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O vale tudo na cultura brasileira
Cláudia Sampaio
Em visita recente a um casal vizinho, descobri que a telenovela Vale tudo, exibida entre 1988 e 1989, está sendo reprisada em um canal da TV paga.
Quando viu que já era 00h45min da madrugada, e eu pensava “está tarde demais, é hora de ir embora”, a dona da casa (em trajes de dormir) pediu licença e ligou o aparelho LCD de 42 polegadas que dominava a sala. “Não perco um capítulo”, anunciou, enquanto se ajeitava confortavelmente no sofá. Num instante e estávamos nos divertindo com as lembranças de uma das novelas mais vistas e comentadas no Brasil. Um capítulo importante na história da TV brasileira. E por que não dizer da cultura brasileira?
É fato que boa parte dos estudiosos da cultura, sobretudo os puristas, para quem cultura é sinônimo de erudição, ainda torce o nariz para as telenovelas; elas, contudo, conquistaram seu espaço no campo cultural por serem um dos principais produtos do meio de comunicação mais significativo no Brasil, a televisão.
Mas é fato também que o mundo irretocável – de mulheres e homens plasticamente perfeitos, cenários deslumbrantes e amores com final feliz – age com eficiência na produção de alienação e paralisia.
Ainda que a essa fórmula seja somada a “responsabilidade social”, que se tornou regra nas atuais produções, com a abordagem de temas cujo debate em um veículo de comunicação de massa supostamente traria alguma transformação para a sociedade, o que seguimos vendo, na maioria dos casos, é a novela como prolongamento de um viés conservador.
No entanto, parece haver exceções, como a situação dramática da personagem de Alinne Moraes em Viver a vida (2010), de Manoel Carlos. As dificuldades de adaptação e locomoção da moça que ficou paraplégica num acidente de ônibus de algum modo sensibilizaram a sociedade para o problema dos deficientes físicos, ao menos naquele momento. Foi o que me informou minha tia que é cadeirante. Com surpresa e alegria, ouvi-a contar da solidariedade que passou a receber das pessoas nas ruas naqueles meses em que a novela esteve no ar.
Mas é preciso ter em conta o questionamento. As discussões surgidas são realmente potentes a ponto de causar alguma transformação? Ou se esgotam na mesma velocidade do consumo das pulseirinhas, maquiagens, penteados e figurinos das mocinhas e vilães que nas horas de folga pousam na Ilha de Caras?
Se somos levados a agir seguindo às regras da moda, e não a partir de uma reflexão que nos faça pensar, dificilmente surgem mudanças significativas.
Na época de Vale tudo não tinha essa história de responsabilidade social, mas talvez essa tenha sido a primeira novela a trazer para debate assuntos polêmicos como alcoolismo, homossexualismo e corrupção.
A cena da fuga do político Marco Aurélio, que de seu helicóptero repete várias vezes o gesto de dar bananas ao povo brasileiro, é simbólico do tema central da novela: a ética. A história de Gilberto Braga, que tinha por colaborador Agnaldo Silva, girava em torno de uma filha, Maria de Fátima (personagem de Glória Pires), que dá um golpe na própria mãe, Raquel (Regina Duarte). A trama, cujo ápice do suspense é o assassinato da vilã Odete Roitman (Beatriz Segall), se movimenta a partir da desavença entre mãe e filha para tratar de uma assunto que hoje, passados 22 anos da exibição da novela, continua um problema em nossa sociedade: a corrupção.
O gesto do político interpretado por Reginaldo Farias é emblemático. Pode ser lido como uma descrição realista da atitude típica de um estereótipo daquele que só quer se dar bem. Mas, ao mesmo tempo, é possível ver nele uma crítica ao cenário político daquele período. Assim, é o espectador quem “dá uma banana” à impunidade e ao obscurantismo que tomavam conta do país naquela década de 1980.
Em 1988, quando a novela entrou no ar, era lançada a nova Constituição Brasileira, uma tentativa de redemocratização do país, quando experimentávamos os primeiros tempos de abertura política, após 21 anos de ditadura militar. José Sarney era o presidente; assumira no lugar de Tancredo Neves, que havia morrido antes de tomar posse como o primeiro presidente pós-ditadura militar, em eleições ainda indiretas.
Ao falar de ética sob um tratamento realista, mas não moralizante, Vale tudo provoca pela questão que deixa no ar: “vale a pena ser honesto no Brasil?”.
Incomoda, mas faz pensar, ainda mais quando, passados quase trinta anos da nossa “infância política”, ainda nos deparamos com situações recentes como a dos congressistas aumentando, à revelia, seus próprios salários.
É incômodo lidar com a imperfeição e ver de perto questões tão particulares da nossa história, como a corrupção, e o papel da telenovela na sociedade. Mas é na lida com essas questões e não na negação delas que nos desenvolvemos. E talvez seja exatamente esse o trunfo de Vale tudo, o que explique os inúmeros comentários e discussões sobre a a novela na internet, em blogs, no Twiter, Orkut e ainda o porquê de tanta gente ficar acordada de madrugada para assistir à reprise dessa história, com suas sombras e seus diálogos demasiado humanos e brasileiros.
Referência
BORELLI. Silvia Helena Simões. Telenovelas brasileiras – balanços e perspectivas. São Paulo em Perspectiva, v. 15(3), p. 29-36, 2001. Disponível no endereço: http://www.scielo.br/pdf/spp/v15n3/a05v15n3.pdf.
Publicado em 25/01/2011
Publicado em 25 de janeiro de 2011
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