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A figura do erudito segundo Fichte

Marlon Tomazella

Introdução

Em suas Conferências sobre a Determinação do Erudito, o filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) desenvolve uma argumentação para determinar o que é o erudito – sua função, o modo de trazê-lo para a efetividade, a sua relação com os outros membros da sociedade e o seu sentido e importância para ela. Para isso, ele precisa determinar:

  • primeiro: o que é o ser humano propriamente;
  • segundo: como ocorre a determinação do ser humano no interior da sociedade; e
  • já que o erudito se refere a uma classe específica da sociedade e não a ela inteira, em terceiro lugar cabe a investigação sobre o sentido da diferença de classes na sociedade.

Essas três questões constituem as três primeiras conferências, respectivamente. E a questão acerca do próprio título, ou seja, sobre o erudito e sua determinação, refere-se à quarta e última preleção. Assim, este texto visa analisar o modo como Fichte compreende a figura do erudito no interior da cultura. A partir disso, poderemos ter uma noção sobre aspectos fundamentais da figura que, nos séculos XVIII e XIX, na Alemanha, teria por meta ser o educador da humanidade, apontar os caminhos da história, o erudito. Esse personagem era vinculado estreitamente à figura do pesquisador universitário da recente universidade moderna criada a partir da filosofia do idealismo alemão – da qual nosso atual formato de universidade é herdeiro.

A definição da essência humana

Algo inegavelmente característico do homem seria o fato de ele possuir razão; por conta disso, ele é o seu próprio fim; ele não deve ser meio para nada, é fim em si mesmo. Digo isso pensando na autonomia da razão considerada desde o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) como instância autorregulativa que, ao se colocar no mundo, estabelece tanto as condições de possibilidade a partir das quais os fenômenos ao seu redor podem ser conhecidos quanto as normas de ação que conduzirão o comportamento do sujeito racional, ou seja, estabelece as leis da ciência (do conhecimento) e da ação (a moral).

Mas, no caso de Fichte, o peso que reside na subjetividade como conformadora do mundo alcança um nível radical, pois para ele o “eu” se dá como ação, e não como uma coisa; ou melhor, como estado-de-ação. Esse estado é de ação porque a sua autoposição se dá de modo que põe também o não-eu (o mundo, os outros, a natureza ao seu redor) em confronto com o qual se configuram as delimitações do eu finito, o qual tem o impulso para a identidade. O que significa que o eu, ao se pôr, põe também o não-eu, pois é o modo necessário para haver sua própria determinação, ou seja, realizando uma limitação. Quer dizer: passamos a saber melhor quem somos a partir do imenso número de coisas que sabemos que não somos.

O seu estado é de ação porque, além de estabelecer essa delimitação a partir da qual o eu, a subjetividade, é possível, o eu tende a agir sobre o não-eu de modo a colocar em ação seu impulso à identidade, que visa o enfraquecimento do não-eu para a imposição conforme a unidade do eu. Assim, o eu funda toda objetividade e subjetividade, de modo que esta última não é uma abstração da razão, mas o fundamento de toda a realidade, ou seja, tanto do eu que se põe como eu finito quanto de toda a sua negação no não-eu. Quer dizer, por mais absurdo que possa parecer, ao menos a princípio, a realidade do mundo só é garantida na consciência do sujeito.

Mas o eu não é somente ser racional e autônomo (ou seja, um eu absoluto); ele também é isso ou aquilo ao se constituir no homem finito. Desse modo, se o que ele é de forma absoluta é um ser racional, cabe perguntar o que ele é quando ele é algo em específico. Se o homem, além de simplesmente ser, é algo, ele é também um ser sensível, corporal. Assim, uma primeira definição do eu puro é negativa: ele é oposto ao não-eu; pressupondo-se que o não-eu é constituído pela multiplicidade (o corpo que passa, contradiz-se e morre), o eu puro é absoluta unidade. Desse modo, “a determinação última de todo ser racional finito é pois a unidade, a constante identidade, a completa concordância consigo mesmo”. Assim, a sua humanidade é pensada como tarefa pelo fato de o homem ter uma disposição à humanidade. Ele não é homem de uma forma já dada, ele tem a humanidade como imperativo; a sensibilidade se constitui como um meio necessário para que a identidade possa se consumar. Entendamos isso melhor.

