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A condição humana em O mito de Sísifo, de Albert Camus
Carolina Natale Toti
Em O mito de Sísifo, Camus descreve os paradoxos fundamentais, as contradições primeiras da condição humana, condição esta que ele chama de absurda. Partindo de um raciocínio que nega o conhecimento profundo das coisas, ele opta pela pintura de imagens, pela descrição das aparências. Camus deixa claro esse pensamento e o modo de escrita que dele resulta: “O método aqui definido confessa a sensação de que todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as aparências e se fazer sentir o clima” (Camus, 2008, p. 26).
Nesse ensaio ele repete muitas vezes que está interessado nas últimas consequências do que ele chama de “raciocínio absurdo”, tentando levar esse pensamento até o limite, partindo da questão do suicídio, problematizando o sentido da vida ante o destino de morte, enumerando (sem jamais pretender definir) a condição absurda do indivíduo: “Só se encontrará aqui a descrição, em estado puro, de um mal do espírito” (Camus, 2008, p. 16) e se perguntando, nessa busca das consequências do absurdo, se “o pensamento pode viver nesses desertos” (p. 35). Ou, como disse anos mais tarde em uma entrevista: “como podemos nos conduzir quando não acreditamos nem em Deus nem na razão?” O mito de Sísifo apresenta um estilo desolado e descritivo, que busca matizar as imagens para representá-las em sua diversidade e acentuar sua riqueza irredutível, repetindo-se sempre sobre os mesmos problemas, que retornam e se entrelaçam continuamente, justamente porque jamais se resolvem, gravitando sempre em torno das contradições fundamentais da humana condição, formando assim um pensamento – por imagens – que gira vertiginosamente sobre si mesmo.
A respeito do método usado no ensaio, Camus expõe o raciocínio que prefere utilizar a descrição, a pintura de imagens. Ele diz que, apesar de não podermos apreender o sentimento dos seres, a despeito do que sempre e inevitavelmente nos escapa quando tentamos esclarecer as coisas a fundo, da ineficácia dos métodos que visam esquadrinhar e conhecer o que é “irracional”, quando se busca registrar os gestos, descrever as aparências, compondo uma figura inacabada dos movimentos, é possível distinguir um determinado comportamento:
Trata-se, num tom mais abaixo, dos sentimentos inacessíveis no interior do coração, mas parcialmente traídos pelos atos que impulsionam e as atitudes de espírito que supõem. Fica claro que assim defino um método. Mas também fica claro que esse método é de análise, e não de conhecimento. (Camus, 2008, p. 25-26).
Logo no início de O Mito de Sísifo, partindo do problema do suicídio, Camus reflete sobre o caráter imperativo dos costumes, considerando que até mesmo viver é antes de tudo um hábito, e que o recurso ao suicídio mostra, dentre outras coisas, a percepção do vazio, da falta de fundamento e de propósito desse costume que é existir. Ele relaciona diretamente o caráter vão da nossa existência aos paradoxos fundamentais da condição humana: a contradição entre o desejo obstinado de conhecimento e de vida e o mundo inexplicável e finito. São essas antinomias que consagram a vanidade da existência. Sobretudo a morte, a oposição entre nosso apego apaixonado pela vida e o caráter efêmero da nossa condição: trata-se, para Camus, da primeira e mais absurda das antinomias, que esteriliza a princípio quaisquer sentidos e valores que se queira conceder à existência.
Este lado elementar e definitivo da aventura é o conteúdo do sentimento absurdo. Sob a iluminação mortal desse destino, aparece a inutilidade. Nenhuma moral, nenhum esforço são a priori justificáveis diante das sangrentas matemáticas que ordenam nossa condição. (Camus, 2008, p. 30).
A frustração da consciência ávida de conhecimento ante a impossibilidade de compreender a inutilidade dos nossos esforços por estabilidade face à inconstância da existência, o fracasso da nossa busca por unidade frente ao dualismo da consciência e do mundo, a derrota inevitável da vontade de viver ante a fatalidade da morte constituem os conflitos insuperáveis e, portanto, “absurdos” da nossa condição.
