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Presos à liberdade: relato da formação continuada de professores da Diesp/UERJ em agosto de 2011
Marta Lima Rêgo
Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana, coordenadora de disciplinas de Alfabetização (UERJ)
Anne Patrícia Pimentel
Cátia Cirlene Gomes de Oliveira
Rosane Azeredo C. Siqueira
Silvia Figueiredo
Professoras tutoras da disciplina Alfabetização Conteúdo e Forma 1 e 2, do curso de Licenciatura em Pedagogia (UERJ)
Perda de identidade, abandono, violência física e psicológica configuram o perfil de grande parte dos alunos que estão dentro do sistema prisional que são atendidos pela Diesp (Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas), vinculada à Secretaria de Estado de Educação (Seeduc).
Os docentes que atuam nessa área são chamados a atuar no constante conflito de promover a formação humana sem nela impregnar valores pessoais que venham gerar conflitos com aquilo que os alunos consideram certo e real. Além disso, esses docentes veem-se diante da necessária formação do leitor, que vê na possibilidade da alfabetização (considerada aqui como o encontro com a leitura) um trampolim para a liberdade. Como coloca Kramer (2001, p. 81):
Há que se considerar que nesse caso, como nas práticas educacionais em geral, não há soluções redentoras, mas, ao contrário, uma variada gama de possibilidades que dependem inclusive dos objetivos estabelecidos, dos recursos disponíveis e do grau de mudança pretendida.
Esses pressupostos nos conduzem a refletir sobre como oferecer aos professores que trabalham em escolas dentro do sistema prisional uma formação que consiga alcançar os diferentes personagens dessa realidade estudantil, de forma a consolidar o processo de aprendizagem da leitura e da escrita, passando pela formação humana.
Formar continuamente os professores desse segmento tem sido, ao longo dos últimos anos, uma busca constante dentro da Diesp, mas questões voltadas à formação do leitor ainda se configuravam de forma subjetiva. Para atender a essa demanda, a Diesp/Seeduc buscou a parceria da UERJ para oferecer formação a esses professores, a fim de que sua atuação se aprimore e alcance os resultados desejados nessas condições, tão específicas.
O desafio de planejar e empreender uma formação continuada para este público-alvo foi lançado para nosso grupo de tutoras e para a coordenadora de Alfabetização da EAD – campus virtual da UERJ. O primeiro desafio constituiu-se de discutir meios e estratégias de como ajudar esses professores a alfabetizar um grupo de alunos tão peculiar.
Revisitando diferentes saberes, memórias e vivências com a alfabetização de nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos da rede pública de ensino, propusemo-nos a elaborar propostas que pudessem contemplar o desafio de alfabetizar alunos/presos, possibilitando a (re)inserção desses sujeitos na sociedade de maneira plena, garantindo a eles o direito a uma educação de qualidade, mesmo estando em condição de privação da liberdade.
A partir das reflexões surgidas em nosso grupo, começaram a emergir outras propostas para a reconstrução da nossa prática pedagógica, propostas essas que nos conduziram a identificar o momento mais importante na formação permanente dos professores: a reflexão crítica sobre a própria prática. Como disse Freire (1996, p. 44): “É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”.
O planejamento encaminhou-se para uma formação de dois dias, realizada em horário integral (manhã e tarde), visando proporcionar aos professores reflexões teóricas e práticas pedagógicas por meio de palestras (no turno da manhã) e oficinas (à tarde) que oferecessem subsídios que lhes permitissem criar propostas para o ensino da leitura e da escrita numa perspectiva sociointeracionista.
Acreditávamos que essa proposta seria capaz de trazer uma visão de alfabetização voltada para a realidade de todos, numa perspectiva essencialmente inclusiva. Vale destacar que o modelo de alfabetização ainda vigente em muitas realidades brasileiras concerne ao professor o papel de transmissor autoritário do conhecimento. O desafio que nos fazemos como grupo de formadores é romper com essa concepção tradicional de ensino e promover, como diz Paulo Freire, “uma convocação ao estudante para, atuando, pensar e, atuando e pensando, conhecer, incorporar, criar, produzir o seu conhecimento” (Freire, 1982, p. 37).
A resposta se deu no início do mês de agosto de 2011, com a realização da Semana de Formação Continuada de Professores do Sistema Prisional do Estado do Rio de Janeiro, envolvendo docentes das séries iniciais, diretores e coordenadores pedagógicos que atuam nesse sistema.
Diante dessa perspectiva, os saberes docentes aqui referendados não se reduzem à mera transmissão de conhecimento; não são por si só formadores, mas se encontram com a necessária formação humana. Criando vínculos, perpassando valores, dialogando, proporcionando autonomia, os professores, ao encaminharem sua prática, constroem de forma coletiva tal formação. Como diria Rêgo (2010):
Quando o professor assume a condução do processo de ensino em sua sala de aula – seja ela presencial ou virtual –, escolhendo como e de que maneira ele pode aproximar o conteúdo disciplinar da realidade dos alunos, criando vínculos, reconhecendo as suas potencialidades, transmitindo o conhecimento, mas, ao mesmo tempo, permitindo que seja também construído coletivamente, favorece a construção da autonomia de seus alunos, como elemento essencial da formação humana.
Falar da relação entre valores e saberes vem se constituindo, ao longo dos anos, outro contraponto para o trabalho dos profissionais da Educação. Esse é um desafio para a Pós-Modernidade; tendo em vista as diferentes formações oriundas de novos conceitos de família, sociedade e educação, nós nos percebemos em um mundo repleto de outros pequenos mundos, diferentes pontos de vista e formas de encarar a mesma realidade. Mas o que sabemos – e que ainda é real para nós – é o fato de que os alunos, em seus diversos níveis e lugares, ainda continuam chegando aos bancos escolares.
