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Como a instituição escola interfere no desejo de aprender?

Janaina Pires Garcia

Doutoranda em Educação (UFRJ); professora de Sociologia no Ensino Médio

O espaço escolar possui uma qualidade ímpar: o potencial de ser um espaço democrático onde ocorre encontro de possibilidades. A escola traz muito mais do que as famílias podem trazer, contrariando a tese do capital cultural (Bourdieu, 1977). Para esse autor, o processo inicial de acumulação do capital cultural começa inconscientemente desde a origem, sem atraso, sem perda de tempo, pelos membros das famílias que possuem capital cultural. Nessas famílias, o tempo de acumulação abarca praticamente todo o processo de socialização. Bourdieu (1977) afirma que o capital cultural pode existir sob três formas: estado incorporado, estado objetivado e estado institucionalizado.

Cabe observar que, do ponto de vista de Bourdieu, o capital cultural constitui (sobretudo na sua forma incorporada) o elemento da bagagem familiar que teria o maior impacto na definição do destino escolar. Em primeiro lugar, a posse de capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e códigos escolares. As referências culturais, os conhecimentos considerados legítimos (cultos apropriados) e o domínio maior ou menor da língua culta, trazidos de casa por certas crianças, facilitariam o aprendizado escolar, pois funcionariam como uma ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar. A educação escolar, no caso de crianças oriundas de meios culturalmente favorecidos, seria uma espécie de continuação da educação familiar, enquanto para as outras crianças significaria algo estranho, distante ou mesmo ameaçador. Em segundo lugar, a posse de capital cultural favoreceria o êxito escolar porque propiciaria melhor desempenho nos processos formais e informais de avaliação. Bourdieu (1975) observa que a avaliação escolar vai muito além de uma simples verificação de aprendizagem, incluindo um verdadeiro julgamento cultural e até mesmo moral dos alunos. Cobra-se que os alunos tenham estilo elegante de falar, de escrever e até mesmo de se comportar; que sejam intelectualmente curiosos, interessados e disciplinados; que saibam cumprir adequadamente as regras da boa educação. Essas exigências só podem ser plenamente atendidas por quem foi previamente (na família) socializado nesses mesmos valores. O capital cultural, no seu estado incorporado, não pode ser transmitido instantaneamente por doação ou por hereditariedade, por compra ou troca. Pode ser adquirido de maneira totalmente dissimulada e inconsciente e permanece marcado por suas condições primitivas de aquisição. Desse modo, a internalização pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação que exige investimentos de longa duração para tornar essa forma de capital parte integrante da pessoa. No estado objetivado, o capital cultural existe sob a forma de bens culturais, como esculturas, pinturas, livros etc. Para possuir os bens econômicos na sua materialidade, é necessário ter simplesmente capital econômico, o que se evidencia na compra de livros, por exemplo. Todavia, para apropriar-se simbolicamente desses bens é necessário possuir os instrumentos dessa apropriação e os códigos necessários para decifrá-los, ou seja, é necessário possuir capital cultural no estado incorporado. No estado institucionalizado, o capital cultural materializa-se mediante os diplomas escolares. O capital cultural institucionalizado se dá basicamente sob a forma de títulos escolares.

Dentro desse contexto, devemos ultrapassar a teoria do capital cultural e pensar numa escola que não seja somente reprodutora das desigualdades sociais, mas,

antes de tudo, nas crianças que devem se encontrar, hoje, mais ou menos na mesma situação em que eu estava na infância: deserdados, distantes da cultura, à espera de uma improvável salvação, com poucas chances sociais de se dar bem sem a escola e não dispondo de um objeto preferido ao qual se apegar (...). No meu romance pessoal, fui salvo duas vezes: pela escola e pelo cinema. A escola em primeiro lugar me salvou de um destino de provinciano que nunca teria acesso à vida e à cultura de adulto que se tornaram as minhas (Bergala, 2002, p. 13).

Imediatamente uma questão vem à tona: num mundo de pobreza de experiências e dentro de uma instituição escolar ainda com significativas características de repressão e controle, como provocar o desejo no aluno? Para Bachelard (1972, 2005) a escola produz um ensino monótono, repetitivo e baseado na memorização, o que leva o estudante a ter profundo desgosto por tal instituição. Mas a escola é uma necessidade para todo ser humano; logo, ela deveria ser algo para toda a vida, mas o filósofo percebe na escola o que ela vai chamar de obstáculo pedagógico, que é o mal do qual sofre todo professor. Tal obstáculo consiste em não compreender e ignorar as razões pelas quais os alunos não aprendem.

            Nesse sentido, Illich (1979) defende que se torne necessário

criar entre o homem e aquilo que o rodeia novas relações que sejam fontes de educação, modificando simultaneamente as nossas reações, a ideia que fazemos do desenvolvimento, os utensílios necessários para a educação e o estilo da vida quotidiana.