O mundo se furta continuamente às nossas tentativas de apreendê-lo, mantém-se alheio aos nossos impulsos, indiferente às nossas necessidades. A natureza apresenta sua diversidade inesgotável e o pensamento se frustra percebendo-se impotente, insignificante e desnecessário frente à irracionalidade do mundo que o cerca. A razão se dá conta de que ela própria constrói suas ficções para tornar familiar essa natureza inexplicável. Mas, quando essas imaginações se desgastam, aparece um mundo sem disfarces e insensível, ao qual o espírito se opõe e se sente abandonado, como um estranho, um estrangeiro. Sentir-se um estrangeiro no mundo é perceber-se oposto ao mesmo, aos outros e a si próprio. É a frustração do espírito em sua vontade de familiaridade.
Camus coloca o problema dos limites do conhecimento e da contradição insolúvel implicada no próprio raciocínio lógico, expondo a confusão que se instala entre o verdadeiro e o falso quando tentamos distingui-los com precisão. Ele recorre a Aristóteles para demonstrar como a lógica se nega a si mesma num “rodopio vertiginoso”, afirmando que, uma vez que admitimos nossa incapacidade de resolver as contradições primeiras da razão, ficamos condenados a viver com a consciência de que o verdadeiro conhecimento, a unidade, é impossível. Assim, permanecemos num mundo estranho, ininteligível. As explicações que insistimos em inventar para dispor um entendimento sobre a realidade são apenas artifícios ilusórios que nos proporcionam uma familiaridade provisória. E como tais explicações só convencem na medida em que se circunscrevem ao pensamento consciente, em que justificam racionalmente as coisas, o máximo que conseguem fazer não é senão restringir a vastidão da existência ao cerco limitado e insuficiente da razão.
A primeira providência do espírito é distinguir o verdadeiro do falso. Mas quando o pensamento reflete sobre si mesmo, o que ele descobre antes de tudo é uma contradição. (...) Ninguém demonstrou mais clara e elegantemente isto do que Aristóteles há séculos: “afirmando que tudo é verdade, afirmamos a verdade da afirmação oposta e, em consequência, a falsidade da nossa própria tese (pois a afirmação oposta não admite que ela possa ser verdadeira). E se dizemos que tudo é falso, esta afirmação também se revela falsa” (Camus, 2008, p. 30-1).
Camus ressalta a necessidade de se ter sempre em mente que seu ensaio está pautado pelo reconhecimento de que nós inventamos explicações para as coisas, forjamos interpretações fictícias e convenientes enquanto acreditamos descobrir a natureza dos seres, estabelecendo assim pretensas verdades e esquecendo-nos da transitoriedade e da diversidade destas conforme tempos e lugares distintos, como se os nossos valores e costumes fossem fundamentados em leis estáveis e não uma mera criação efêmera dos nossos interesses momentâneos que são condicionados ainda pelo acaso.
É preciso considerar como uma referência perpétua, neste ensaio, a defasagem constante entre o que imaginamos saber e o que realmente sabemos (...). Diante dessa contradição inextrincável do espírito, compreendemos totalmente o divórcio que nos separa de nossas próprias criações. (Camus, 2008, p. 32).
Para Camus, o reconhecimento da própria ignorância é o princípio do saber, “e está justamente aí o gênio: a inteligência que conhece suas fronteiras” (Camus, 2008, p. 84). Nossa condição impotente, nossos sentidos e conceitos limitados não são capazes de abarcar e compreender a infinita diversidade da natureza. Devemos desistir de buscar definições coerentes e estáveis para o mundo que se apresenta paradoxal, imprevisível e irredutível.