Essa reflexão nos conduz a repensar a questão dialógica entre teoria e prática e como esta se estabelecerá para a formação humana dos diferentes grupos, promovendo inclusão, justiça e transformação social.
Privação espacial, mas não intelectual
No primeiro dia da formação, discutimos com o grupo de professores a visão sociointeracionista e como ela poderia vir a contribuir para a prática em sala de aula. Num segundo momento, realizamos a oficina, com o objetivo de promover a construção da identidade grupal e pessoal, pois nesse contexto entendemos ser importante trabalhar o fortalecimento da identidade tanto de quem aprende quanto de quem ensina. Ouvimos o relato de experiências dos nossos pares e trabalhamos na perspectiva de alfabetizar e letrar em um ambiente educativo no qual o professor deve ser criativo, competente, reflexivo e ousado.
Em se tratando de professores do sistema prisional, observamos ser necessário que haja amplo conhecimento de si mesmo para se arriscar a trabalhar a identidade do aluno/preso, que se enxerga muitas vezes como um ser fragmentado, incapaz e despido de sua identidade.
Para o segundo dia, propusemos uma reflexão sobre a temática Literatura e alfabetização. Nela foi possível discutir e avaliar as diferentes possibilidades de trabalho com o texto literário, promovendo a criatividade, as diferentes leituras que esse tipo de texto possibilita e a reflexão-crítica que a escola, de forma geral, tanto deseja formar. À tarde, trabalhamos a possibilidade de uma prática pedagógica para além das respostas prontas e esperadas; desafiamos e fomos desafiadas a ressignificar nossa ação de formar e ser formadas, abrindo caminho para a possibilidade de diferentes leituras sobre o mesmo texto, para a ampliação da compreensão mediante atividades com o texto e a descoberta das oportunidades de trabalho que podem ir para além do texto.
A profundidade dessa proposta e suas possibilidades permitiram que o professor pudesse observar a necessária articulação entre teoria e prática na perspectiva sociointeracionista para o desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita, ao mesmo tempo que se promove o gosto pela leitura, a curiosidade e a exploração do texto em níveis mais profundos.
Tínhamos o desafio de desenvolver novas estratégias de formação para um público diferente tendo o conteúdo de alfabetização como fio condutor. Apresentar concepções e práticas sociointeracionistas passíveis de serem colocadas em prática em todo e qualquer ambiente educativo indica que esse caminho pelo qual optamos é efetivamente um caminho sem volta, capaz de modificar a realidade de vida de boa parte dos alunos/presos.
Entretanto, para que isso se concretize é necessário que essas práticas se ampliem e se intensifiquem nas atividades dos professores do sistema prisional, promovendo a mudança dos alunos/presos, sua (re)inserção na sociedade, a restauração de vidas e, assim, possibilitem a formação humana.
Além disso, acreditamos que o grupo que está na condição de aluno/preso pode perceber que é possível refletir criticamente sobre seus atos e reelaborar sua própria história de vida. Ou seja, acreditamos que, na medida em que, por meio da educação, esses sujeitos conseguem tecer novos caminhos, apropriando-se do conhecimento, é possível libertar-se intelectualmente e ser verdadeiramente livre de pensamento.
Participar dessa formação foi condição para o desenvolvimento de uma postura investigativa que favoreça a pesquisa sobre nossa própria prática. A busca da formação humana nesse trabalho reflexivo e em cooperação com todos os envolvidos nos levou a descobrir que é possível não somente a liberdade das prisões, mas a da consciência e a da reflexão.
Essa ação teve um diferencial e uma nova e surpreendente vertente para o nosso grupo de Alfabetização, que se constitui e é constituído no trabalho coletivo e nas relações estabelecidas entre os que fazem parte dele. Como disse Freire (2001, p. 40), “a história não termina em nós, ela segue adiante”.
Com a valorização das práticas desses docentes e apresentando novas possibilidades de atuação, foi possível mediar a reflexão sobre a atuação desses profissionais.
No trajeto da história da Educação, observamos frases como “hei de vencer mesmo sendo professor” ou “não me sequestre – sou professor”, que denigrem a imagem desse profissional e podem levá-lo à baixa autoestima. Constata-se ainda a construção de estigmas de que a profissão é uma missão ou um atributo ao sagrado.
Pelos relatos de suas práticas pedagógicas, destacamos o profissionalismo e a dedicação dos educadores que atuam com esse grupo repleto de peculiaridades. Mostramos o quanto contribuem para o indivíduo que se encontra privado de liberdade.
Com a intenção de elevar a autoestima desse professor que interage, em seu cotidiano, com interferências tão singulares, enfatizamos a importância do trabalho já desenvolvido nas escolas das unidades prisionais, o significado e a coragem de todos por estarem buscando aprofundar seus conhecimentos naquele momento. Mesmo diante de todas as dificuldades enfrentadas, eles eram, acima de tudo, profissionais.
O fato de se assumirem como educadores estava espelhado nas suas atitudes durante a formação; os professores refletiram sobre a importância de sua atuação profissional, o amor dedicado à sua profissão, mas sem considerar que era uma espécie de sacerdócio.
Esse momento de formação ultrapassou as expectativas iniciais, pois, além de tratarmos de práticas alfabetizadoras direcionadas a um público sofrido e privado de liberdade, possibilitamos a reflexão e a valorização desses educadores.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria Araújo Freire (org.). São Paulo: Editora Unesp, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
KRAMER. Sonia. Alfabetização, leitura e escrita: formação de educadores em curso. São Paulo: Ática, 2001.
Publicado em 04/10/2011
Publicado em 04 de outubro de 2011
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