Antes do despertar da razão, nosso eu empírico sofre a aberta influência das coisas exteriores. A criança é um exemplo claro do que significa ser afetado constantemente pelo mundo exterior ou pela pura fantasia louca e desenfreada. É para reconquistar essa forma que nos seria própria (o eu puro) que são necessários a aquisição e o aperfeiçoamento da habilidade de restringir o poder daquilo que não constituiria o eu puro (racional e moral). Nesse sentido, diz Fichte:

A aquisição dessa habilidade de, em parte, suprimir e eliminar as inclinações deficientes surgidas em nós antes do despertar de nossa razão e do sentimento de nossa autoatividade; e, em parte, de modificar as coisas fora de nós e alterá-las conforme o nosso conceito, a aquisição dessa habilidade, digo eu, se chama cultura.

A mais perfeita concórdia do homem consigo mesmo e a sua mais nobre meta é a concordância das coisas exteriores com os seus conceitos que determinam o modo como elas devem ser. Por sua vez, essa concordância se dá numa via dupla: por um lado, a concórdia da vontade com a ideia de uma vontade que valha eternamente, o que constituiria o bem moral (envolvendo a imposição de restrições aos desejos e impulsos da fantasia e do corpo em prol de leis racionais); por outro lado, a concórdia das coisas fora de nós com a nossa vontade racional, o que constituiria a felicidade. É importante lembrar que essa tarefa de dominar o que é desprovido de razão e controlá-lo de acordo com suas leis (da razão) – que é o objetivo final do homem –, é eternamente inalcançável em sua plenitude, pois, caso fosse alcançável, ele deixaria de ser homem e se tornaria um deus; o caráter inalcançável de sua meta suprema é algo que está contido no próprio conceito de homem. Apesar de ser inalcançável, deve ter por meta o constante esforço pela aproximação da conquista de seu ideal, pois a “aproximação desta meta ao infinito é a sua verdadeira determinação como homem, isto é, como um ser racional, mas finito; sensível, mas livre”.

Segundo Fichte: “Aja de tal modo que tu pudesses pensar as máximas do seu querer como leis eternas para ti” (p. 296).

Desse modo conclui-se a primeira questão a ser definida: que a determinação do homem em si é a instauração da identidade do eu, o que ocorre por meio do constante esforço para se tornar melhor moralmente e mais feliz; e toda ciência e toda filosofia só teria sentido na medida em que promovessem os meios para a intensificação dessa busca, ou seja, promovendo a cultura e a elevação do ser humano.

Determinação do ser humano na sociedade

Fichte fornece uma primeira definição de sociedade: “chamo de sociedade a relação de seres racionais entre si”. O conceito de sociedade somente é possível ao pressupor-se a existência de outros seres racionais fora de nós e a existência de marcas características por meio das quais os diferenciamos dos outros seres não racionais. Mas a partir de que critérios determinamos essa diferença essencial para saber quem é humano e, por consequência, faz parte da sociedade? Alguém poderia responder que a experiência auxilia a identificar a recorrência de algumas diferenças a partir das quais concluímos que uma pedra não é um humano, mas Fichte alega que a experiência não é capaz de garantir a certeza dessa diferenciação, pois ela “só ensina que a representação de seres racionais fora de nós está contida na nossa consciência”; a questão buscada é mais fundamental, referindo-se à dúvida de se essa representação corresponde a algo fora dela mesma, de modo que, mesmo se minha representação não existisse, o objeto da representação existiria independentemente – no caso, os outros seres dotados de racionalidade. Ou seja, refere-se ao problema de como é possível discernir se os efeitos que eu identifico como sendo provenientes de causas racionais têm de fato seus autores como existentes. Assim, o que eu tenho por meio da experiência são efeitos dados, e não a determinação de existência de algum objeto que seja a causa de forma evidente.

