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A finalidade do mundo e a noção de substância em Spinoza

Mariana Cruz

Spinoza define substância como aquilo que “existe sem necessidade de outro para existir”, de modo que apenas um elemento se encaixa em tal definição: Deus – uma vez que Ele é causa de si e existe em si mesmo. Em Spinoza, Deus e natureza são idênticos. A natureza e tudo mais que possa existir é apenas modificação dessa substância una: “Deus sive Natura” (Deus, isto é, natureza). Ele está presente em tudo que foi criado. Em Deus, e somente Nele, existência e essência coincidem. Deus é a causa última de tudo e tudo que existe está Nele e foi por Ele concebido. Daí não há sentido falar de perfeição moral divina em Spinoza.

De acordo com o filósofo, os homens tendem a pensar que tanto eles como a natureza existem com vistas a um objetivo:  

os homens supõem comumente que todas as coisas da natureza agem como eles mesmos, em consideração de um fim, e até chegam a ter por certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para determinado fim (Spinoza, 1997, p. 198).

Tal crença é fortalecida pelo fato de encontrarem na natureza interna e externa elementos que suprem todas as suas necessidades, pois ela lhes dá “olhos para ver, dentes para mastigar, vegetais e animais para alimentação, sol para iluminar, mar para o sustento de peixes” (Spinoza, 1997, p. 199). As coisas nada mais são do que meios para eles atingirem seus fins. Mas quem tornou disponíveis tais coisas para o desfrute dos homens? Estes concluem que foi alguma inteligência superior, ou seja, Deus.

Por não terem ideia de como seria esse tal ser, usam a si mesmos como fonte de inspiração, construindo-o à sua própria imagem. Seguindo esse raciocínio, cabe aos homens um lugar de honra no topo da escala criada por esse ser superior; afinal, somos os “escolhidos” por Ele. Se de fato a natureza é o manancial das dádivas aos homens, se ela existe única e simplesmente para supri-los, que papel teriam os fenômenos nocivos aos homens, como doenças, terremotos, ciclones? Seriam manifestações da ira divina? Mas como explicar o fato de tais castigos serem dirigidos, sem distinção, tanto aos fiéis como aos céticos? A justificativa encontrada para tais questões está no fato de certas coisas não estarem ao alcance do entendimento humano.

Spinoza não concorda com essa tese. Para ele, a natureza é perfeita; sendo assim, não pode ser feita para servir ao homem. Algo perfeito é algo “todo feito”, de onde nada se tira e nada se põe. Ela é um fim em si mesma e não um “meio” para o homem. O mesmo ocorre com Deus: pelo fato de Ele ser perfeito, por que motivo Ele haveria de agir teleologicamente, como se carecesse de algo? Quem busca um fim, um thélos é porque lhe falta alguma coisa. Isso não se aplica a Deus.

Outra objeção spinozista a respeito da submissão da natureza ao homem está no fato de que qualquer coisa, quanto mais imediatamente produzida por Deus, mais perfeita é. E quanto maior o número de causas intermediárias entre Deus e o objeto de sua criação, mais imperfeito ele é. De acordo com tal visão, até mesmo os que creem na teoria de que a natureza foi feita para servir ao homem devem saber que ela foi feita mais imediatamente por Deus do que o homem; sendo assim, ela não poderia ser inferior ao homem.

Spinoza crê que, com a Matemática, todas essas causas atribuídas a Deus se desvanecem, pois é por meio dessa disciplina que se chega ao real conhecimento das coisas. E o homem, ao se aproximar cada vez mais do que é racional, percebe a conexão perfeita entre as coisas, o encadeamento lógico entre elas; vê que de uma coisa é gerada outra, não havendo um fim escolhido por Deus. Assim, como tal encadeamento ocorre na Matemática, também ocorre na natureza e no desenrolar da vida humana.

