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Desespero da estação

Pablo Capistrano

Escritor, professor do IFRN

Mais um verão e mais notícias de mortes devido a desabamento de encostas e inundações no Sudeste. Mais um verão e os telejornais convidam seus especialistas para falar sobre a tragédia, encontrar culpados, explicar a natureza climática e geológica do fenômeno, discutir os temas urbanos, enfiar goela abaixo do telespectador alguma piedade, algum senso de solidariedade, algum sentimento trágico da vida.

Sabemos que ano que vem mais pessoas vão morrer pelos mesmos motivos, como sabemos que diariamente pessoas morrem executadas por armas de fogo, destroçadas em acidentes de automóveis ou mesmo vítimas de algum tipo de irresponsabilidade sistêmica que liquidifica negligência e falta de respeito para com a nossa própria humanidade.

Parece que estamos nos acostumando com a morte.

Naturalizamos as desgraças, cotidianizamos as catástrofes, tornamos um elemento inerente da nossa própria vida as tragédias que arrastam nossos vizinhos.

Esse é um aspecto perigoso do brazilian way of life.

Nesse tempo em que as expectativas climáticas não são auspiciosas, acostumar-se com a morte é a pior coisa que pode acontecer a um povo.

Em certo sentido, a humanidade está arcando com o ônus de uma ilusão. Acreditamos durante muito tempo que somos especiais. Que fomos criados para herdar a Terra e que nossa própria natureza divina seria a garantia de nossa permanência neste planeta, afinal o Eterno Arquiteto desse mundo nos ama... Não é mesmo?

Sentíamo-nos mestres da natureza, senhores do planeta, criaturas capazes de prever e controlar os fenômenos naturais porque esse era o destino fundamental de nossa espécie. Dotados de engenho e arte, de ciência e razão, estaríamos sobrevoando em poucas gerações os limites dos riscos naturais e poderíamos construir uma civilização em que o respeito reverencial pela natureza fosse apenas o índice de um tempo de superstição e ingenuidade.

Só Deus, que estava fora desse mundo, poderia nos castigar por nossas próprias culpas, pelos nossos miseráveis pecados.

Essa ilusão talvez seja o último dos grandes mitos narcísicos da humanidade temperado pela impressão de que o desenvolvimento econômico e tecnológico seria suficiente para transformar a vida em um passeio.

Um dos aspectos pedagógicos das tragédias naturais é oferecer a oportunidade para que a humanidade redimensione sua relação com o mundo natural. No tempo da deusa talvez fôssemos mais afeitos a uma relação menos parasitológica com nosso ambiente. Quando Deus abandonou a Terra e nós começamos a nos sentir alienígenas em um planeta alugado providencialmente, esquecemo-nos de que um parasita não sobrevive dento de um corpo morto.

Recompor a aliança entre o homem e a natureza não é, hoje, apenas um pressuposto filosófico defendido por gente como Michel Serres. Esse é um imperativo cada vez mais evidente. Uma necessidade vital de preservação humana.

O problema é que, no Brasil, não somos vítimas apenas desse erro de avaliação narcísico. Guardadas as devidas proporções geológicas e climáticas, a Austrália teve neste mesmo verão sua desgraça climática da estação. Um terreno imenso alagado, quilômetros e quilômetros de vida urbana afogados em bilhões e bilhões de dólares de prejuízos e... Pouco mais de uma dezena de mortos!

Não. Não. Não. A tragédia no Rio não está depositada como um ônus sinistro nas costas da humanidade antropocêntrica que criou um mundo climaticamente insustentável. Carregamos, no peso de mais essa tragédia de verão, a carga de nossa incompetência social. A grande dificuldade de agir e pensar como um povo. Nós nos acostumamos com a morte dos “outros”, todos os anos, por causas humanas. Por balas achadas e perdidas, por um trânsito selvagem e sem lei, por negligência política e econômica vexatória.

É como se não fosse com a gente. É como se o “eles” não fossem o “nós”.

Um dia, conversando com uma garota alemã que foi interpelada e cobrada por amigos franceses por acontecimentos da época da Segunda Guerra, quando a mãe dela sequer havia nascido, eu disse: “você não tem culpa pelo que aconteceu na guerra”.

Ela ficou séria e me respondeu: “Culpa, não. Mas eu tenho que responder por meu povo. Eu também sou eles”.

Publicado em 25/01/2011

Publicado em 25 de janeiro de 2011

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