Se o impulso mais alto do homem é pela identidade consigo mesmo e das coisas que lhe são exteriores com os seus conceitos, todo conceito que está em seu interior tende a demandar sua correspondência no não-eu. Existem no homem os conceitos de razão, da ação e pensamento em conformidade com ela – e, consequentemente, em conformidade a fins –, e por isso há essa exigência da razão de que estes conceitos se realizem fora dele, demandando a existência de outros seres racionais. Meu eu não pode produzi-los, mas coloca o conceito desses seres como fundamento de sua observação do não-eu, pretendendo encontrar algo que lhe corresponda. O primeiro modo como a racionalidade aparece é de forma negativa, pois uma característica fundamental da finalidade é a de ter um autor racional, ou seja, por meio do efeito se identifica a causa (vendo algo acontecendo que tem uma finalidade, pressuponho a existência de sua causa presente num ser racional). Essa determinação poderia não ser suficiente para que fosse alcançada a almejada diferenciação – as leis da natureza também são voltadas à realização de fins. Mas há uma diferença fundamental entre os tipos de conformidades a fins, pois a natureza age em conformidade a fins obedecendo a leis necessárias, enquanto a razão atua com liberdade. Desse modo, aquele que age conforme a fins e livremente é um ser racional. Mas como é possível diferenciar um efeito que se dá a partir de causas necessárias de outro que ocorre a partir da liberdade? A liberdade não se circunscreve no campo da consciência, pois não me torno consciente de forma imediata da liberdade em mim ou fora de mim, mas eu posso me tornar consciente da existência em mim de um tipo de determinação por meio da minha vontade que não encontra sua razão de ser em nada além do que a minha própria vontade racional – levando-se em conta um momento em que os objetos que supostamente poderiam ocasionar inclinações não dão conta de servir de explicação para tal determinação da vontade. Esse não encontrar, essa não consciência da causa deste “impulso” pode ser mesmo considerada a consciência da liberdade, a partir da qual reconhecemos nossos atos como atos livres. Quando não consigo identificar nenhuma motivação empírica para a minha ação (desejo, sentimentos, inclinações), nenhuma influência exterior à própria capacidade racional de decidir, trata-se de um ato livre. Ao observar-se um indivíduo em suas determinações empíricas, de modo que as inclinações externas não podem fundamentá-las, identifica-se um ser livre.

Se há esse impulso no homem – decorrente de sua necessidade de identidade – de assumir a existência de seres racionais fora dele, esse impulso só pode se realizar se ele viver em sociedade. Por isso há no homem um impulso à sociabilidade que o determina a viver nela. Mas se há no homem esse impulso fundamental para encontrar outros homens, o próprio conceito de “homem” se mantém ideal, devido ao fato de a consumação de sua finalidade ser inalcançável – como afirmamos mais atrás. Desse modo, o homem deve ser definido – idealmente – tendo-se como base valorativa o que há de mais alto possível, de melhor no homem, de modo que a determinação da sociedade seja o próprio “aperfeiçoamento da espécie”, o qual se dá no interior da cultura, onde os melhores homens poderiam e deveriam influenciar os menos dotados no que se refere ao desenvolvimento das habilidades concernentes à cultura. Uma dessas habilidades é a própria sociabilidade, que leva à interação, ao dar e receber e a sobrepor a subordinação com a coordenação entre seus membros. Quer dizer, a sociabilidade se refere justamente ao tratamento do outro, tendo-se sempre em mente que ele é um fim em si mesmo, por ser um ser racional, e por isso, não podendo ser tratado como meio, pois, ao se fazer isso, demonstra-se que não se chegou ao verdadeiro impulso para a sociabilidade, e, por consequência, nem ao sentimento da liberdade e capacidade de agir por si mesmo. Caso se tivesse chegado a esse sentimento, gostar-se-ia de reconhecer ao redor seres livres assim como a si mesmo; pois só é realmente livre aquele que torna livre tudo em torno de si – é assim que ocorre de fato a correspondência desse impulso à identidade, que é fazer corresponder o não-eu ao eu: que aquele que não é “eu” seja tão livre quanto eu.

Ainda que todos os homens sejam diferentes entre si, haveria, segundo Fichte, algo em comum entre todos eles, que é a sua destinação à perfeição, ou melhor, ao constante esforço para aproximar-se no mais possível da perfeição – que é, na verdade, inacessível. Caso fosse possível, a sociedade se consumaria numa “unidade e unanimidade absoluta”, de modo que se constituiria como sendo um único sujeito. Essa total unidade é a última meta, mas não a determinação do homem na sociedade. Sua determinação é a aproximação ao infinito dessa unidade, o que se dá por meio de um aperfeiçoamento, ao se utilizar livremente da influência que os outros causam em nós e ao causar nos outros as melhores influências que temos a oferecer. Esse duplo movimento é decorrente da aquisição e do desenvolvimento das habilidades de dar ou de afetar, por um lado, e, por outro, da receptividade ou do tomar para si, que é o saber tirar proveito em sua máxima intensidade dos efeitos salutares dos outros em nós. Assim alcançamos a determinação do homem na sociedade, o “o que” ele deve ser nela.