O conhecimento do qual podemos nos assegurar não ultrapassa as vãs e incertas aparências. As qualidades que atribuímos ao ser das coisas não decorrem jamais de um conhecimento objetivo, são antes nossas próprias criações, ficções precárias e transitórias que obstinadamente imputamos a uma natureza inapreensível e fluida que sempre nos escapa, a despeito de todos os nossos esforços para fixá-la. Camus ilustra essa impossibilidade da razão de apreender a substância variável dos seres e especificamente a essência volúvel do eu com a imagem da mão incapaz de segurar a água. Não há como sintetizar uma existência que se mostra antes de tudo diversa, contraditória e imprevisível, mesmo que tal existência seja o nosso próprio eu. Daí que não raro estranhamos a nós mesmos, surpreendemo-nos com nossos próprios atos e sentimentos, tão impetuosa é a incerteza da nossa condição.
Efetivamente, sobre o que e sobre quem posso dizer: “eu conheço isto!”? Este coração que há em mim, posso senti-lo e julgo que ele existe. O mundo, posso tocá-lo e também julgo que ele existe. Aí se detém toda a minha ciência, o resto é construção. Pois se eu tento agarrar este eu no qual me asseguro, se tento defini-lo e resumi-lo, ele não é mais que uma água que escorre entre meus dedos.
A crítica que Camus faz à ciência questiona o reducionismo empreendido pelos métodos científicos, que desmembram e isolam os objetos de seus contextos, subtraindo-lhes uma parte significativa de sua realidade própria. As sínteses e os conceitos são considerados insuficientes porque sempre restritos ao cerco da razão, incapazes de abranger e tampouco explanar o pluralismo inesgotável da natureza.
Ademais, Camus considera que a ciência se aproxima da poesia quando, chegando a seu limite e reconhecendo não poder ir mais a fundo, recorre à descrição de imagens. E levando-se em conta, além de tudo isso, as transformações das verdades científicas, torna-se inegável que esse pretenso conhecimento estável das coisas ultrapassa quaisquer limites de credibilidade, mostrando assim estar sujeito, como tudo que existe, às alterações imprevisíveis. Camus entende que a ciência é capaz de circunscrever e manipular a matéria, a realidade aparente do mundo, mas jamais de compreender sua essência: “Entendo que posso apreender os fenômenos e enumerá-los por meio da ciência, mas nem por isso posso apreender o mundo” (Camus, 2008, p. 34).
Se reconhecemos que os métodos dos quais dispomos para construir conhecimento são insuficientes e nos proporcionam um saber superficial e precário, encontramo-nos então em um mundo inexplicável, diante do qual a nossa consciência ávida de entendimento se vê impotente e frustrada, sempre esbarrando na aparência das coisas. E frustrada ainda em relação a si própria, pois quando reflete sobre si mesma o que encontra é somente um vazio, um escoamento inapreensível e desorientado. Dessa forma percebemos que essa razão da qual costumamos nos vangloriar, essa ferramenta de eficácia tão reduzida não pode negar que, quando toma a si própria por objeto de reflexão, destrói a si mesma repartindo-se em contradições. Com ela nos opomos e nos apartamos do mundo no qual não nos sentiríamos estrangeiros se com ela não contássemos. Mas nos encontramos, a princípio, em uma condição paradoxal, na qual, no entanto, podemos encontrar uma “paz envenenada” se nos entregarmos à indiferença.
Camus se repete constantemente, sempre descrevendo o clima desse estado contraditório e enumerando suas aparências, girando incessantemente em torno desse único tema: a absurdidade da condição humana. Para ele, nossa razão se mantém em perpétuo confronto com a irracionalidade do mundo. Estamos sempre sedentos de explicações para tudo o que existe e, no entanto, o mundo só nos responde com o silêncio e a indiferença: “O mundo para ele [espírito absurdo] não é tão racional, nem irracional a tal ponto. É irracionável, e nada mais do que isso. (...) O absurdo é a razão lúcida que constata seus limites” (Camus, 2008, p. 61); ele ressalta que o absurdo está no encontro do indivíduo com o mundo; não reside especificamente em um ou outro, mas “nasce de sua confrontação” (p. 45). Constitui o único “laço” – divorciado – entre ambos. Trata-se, portanto, da própria condição humana, já que nossa condição primeira é estar no mundo.
