acha nas tecnologias emergentes um campo de experimentação. Hoje poderíamos dizer que a arte contemporânea, em sua relação com o tecnológico, passa por uma nova série de configurações, ou melhor, dissoluções de fronteiras que se realizam em situações-limite produzidas por diferentes processos geradores de objetos artísticos "paradoxais" a meio caminho entre o científico e o estético.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2006.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas v. 1 e v. 2. São Paulo: Brasiliense, 1994.
HAUSER, Arnold. História Social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Edusp, 1996.
JAPIASSU, Hilton Ferreira. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2006.
Publicado em 04/10/2011
Publicado em 04 de outubro de 2011
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