Determinação da diferença de classes entre os homens

Após a análise da determinação do homem em si e do homem na sociedade, cabe perguntar qual é a determinação do erudito na sociedade. Mas acontece que ele é um membro de uma determinada classe, o que leva a outra pergunta, que deve ser precedente: de onde surgiu a desigualdade entre os homens? Com que direito existem diferentes classes? Para tanto, a investigação que Fichte intenta promover não se refere a alguma instituição determinada com classes em algum tempo histórico específico, pois não se trata de uma perspectiva histórica, mas de uma perspectiva moral, ou seja, para descobrir quais são as metas a serem alcançadas em qualquer instituição social, independentemente de contexto e do tempo histórico (lembrando: trata-se de um pensamento pré-Marx).

Por meio das diversas formas de atuar, a natureza determina formas específicas que constituem os indivíduos, todos eles distintos entre si a partir de uma diferença originária, a própria constituição física, em que a liberdade em nada pode interferir. Para podermos nos contrapor às determinações empíricas (o corpo) por meio da liberdade, precisamos chegar à consciência e ao uso dessa liberdade, o que se dá por meio do despertar e do desenvolver de certas habilidades. Desse modo, a suprema lei da humanidade (identidade e concordância consigo mesmo) exige que o indivíduo seja desenvolvido para a consumação uniforme de todas as suas habilidades; mas a lei somente não pode realizar essa tarefa justamente porque somos afetados, porque somos determináveis por causas exteriores, pelos efeitos da natureza. Se tudo ocorresse conforme a lei, havendo a exigência de que todos os seres racionais fossem formados de modo que todas as suas disposições se exteriorizassem da mesma forma, ocorreria “uma completa igualdade de todos os seus membros”, o que, como já salientado mais atrás, é impossível, ainda que devamos sempre perseguir esse ideal. Assim, os dois impulsos em que se divide o impulso à sociabilidade – o da comunicação, em que instruímos alguém a partir daquilo que somos mais cultivados, fazendo-o igual àquilo que temos de melhor; e o de saber receber, em que nos deixamos instruir por aquele que é bem cultivado em algo em que não o somos – são meios pelos quais a razão e a liberdade “consertam” a imperfeição da natureza ao nos criar, aperfeiçoando-a. Dessa forma, a razão faz com que a natureza proporcione à espécie o que ela não proporcionou ao indivíduo, provendo-o mediatamente do que a natureza não o proveu imediatamente. Ao visar talvez enfraquecer o poder da razão, a natureza acabou por torná-la mais forte, pois o ímpeto da necessidade e da sua satisfação congregou o homem intimamente numa unidade social.

Até agora foram apontadas as diferenças múltiplas passíveis de serem instauradas entre os homens, mas não foram estabelecidas classes. Vamos agora para essa explicação. O indivíduo enquanto tal se entrega à natureza para o desenvolvimento unilateral de alguma aptidão ou disposição nele, não tendo escolha, recebendo o que ela tem a lhe dar (talento, dom, inclinação, maior facilidade para fazer algo) – ainda que ele se esforce por um cultivo de suas aptidões da forma mais multilateral possível. Mas nessa entrega de si à natureza diferentes impulsos e aptidões são despertados no indivíduo, o qual delibera por não permitir que algumas instigações da natureza nele se realizem para poder se aplicar e desenvolver uma ou algumas habilidades específicas e não outras. É esta peculiar habilidade escolhida para ser trabalhada que determina uma classe.

O homem nasce num determinado estado de cultivo da natureza pelos outros homens que o precederam e por seus contemporâneos, de modo que não lhe é permitido somente gozar das coisas do jeito que as encontrou, pois, segundo Fichte, ele tem uma dívida a ser paga à sociedade, que é o esforço pelo constante aperfeiçoamento do gênero humano. Mas a não escolha de uma classe em prol da dedicação a uma suposta totalidade não lhe seria proveitoso nem à sociedade, pois só serviria para a tomada de consciência acerca do que os outros antes dele já fizeram e do que resta para fazer; o tempo de sua existência é muito curto para tentar abranger a tarefa que exige todo o corpo da humanidade no decorrer do tempo. Por isso, ele acaba por escolher para agir um determinado setor que se encontra mais próximo às suas aptidões que já foram mais cultivadas, tanto pela sociedade quanto pela natureza, sendo sempre um ato de liberdade sob o jugo da lei moral: “nunca esteja, no tocante às determinações de sua vontade, em contradição consigo mesmo”.