Segundo o autor, as novas instituições educativas deveriam permitir a qualquer aluno o livre acesso a toda informação e a todo conhecimento que pretendesse adquirir. Em oposição aos atuais programas escolares obrigatórios supervisionados pelas instituições, o aluno não deveria ter necessidade de apresentar quaisquer credenciais ou currículo anterior para lhe ser facultado esse acesso. De igual modo, essas novas instituições permitiriam a todas as pessoas a possibilidade de comunicar os seus conhecimentos, tornando-os acessíveis e disponíveis a todos os interessados, com vista a aumentar e a multiplicar as oportunidades quer de aprender, quer de ensinar. Segundo Illich, trata-se de substituir as perguntas: O que é necessário que se aprenda? Com que espécie de coisas e de pessoas deve estar relacionado aquele que deseja aprender? (Illich, 1979). Nesse sentido, deve-se repensar o trabalho escolar avaliando práticas educativas portadoras de futuro, que desalienem o trabalho escolar, isto é, desinstrumentalizar as atividades pedagógicas para que haja verdadeiramente uma produção de sentido.

Falar em produzir sentido é falar do desejo. Só se aprende pelo desejo (Freud, 2001). Logo, como provocá-lo? Por sua própria posição frente ao conhecimento, Freud gostava de pensar nos determinantes psíquicos que levam alguém a ser um desejante de saber. Nessa categoria incluem-se os cientistas, que devotam a vida à pergunta “por quê”, e as crianças, que, a partir de determinado momento, bombardeiam os pais com “por quês”. Para Freud, o princípio fundamental de toda produção de imagem e de subjetividade está vinculado à noção de desejo. Em seu livro A interpretação dos sonhos une a noção de desejo à noção de imagem. Em sua essência, o desejo se definiria como produção de imagens. Para explicar melhor o pensamento de Freud sobre a dinâmica do desejo na relação entre o sujeito e o objeto, recorro à observação feita por ele ao comportamento de um de seus netos de dezoito meses. Refiro-me ao “fort-da” esse momento específico em torno da observação descrita por Freud em seu livro Além do princípio do prazer.

Freud observara que o bebê tinha o hábito de jogar para longe pequenos objetos que casualmente lhe vinham às mãos. Segundo Freud, esse gesto era acompanhado pela criança com o som prolongado de o-o-o-o-o, que, segundo Freud, constituía o esboço da palavra “fort” (“longe” em alemão). Num outro momento, essa mesma criança tem uma atitude que parecia mais completa: segurando na mão uma linha amarrada num carretel, o bebê arremessava o carretel para longe de seu berço dizendo o-o-o-o-o e, em seguida, habilmente puxava o carretel de volta exclamando a palavra “da” – que em alemão quer dizer “eis aqui” ou “chegou”.

Diria que essa pedagogia de substituição de objetos do desejo presentes no “fort-da” tem sido sempre a fórmula ideal encontrada pela psicanálise para demonstrar a importância dos objetos concretos e do brincar como lugar ideal para a construção do tecido temporal da subjetividade.

No “fort-da”, o desejo da imagem e a imagem do desejo compõem o brincar necessário à fabricação do real. O carretel aparece como uma base fixa para as fantasias. Encontramos, assim, no “fort-da” uma determinação evolutiva da imago do desejo que é transportada pelo afeto (libido) para a mãe. Segundo Freud, na ausência da mãe essa libido é projetada no “objeto carretel”, criando um espaço real para o fantasma do abandono.

Poderíamos então dizer que o carretel permitiu um corte na imaginação do bebê colocando entre parênteses o desejo do bebê e, ao mesmo tempo, permitindo a criação de um correlato imaginário para a mãe real, preenchendo, de certo modo, o vazio deixado pela ausência. Grosso modo, diria que no “fort-da” o desejo e a imagem se juntam às coisas, criando no imaginário a condição de possibilidade da experiência sensório-afetivo-motora. Dessa forma, as imagens têm cumprido o papel importante de criar formas elementares com o objetivo de instruir o espírito humano em sua tarefa de encontrar a boa síntese. Como na metáfora, a imagem aparece como a solução mais adequada encontrada pelo desejo para veicular o sentido que escapa à lógica racional. Por trás da metáfora encontramos a “imagem-sentido” que nos permite lidar emocional e imageticamente com o mundo.

O desejo encontra na metáfora viva um instrumento eficaz de produção de sentido. Em sua maneira imagética de veicular o sentido, a solução metafórica aparece como um esquema de transferência unificador em torno do qual o indivíduo se organiza e se estrutura. Ela nasce no vazio que se interpõe entre o sujeito e o objeto, entre o Eu e o mundo exterior e permite traduzir emoção em imagens.

Nesse sentido, Sara Paín (1999) afirma que a função da ignorância é atravessar como uma membrana o desejo do conhecimento, permeando permanentemente essa transformação.