Admitindo a noção de absurdo como a “primeira das minhas verdades” (Camus, 2008, p. 45), lúcido e sem esperanças, sem o apoio ilusório de quaisquer divindades e doutrinas, Camus se apega a algumas situações evidentes, reconhecendo em si mesmo uma necessidade inextinguível de inteligibilidade e unidade frente a um mundo que se sonega às reduções lógicas, tamanha sua incoerência e diversidade. Admite a confusão implacável da existência, a preponderância do acaso e a equivalência de todas as experiências, que se equivalem porque não se explicam. Mas ele faz questão de salientar que essa noção de verdade à qual se atém o “homem absurdo” não se trata de uma verdade que se explica pela razão, podendo se elevar à clareza conceitual desde uma compreensão profunda da natureza das coisas.
Trata-se antes de uma verdade de superfície que abrange os infinitos aspectos das experiências, uma verdade plural, heterogênea, contraditória, sem unidade, desarrazoada. Assim, Camus também não tem qualquer pretensão de explicar; pelo contrário, quer enumerar esses aspectos e esgotar ao máximo possível essas experiências, já que percebe sua impotência em transcendê-las – “na ausência de qualquer princípio de unidade, o pensamento ainda pode encontrar suas alegrias descrevendo e compreendendo cada faceta da experiência” (Camus, 2008, p. 57).
Para Camus, nós não temos acesso à realidade essencial das coisas – se é que tal realidade existe. Existindo ou não uma substância permanente no mundo, o que sabe é somente que não a conhece, que suas faculdades cognitivas lhe permitem distinguir apenas o que é corpóreo e que, portanto, sua capacidade de discernimento se limita ao alcance do que é unicamente terreno. Como ele recusa toda metafísica e se atém somente à noção do absurdo, considerando esta última a primeira de suas “verdades”, por diversas vezes ele se reporta a essa noção com expressões afirmativas como: “evidência”, “o que é certo”, “o que não posso negar”. Para ele, toda especulação a respeito da essência dos seres é duvidosa; por isso procura rechaçar do ensaio qualquer ideia abstrata e, assim, tratar somente desse pensamento, que reflete unicamente sobre o que é “evidente”. O inegável, em Camus, não é senão o nosso impulso irrefreável em direção ao impossível: à unidade inexistente na natureza.
Nossa necessidade de elucidar e entender as coisas é frequentemente frustrada pela confusão insuperável, pela ininteligibilidade do mundo. Os acontecimentos comumente se desenrolam imprevisíveis, a despeito de todos os nossos esforços para controlá-los. Diante dessa realidade desordenada e incompreensível, todas as coisas e experiências parecem iguais para Camus, já que nenhuma delas conforma um sentido. Para ele, a afirmação de propósito em coisas incertas, desconhecidas, é inútil. O pouco que ele considera “inegável” – o confronto entre o nosso desejo de unidade e o dualismo insuperável da natureza – é por si só inexplicável e injustificável.
Posso negar tudo desta parte de mim que vive de nostalgias incertas, menos esse desejo de unidade, esse apetite de resolver, essa exigência de clareza e de coesão. Posso refutar tudo neste mundo que me rodeia, que me fere e transporta, salvo o caos, o acaso-rei e a divina equivalência que nasce da anarquia. Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço esse sentido e que por ora me é impossível conhecê-lo (Camus, 2008, p. 63).
Empenhado em expor o conflito da consciência cindida entre um eu observador e um eu observado, desdobrada em um sujeito que pode analisar a si mesmo como objeto, Camus se aplica em demonstrar como esse eu observador se opõe a si próprio, aos outros e ao mundo. Essa razão nos aparta de nós mesmos – “o estranho que, em certos instantes, vem ao nosso encontro num espelho (...) também é o absurdo” (Camus, 2008, p. 29) e de todas as coisas, tornando tudo que nos cerca, além do nosso próprio eu, passível de estranhamento. Ele contrasta essa condição humana contraditória com o estado conciliado dos outros seres, que aparentemente não se opõem a eles mesmos nem ao restante do mundo, já que, desprovidos da razão, não se apartam da natureza, voltando-se para ela com necessidade de entendê-la. Não se desdobram em conflitos paradoxais, como inevitavelmente nos acontece; tampouco se dão conta de que tais conflitos existem.