Desse modo, a escolha de uma classe de atuação se dá como uma retribuição à sociedade por aquilo tudo que ela nos proporcionou. Deve-se aplicar sua formação, sua educação para as vantagens da sociedade, pois se é, de certa forma, seu produto e sua propriedade; e, ao não se fazer útil para ela, ela é privada de sua própria propriedade. Portanto, a escolha de uma classe seria um meio mais adequado de auxiliar a humanidade a se tornar cada vez mais independente da natureza, viabilizando um “progresso uniforme da cultura em todos os indivíduos”, o que proporciona a elevação do espírito com o sentimento de que, ao se trabalhar para si mesmo, está-se a trabalhar para todos os outros. Trata-se da harmonia da multiplicidade em que nosso ser adquire sentido e finalidade; o passado, com todos os seus grandes momentos, passa a se relacionar diretamente conosco, constituindo uma unidade, de modo que o passado pode ser entendido como todo um processo de preparação para as condições a partir das quais o nosso surgimento no mundo pôde se dar, na forma em que se deu. Nossa existência passa a ter o imperativo da continuidade à tarefa a que os seres humanos que vieram antes se propuseram: tornar a humanidade mais sábia e mais feliz, continuar a construir onde eles pararam. Nesse sentido, é possível pensar na eternidade da essência humana, pois, se a sua destinação é empreender a realização de uma tarefa que nunca terminará (a do constante aperfeiçoamento), a finitude individual passa a perder importância frente à total tarefa humana no meio da qual a vida finita se insere para dar sua contribuição. Assim, o indivíduo participa da eternidade justamente na medida em que se compreende como participante de um processo sem fim; é a cultura que lhe possibilita essa eternidade, pois seus feitos – ainda mais se forem decisivos – estarão servindo de apoio e auxílio a gerações futuras engajadas num estágio já mais adiantado do processo de aperfeiçoamento da humanidade frente à natureza.

A determinação do erudito

Agora, com esses conceitos previamente esclarecidos, estamos mais preparados para a determinação do erudito propriamente. Já no início da quarta conferência, Fichte afirma o que o erudito faz de fato: se ocupa com a ciência. Mas o que está aqui sendo entendido como “ciência”? A palavra alemã para designar ciência é Wissenschaft, de modo que já na sua constituição vai se mostrando o seu sentido originário, pois Wissenschaft é a substantivação do verbo wissen, que significa saber, conhecer. Desse modo, Fichte afirma que há uma tendência no homem para saber, e principalmente para saber o que lhe é necessário. Mas para o desenvolvimento dessa aptidão ou disposição é necessário o engajamento e o esforço, que exigem certa dedicação exclusiva, ou seja, de determinada classe, pois é a partir desse desenvolvimento que será possível a determinação de todas as outras aptidões ou disposições no interior da sociedade e de seus respectivos meios de desenvolvimento e satisfação. Trata-se do meio para que a preocupação com o desenvolvimento uniforme de todas as disposições do homem se realize, pois essas disposições ou aptidões, assim como os impulsos e necessidades do homem, devem ser previamente conhecidas para serem viabilizadas as formas mais eficazes para a sua realização. Esse conhecimento deve ser capaz de definir o que falta à humanidade, juntamente com o meio de suprir esta falta. Assim, para além de saber quais são as disposições gerais do homem e quais os meios para desenvolvê-las, é preciso tornar esses conhecimentos úteis à sociedade. De que modo? Mediante o saber em que estágio da cultura se está para, a partir desse estágio, saber-se que graus ela ainda tem que subir e por que meios. Para determinar esse estágio não é suficiente o fundamento racional; é necessária a experiência, a indagação acerca dos eventos precedentes do mundo, que, sempre guiada pela perspectiva filosófica, se refere ao conhecimento histórico. Essas três modalidades do conhecimento – 1. o saber científico, 2. de forma exclusiva, 3. identificando o que falta à humanidade em seu atual estágio junto dos meios para realizar sua destinação –, pensadas de forma unida, constituiriam a erudição. Mas como não é possível ao indivíduo que se dedica ao exercício dessas três habilidades abarcar a totalidade do saber humano, ele deve escolher partes específicas do conhecimento para se dedicar, gerando assim as especializações, que seriam responsáveis pelo progresso da humanidade – e o erudito, assim, constitui-se como aquele que zela por esse progresso e o promove. Ele assume para si a tarefa de ser “o mestre do gênero humano”, fazendo com que venha à tona um sentimento que o homem já tem, que é o sentimento da verdade, conquistado pela prova, pela purificação e pelo desenvolvimento. Não são necessárias profundas bases para propiciar esse norteamento pelo sentimento da verdade, desde que alguém o guie. O erudito, ao olhar sempre para o futuro, para o caminho que tem de ser seguido corretamente, orientando a sociedade nesse caminho, agiria como “educador da humanidade”. Sua orientação visaria ao “enobrecimento moral de todos os homens”, e, para isso, não basta somente o conhecimento teórico, mas também a atitude, o modo de ser; ele precisa ser nobre para pretender enobrecer, pois se ensina com o exemplo, além de com as palavras; é inadmissível a contradição entre o ensino da nobreza e a ação destituída de nobreza por parte daquele que a ensina, pois os conceitos devem se referir à experiência e ao modo de viver nela. Por isso, o sábio deve ser o modelo, o tipo de homem que seria o melhor de seu tempo.