Retornando ao contexto escolar, o aluno, como sujeito receptor de informações, já encontra alguns estranhamentos com o ensino de muitas de nossas escolas. É preciso, pois, aliar o ensino à cultura, às artes, para assim despertar no campo do sujeito-aluno o desejo em aprender. Sabe-se que há atualmente no Brasil um sintoma que atinge os processos culturais de forma geral: a falência da transmissão na relação professor-aluno. Hoje, na rede pública brasileira, há uma descrença profunda em relação aos próprios processos de transmissão. O professor não acredita mais que possa ensinar, e, os alunos, que possam aprender. Tenho a impressão de que educar não é levar o aluno e o professor a se identificar nos circuitos escolares ou se apropriarem do saber, tornando-os seus. Educar é perceber que o ensino nos remete à própria cultura, a uma nova forma de ver o social e o individual. Ensinar é estabelecer referências. Bergala (2002) aspira a que todo professor torne-se um bom passeur (Bergala, 2002, p. 44), referindo-se ao conceito proposto pelo francês crítico de cinema Serge Daney (1944-1992), que consiste em uma forma de entender o agente de transmissão, aquele que dá algo de si mesmo, que acompanha na barca ou pela montanha a aquele a quem deve fazer passar, que corre os mesmos riscos daqueles que tem sob sua responsabilidade. Segundo Alain Bergala, fechar as crianças dentro de uma sala de aula e as entupir de teorias fundamentais não é a melhor maneira de lutar contra o iletrismo. Isso seria esquecer uma verdade primeira: só o desejo instrui.A pessoa só aprende aquilo que deseja aprender. Mas, perguntamo-nos mais uma vez, como aguçar esse desejo de aprender? Esse princípio está presente em toda criança, mas a escola não percebe que o desejo dos alunos já está conformado ao princípio social da realidade: tem que saber ler, escrever, contar, por diferentes motivos. Aqui nota-se uma das grandes desigualdades escolares: aqueles que têm razão para aprender e aqueles que, por causa de seu ambiente familiar, social e cultural, não têm. Aqueles que já tem um futuro e aqueles que só têm um presente caótico.

Que pode fazer então o professor na sala de aula? Investir no seu aluno, no potencial que ele possui, e não no aluno idealizado; assegurar a ele um lugar de reconhecimento em seu meio social; assim, essa criança, sentindo-se respeitada e amada, poderá investir em si própria, no desejo de pensar e aprender.

Nesse sentido, Freud (1976) afirma que só pode ser pedagogo aquele que se encontra capacitado para penetrar na alma infantil e que nós, adultos, não compreendemos nem a nossa própria infância; como poderemos então compreender e educar uma criança que está sob nossa responsabilidade? Quando os educadores estiverem de bem com a criança que há dentro deles, poderão trabalhar com a energia daquela que está sob seus cuidados e acompanhá-las com melhores condições de passeur (Bergala, 2002, p. 44).

Segundo Kupfer (1989), um professor psicanaliticamente bem orientado saberá trabalhar com o sentimento de seus alunos e saberá abdicar de sua figura de autoridade, permitindo que seu aluno pense por si, seja crítico e se torne independente. Esse professor aprenderá a organizar seu saber, mas renunciará ao poder, que o levaria a se impor aos alunos. Nesse gesto de renuncia, permitirá ao aluno matar o mestre dentro de si para se tornar o mestre de si mesmo. Caberá a ele, nessa interação, guiado por seu desejo, organizar, articular e tornar lógico o conhecimento transmitido ao seu aluno. Ao aluno caberá ingerir, desarticular e tomar para si o conhecimento que se engancha em seu desejo, que tem sentido para ele, e que será fundamentalmente útil para ele em sua vida. Essa postura pedagógica dialoga em harmonia com a visão do aprender e ensinar cinema proposta por Bergala, que valoriza o aluno como sujeito desejante, ativo, livre, capaz de se emocionar no ato de aprender. Professores ensinam não só um conteúdo, mas uma matéria incorpórea, uma forma de amor a si e ao conhecimento. Toda aprendizagem em que professor e aluno se entregam ao prazer de aprender, respaldados pelo afeto, pela liberdade e pelo respeito, torna-se uma lição de amor, um encontro verdadeiro entre duas (ou mais!) pessoas, de dois (ou mais!) desejos inconscientes.

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gastón. Conhecimento comum e conhecimento científico. Tempo Brasileiro, São Paulo, n. 28, 1972.

BACHELARD, Gastón. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGALA, Alain. L’hipothèse cinéma. Petit traité de transmission du cinéma à école e tailleurs. Paris: Petit Bibliothèque des Cahiers du Cinéma, 2002.

BOURDIEU, Pierre. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.

BOURDIEU, Pierre. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

FREUD, Sigmund."O mal-estar na civilização". In: ESB vol. XXI. Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, S. A interpretação de sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1979.

KUPFER, Maria Cristina. Freud e a educação. Rio de Janeiro: Scipione, 1989.

PAÍN, Sara. A função da ignorância. Trad. Maria Elísia Valliatti Flores. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.

Publicado em 11/10/2011

Publicado em 11 de outubro de 2011

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