Antes de atribuirmos todos os acontecimentos à vontade divina, vejamos o desenrolar das suas causas. Ao tomarmos como exemplo um acidente de carro em que alguém tenha morrido, muitos de nós jogamos a responsabilidade para Deus. Ao nos aproximarmos da tragédia, a fim de investigar suas verdadeiras causas, veremos que o carro deslizou porque a pista estava escorregadia. Esta se encontrava nesse estado devido à chuva. O tempo estava chuvoso devido a uma frente fria, vinda do sul, que se formou devido a uma junção de massas de ar, e assim sucessivamente. Ao buscarmos as causas de um fato, talvez encontremos outra razão que não Deus. Ao tentarmos avançar mais ainda, podemos chegar a um ponto em que não se tenha mais para aonde ir, o que faz com que, segundo Spinoza, o “interlocutor se refugie na vontade de Deus, isto é no asilo da ignorância” (Spinoza, 1997, p. 202).

Os fenômenos relacionados ao corpo humano e à natureza também são interpretados por Spinoza. Ele critica aqueles que têm por hábito colocar Deus como causa do funcionamento perfeito do corpo, sem levar em consideração a mecânica perfeita que o corpo apresenta. A mesma coisa acontece com os fenômenos da natureza: um maremoto devastador muitas vezes é visto pelo homem como um castigo de Deus, quando, na realidade, é o atrito entre duas placas tectônicas responsáveis por tremores sísmicos causadores da catástrofe marítima.

O homem, ao se colocar como centro do mundo, passa a criar valores que o tenham como referencial. O “bom” é tudo o que lhe gera bem-estar; “mau” é aquilo que lhe causa mal-estar. Os homens tendem a considerar bem ordenadas as coisas que são facilmente representadas pelos sentidos, coisas que são claramente imagináveis. Daí concluem que Deus criou o mundo de modo organizado para que nós entendêssemos melhor.

Aquilo que é agradável aos seus sentidos, o homem irá considerar como sendo algo bom que existe na natureza. Se uma paisagem, por exemplo, transmite aos olhos boa disposição, sensação agradável aos olhos, o homem diz que tal cenário é belo; caso contrário, considera-o feio. Isso, porém, nada mais é do que a opinião de cada pessoa, pois esta está ligada às afecções da imaginação de cada um. Daí haver tantos desacordos entre os homens.

Para o filósofo holandês, os homens pensam que compreendem as coisas; entretanto, na verdade, eles apenas as imaginam. Para compreender de fato as coisas, eles deveriam usar o entendimento (como a Matemática, por exemplo) para chegar nelas. Até porque, se existe a perfeição na natureza e esta é proveniente de Deus, como explicar a imperfeição, a fealdade e outros males que também estão presentes nela? As coisas são rotuladas de perfeitas ou imperfeitas pelo próprio homem, que concede a si mesmo o título de juiz do mundo. Contra isso Spinoza retruca que

a perfeição das coisas deve ser avaliada em consideração somente da natureza e da capacidade (“potentia”) que elas têm, daí se segue que as coisas não são mais ou menos perfeitas por agradarem ou desagradarem o sentido de cada um, por favorecerem ou contrariarem a natureza humana (Spinoza, 1997, p. 205).

Para Spinoza, o homem comum entende de maneira equivocada o poder de Deus. Coloca-o como uma espécie de rei, como se agisse de acordo com sua própria vontade. Para o filósofo, a ideia de Deus é única, e dela se seguem todas as coisas e os modos infinitos. As ideias estão em conexão da mesma forma que as coisas: são apenas duas formas distintas de demonstração. O ato do pensar divino é igual ao ato de agir; de acordo com a filosofia spinozista, não há distinção entre ato e potência: a substância pensante (Deus) e a substância extensa (a natureza) são uma mesma substância, porém expressas de diferentes maneiras. Ambas estão em uma só e mesma ordem, mesma conexão com as coisas. Tudo que existe é causa divina; para tanto, é imprescindível crer que a natureza divina é anterior à ordem do conhecimento e à ordem da natureza. Ela está antes dos objetos dos sentidos – e não depois, como pensa o senso comum. Dessa forma, não há como falar de moral divina se Deus está antes de qualquer moral. A moral é criada pelos homens e colocada por eles em Deus. A partir de suas convicções morais, eles se acham no direito de dizer em nome de Deus o que é bom ou mau. Concluímos assim que, de acordo com Spinoza, tal Deus não passa de uma criação humana.

Referências

SPINOZA. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

Publicado em 18/10/2011.

Publicado em 18 de outubro de 2011

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