Conclusão

Desse modo, Fichte propôs um ideal de cultura tendo como pressuposto, fundamento e propósito a aproximação ao infinito da completa identidade. Ele o fez tendo alguns pressupostos que não se efetivaram, como a ideia de que a determinação de classes não dependeria de fatores econômicos e históricos; ou como a crença de que o exercício teórico por si só seria capaz de elevar a moralidade daquele que a ele se dedicasse. O que ocorreu foi que, com o desenvolvimento dos ramos variados da ciência, aumentou-se o grau de especificidade do estudo teórico; o crescimento moral do cientista não se efetivou – pois em geral não há cientistas que sirvam como modelo de homem a ser alcançado, a não ser uma exceção com a riqueza humana de Albert Einstein. Fichte supôs que a moralidade seria garantida com o cultivo do saber, mas as duas coisas se distanciaram de tal modo que foi colocado em cheque o que afinal pode-se chamar cultura, pois a intensificação do implemento e do desenvolvimento de técnica por conta do progresso científico acabou por gerar uma quantidade imensa de problemas impensáveis no final do século XVIII e começo do XIX (como discussões sobre princípios morais para lidar com certas descobertas técnicas, como manipulação genética em humanos ou como o uso de teorias científicas para o desenvolvimento de armas de destruição em massa).

De todo modo, Fichte, a partir dessas conferências, deu significativa contribuição à história do pensamento acerca de questões essenciais, como a importância de determinar a humanidade do homem. Ainda mais num momento pós-revolucionário (à Revolução Francesa), em que o orgulho pelo homem vinha se restringindo de forma definitiva à capacidade de realizar revoluções armadas ou de organização política. Mas, pelo fato de Fichte participar de um movimento teórico referente à reflexão sobre a Bildung, a formação humana como um todo – e por isso entender a humanidade do homem como meta, como tarefa a ser perseguida eternamente, o que evita que ocorra qualquer estagnação ou determinação ideológica acerca do que o homem é –, ele buscou elementos que pudessem distinguir o homem como espécie particular, como elemento distinto na natureza e também do ideal humano da Revolução Francesa, por pretender encontrar fundamentos mais sólidos e verdadeiros a partir dos quais o homem pudesse conquistar sua liberdade por si mesmo, independentemente de contingências políticas ou exteriores à sua própria destinação.

Bibliografia

Einige Vorlesungen Über die Bestimmung der Gelehrten (Algumas preleções sobre a determinação do erudito) consultada no endereço http://www.zeno.org /Philosophie/M/Fichte,+Johann+Gottlieb/Einige+Vorlesungen+%C3%BCber+die+ Bestimmung+dês+Gelehrten.

Publicado em 11/10/2011

Publicado em 11 de outubro de 2011

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