Se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, esta vida teria um sentido ou antes tal problema não o teria, pois eu faria parte deste mundo. Eu seria este mundo ao qual me oponho agora com toda a minha consciência e com toda a minha exigência de familiaridade. Esta razão tão derrisória, é ela que me opõe a toda a criação (Camus, 2008, p. 64).
Esta oposição determinada e reconhecida pela própria consciência – “E o que constitui o fundo do conflito, da fratura entre o mundo e o meu espírito, senão a consciência que tenho dela?” (Camus, 2008, p. 64), a razão e a fissura que ela implica constituem para Camus um estado evidente da humana condição. Esse raciocínio absurdo que admite somente essas “primeiras verdades”, recusando o amparo de doutrinas e religiões, procura sustentar esse “divórcio” sem jamais perder a consciência de que não existe possibilidade de conciliação, permanecendo, assim, numa tensão continuamente recomeçada, numa exigência perpétua do que sabe inalcançável.
Diante das “sangrentas matemáticas que organizam a nossa condição”, esse homem absurdo desconsidera tudo que excede aquilo que reconhece como evidente, vive alheio aos valores morais tão vãos e frágeis ante a “primeira” das suas “verdades”. Como recusa toda ilusão e esperança, atém-se unicamente ao que é palpável – sua condição mortal e limitada. Daí sua liberdade indiferente às noções tão precárias e relativas quanto as de culpa e pecado; ele se percebe inevitavelmente inocente neste mundo em que nada lhe parece certo, a não ser a certeza de sua impotência.
O reconhecimento de que não podemos distinguir uma realidade essencial que constituiria uma ordem, um propósito ao mundo, condena esse indivíduo absurdo a uma liberdade irrevogável: “Tratava-se anteriormente de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Agora parece, pelo contrário, que será tanto mais bem vivida quanto menos sentido tiver” (Camus, 2008, p. 65).
Desse modo, o conhecimento científico que busca pretensiosamente explanar todas as coisas de forma ordenada acaba sendo visto antes como um processo que depaupera a riqueza do mundo: como se esta complexidade mesma pudesse ser aplacada, como se a irracionalidade dos seres pudesse ser esquadrinhada e aclarada pela razão e como se por fim nós não tivéssemos que encarar a opacidade da vida sem o auxílio insuficiente da ciência.
O raciocínio absurdo acaba considerando a irredutibilidade mesma do mundo como uma fonte inesgotável de vontade e prazer. Aprecia indistintamente todos os movimentos arrebatados da vida, buscando experimentá-los todos e senti-los ao máximo: “tudo que há de irredutível e apaixonado num coração humano, lhes insufla ânimo e vida. (...) O homem absurdo não pode fazer outra coisa senão esgotar tudo e se esgotar” (Camus, 2008, p. 67). Vive entregue ao presente em uma liberdade intensificada porque despida de expectativas e indiferente ao futuro: “Tal privação de esperança e de futuro significa crescimento na disponibilidade do homem” (Camus, 2008, p. 68).
Em contraposição ao indivíduo absurdo, Camus fala sobre o indivíduo cotidiano, que, carregado de esperanças, deixa-se levar pela imaginação, ausentando-se do presente e planejando um futuro ilusório, inventando explicações e razões plausíveis para seus projetos, lançando toda sua vida e todos os seus esforços num tempo inexistente, como se todo o seu destino pudesse ser previamente ordenado, esquecendo-se de que a única certeza que temos do futuro – e que nos ameaça a todo instante – não é outra coisa senão a morte.
O fato de que estamos inevitavelmente condenados à morte, a iminência irremediável do fim é justamente o que permite essa liberdade extraordinária do indivíduo absurdo. Como se importar com normas e regras efêmeras quando, totalmente desprovido de esperanças, tem-se consciência plena da ameaça constante da morte? Atendo-se à finitude como sua mais fundamental e desarrazoada verdade, o raciocínio absurdo não se interessa por nada que não seja evidente, dedicando-se ao instante presente e suas possibilidades, desfrutando somente do que considera suas “verdades de carne” (Camus, 2008, p. 116-117).
