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A questão do Realismo

Alexandre Amorim

O site do caderno “Ilustríssima”, apêndice da Folha de S. Paulo que sai aos domingos, informa que Charles Dickens foi editor de uma revista semanal, a All The Year Round, em meados do século XIX. Segundo a matéria, os leitores “encontravam ali não só relatos ricamente construídos dos fatos da época como também capítulos avulsos daqueles que mais tarde se tornariam os livros mais famosos do escritor”. É comum que autores de ficção trabalhem em periódicos, mas não deixa de ser irônico que o escritor realista inglês tenha sido o responsável por determinar e orientar a publicação das notícias. Afinal, um escritor realista deveria perseguir o real – e publicar notícias de fatos acontecidos ao lado de trechos de seus romances deve ter sido um tanto confuso, se Dickens realmente acreditava que seu texto era um retrato fiel da realidade. A ficção, mesmo realista, está sempre em descompasso com os fatos.

Mesmo que o panorama social e as angústias familiares sejam temas comuns em sua obra, e mesmo que Charles Dickens tenha atacado os exageros idealistas românticos, sua obra não se ajusta perfeitamente ao real – pelo simples fato de que Realismo e realidade não conseguem ser sinônimos.

Assim, o realismo de Dickens não deixa de ser, como afirma Nathalie Vanfasse, em seu artigo ‘Grotesque but not impossible’: Dickens’s Novels and mid-Victorian Realism, um ponto de vista da classe média vitoriana. Mas, se o autor tentou se prender a regras vitorianas e fugir de idealizações para retratar uma realidade, sua veia artística não permitiu que seu talento fosse reprimido. Oliver Twist e David Copperfield podem ser vistas como realistas, mas são obras literárias que fogem a classificações tão grosseiras, e motivos dessa fuga são justamente alguns traços estereotipados dos personagens. Ao utilizar a estética para modelar seus protagonistas e narrar suas histórias, Dickens foge da realidade. A literatura não se encaixa no real.

Machado de Assis também sofre de classificações didáticas. Sua primeira fase é dita romântica; a segunda, realista. Como classificar de Realismo a narrativa em primeira pessoa de um defunto, não há literato que explique. O falecido Brás Cubas, o “humanitista” Rubião ou o casmurro Bento só podem ser considerados personagens realistas para os preguiçosos que se deitam em camas taxonômicas e não se preocupam em ter pesadelos com os disparates causados por tão simplória classificação.

Machado foi crítico feroz do Realismo, atacando até mesmo Eça de Queiroz e seu Primo Basílio, quando pede que “voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo”, para que a “verdade estética” prevaleça. Gustavo Bernardo Krause, professor de Teoria Literária da UERJ, define essa defesa da verdade estética como a defesa de quem não esconde a ficção, “inventando uma realidade de papel a partir de suas observações parciais da realidade”. Machado, com seu talento literário e humor ferino, destina um tiro certeiro em quem quer fazer do Realismo uma proposta única de traduzir a realidade para a literatura. O autor não aceita que essa tendência se apodere do que é a definição primeira da mimese: recriação da realidade, como um inventário, “porque a nova poética é isso e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha”.

Considerando o Realismo como forma de arte (mas não a única maneira de se aproximar da realidade), o autor Damian Grant formula a tese de correspondência e coerência, em que correspondência é a expressão da realidade em si, excluída a imaginação: “o Realismo como consciência da literatura se confessa devedor de uma reparação ao mundo real – um mundo real a que esse Realismo se submeta sem questionamentos”. Já a coerência é a expressão do agente criativo, ciente de seu papel na arte, “onde o realismo é obtido não por imitação, mas pela criação”. Portanto, apesar de o Realismo proclamar ser a tentativa literária de se aproximar, na ficção, da realidade como ela é, sua própria pretensão é limitada por uma função fundamental da arte (e, por consequência, da literatura): a interpretação. Como corresponder à realidade se esta não pode ser definida dentro dos limites da linguagem? Como não ser coerente com a técnica literária – que é interpretar o real – se a ferramenta utilizada é justamente a literatura? A interpretação do real é a base de toda literatura – seja realista, romântica ou mesmo surrealista. E cada interpretação, de cada autor, é uma nova realidade. As muitas maneiras de retratar a realidade no Realismo, representadas por seus diversos autores, são uma prova disso.

Mesmo que não se aceite a realidade como multifacetada, como é o caso do Realismo, não é possível que se omita a natureza subjetiva e observadora da arte, isto é: não há realidade no retrato do real, a não ser a realidade interpretada. A questão do Realismo nasce na crítica de que toda literatura busca uma faceta do real e reside no fato de que o real não é expresso, mas interpretado.

Publicado em 04/10/2011

Publicado em 04 de outubro de 2011

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