Girando sempre em torno dessas primeiras certezas da humana condição, Camus fala repetidas vezes, ou, como ele mesmo diz, faz “sentir o clima” desse ambiente onde impera o absurdo e a vida que decorre quando dele se tem consciência. Para ele não há nada o que fazer senão desfrutar de todas as capacidades do corpo, sentir ao máximo essa realidade aparente que se nos impõe com desumanidade e indiferença, com vitalidade e beleza, com dor e prazer. Nessa condição impotente e, no entanto, plena de possibilidades em que vive o indivíduo absurdo “O indivíduo nada pode e no entanto pode tudo. Com esta maravilhosa disponibilidade, vocês entendem por que o exalto e arraso ao mesmo tempo” (Camus, 2008, p. 101), ele encontra satisfação na ausência de ordem, de futuro e de hierarquia na qual se graduam apreços. Trata-se de uma liberdade garantida pela própria absurdidade evidente da vida.
Daí a equivalência de todas as experiências: “o absurdo mostra, por um lado, que todas as experiências são indiferentes” (Camus, 2008, p. 73). Uma vez que não é possível conhecê-las em profundidade, ficando somente as vãs superfícies aparentes, e que portanto não parece haver sentido em atribuir-lhes quaisquer graduação de valor ou importância, o que nos resta não é senão o retorno àquelas evidências essenciais: “Sentir o máximo possível sua vida, sua revolta, sua liberdade é viver o máximo possível. Onde reina a lucidez, a escala de valores torna-se inútil” (Camus, 2008, p. 74).
Do mesmo modo, essa impossibilidade de comunicação com o ser, essa incapacidade de perceber qualquer coisa que não seja somente a realidade aparente do mundo faz com que não haja sentido também em acreditar em improváveis deuses. Ainda mais quando se considera que, a despeito de toda incerteza, no momento em que nos dedicamos a eles abdicamos do que sentimos que possuímos e que podemos realmente desfrutar: os prazeres terrenos. Não é possível apreciá-los se imergimos num futuro ou numa realidade que existe unicamente na imaginação, e por isso somente a atenção ao instante presente permite o real desfrute da vida: “entrar no mundo irrisório dos deuses é perder para sempre o mais puro dos prazeres, que é sentir e sentir-se nesta Terra” (Camus, 2008, p. 74-5).
Em poucas palavras, Camus diz quem é e o que distingue esse indivíduo absurdo: trata-se de alguém que, plenamente consciente de sua condição mortal, vive totalmente indiferente à ideia de um ser permanente: “O que é, de fato, o homem absurdo? Aquele que, sem negá-lo, nada faz pelo eterno” (Camus, 2008, p. 79). E mais adiante: “A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas” (Camus, 2008, p. 85-86). Condenados à morte quando nosso primeiro impulso é a vontade de viver, Camus considera essa condição injusta por princípio, e desse modo não há como justificar valores e morais se a própria existência se nos impõe de forma injusta: “No universo do rebelde, a morte exalta a injustiça. Ela é o abuso supremo” (Camus, 2008, p. 104).
Daí também o reconhecimento da própria inocência: fadado a uma condição injusta, o indivíduo absurdo se percebe inevitavelmente inocente e não se importa em justificar nada neste mundo, que lhe parece antes de tudo injustificável. Além disso, o movimento impetuoso da existência escapa, a todo instante, às nossas tentativas de estabilização e controle; o acaso fatalmente se impõe, e dessa forma a ideia de culpa não faz sentido.
Aos moldes de Camus, no universo absurdo impera a ausência absoluta de esperança, a vontade de esgotar todas as possibilidades do momento presente, a indiferença total ao futuro, a inexistência de sentido da vida que amplia a liberdade e, por fim, a inutilidade desse mundo irradiante.
REFERÊNCIAS
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. Explicação de O Estrangeiro. In: SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Tradução de Monica Stahel. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Publicado em 11/10/2011
Publicado em 11 de outubro de 2011
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