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Relações entre ato criativo e arte

Janaina Pires Garcia

Doutoranda em Educação (UFRJ); professora de Sociologia no Ensino Médio

As crianças sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer, entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente

(Benjamin, 2000, p. 104).

Brincar, imitar, imaginar, elaborar, inventar, transformar, criar, existir, estabelecer ou ampliar relações com o mundo à sua volta. Benjamin nos põe à frente de um posicionamento em que não podemos nos furtar à força do adulto na relação com a criança quando o assunto é o brinquedo, a brincadeira e o ato de brincar; ao mesmo tempo nos traz de modo singular a questão da imaginação na criança. Há diversas maneiras de existir como criança: inventar-se, relacionar-se com outras crianças, com objetos, com elementos da natureza e com animais classificados ou não pelos adultos como brinquedos (borboleta, lagarto, laranja, pedra, árvore...). Na maioria das formas de brincar é possível criar e inventar: quando as crianças constroem casas com terra, embaixo de árvores, cardápio com papel que não usa mais, quando fazem mágica com laranjas ou pedrinhas. É por essas experiências, pelas fantasias, por sua imaginação, que a criança tem possibilidade de dar nova significação à sua realidade. A fantasia é construída com materiais tomados do mundo real; na imaginação ela pode criar novas combinações, como afirma Vigotski (2000), mesclando elementos reais para obter algo não real, combinando elementos reais com imagens da fantasia, ou imaginando a partir dos seus conhecimentos prévios novas imagens sugeridas pelo relato do conhecimento de algo real que outra pessoa conhece, combinando elementos de uma realidade preexistente na sua imaginação para que se tornem uma outra realidade, depois da sua passagem pela imaginação e assim infinitamente.

Todos nascemos com grande potencial criativo. A questão é como e quando temos acesso e oportunidade para desenvolvê-lo. A configuração personológica da criatividade (Mitjás, 1999) é uma célula onde se sintetiza a expressão das capacidades cognitivas e afetivas de uma forma inseparável, que articula o individual e o social no espaço da interação. Ela só tem condições de se desenvolver propriamente entre o eu e o mundo, na vivência, na experiência do novo.

Mas o que vem a ser o ato de criação, propriamente dito, e quais suas funções cognitivas e pedagógicas?

Nas palavras de Kneller (1976), o que define o ato criador é o seu processo mental; o termo significa um grupo de capacidades relacionadas, como fluência, originalidade e flexibilidade. Mas esse processo mental se assenta sobre formas distintas do pensamento rotineiro. Enquanto este se guia por símbolos e conexões já estabelecidos, o pensamento criador procura estabelecer novas relações simbólicas. Procura conectar símbolos e experiências que, anteriormente, não apresentavam quaisquer relações entre si. No entanto, o pensamento criador não aproxima pura e simplesmente símbolos diversos, num jogo de ensaio e erro. Antes, a relação se dá primordialmente através dos significados sentidos ou dos sentimentos. Para o criador, as ligações ocorrem inicialmente num nível pré-simbólico, vivencial. Num segundo momento é que ele busca expressar tais relações, encontrando símbolos que possam traduzi-las. Segundo Gendlin (apud Duarte Jr., 2007), o indivíduo criador é justamente aquele que dirige sua atenção a seus sentimentos para depois expressá-los por meio de símbolos e de novas relações simbólicas. Portanto, o ato criador é essencialmente um processo pré-simbólico ou pré-verbal. Guilford (1967) forjou duas expressões para explicar o ato criativo: pensamento convergente, para o rotineiro; e pensamento divergente,para o criador. A essência do pensamento divergente reside na capacidade de produzir formas novas, de conjugar elementos habitualmente considerados independentes ou discordantes. É, se se quer assim dizer, a faculdade criadora, a imaginação, a fantasia. Dessa maneira, como substrato da criatividade, do pensamento divergente, encontra-se a imaginação. Por esse conceito pode-se englobar as diversas considerações acerca dos processos envolvidos no ato de criar. A imaginação diz respeito à articulação dos sentimentos, à sua transformação em imagens e ao encontro de símbolos que expressem esses processos e resultados.

Imaginar é não se ater às coisas como elas são de acordo com o pensamento racionalista. Contudo, as coisas são da maneira como as descrevem nossos processos simbólicos, nossa linguagem. E nossa linguagem desenvolve-se em íntima associação com a imaginação. Pela imaginação, o homem se afirma como um rebelde. Um rebelde que nega o existente e propõe o que ainda não existe; logo, a rebeldia é a pressuposição básica de qualquer ato criativo. O mundo da cultura seria literalmente impensável se não fosse pelos atos de rebeldia de todos aqueles que fizeram algo para construí-la. O ato de criação é profundamente subversivo: visa alterar a ordem (ou a desordem) existente para imprimir um novo sentido. Galileu, Joana D’Arc, Van Gogh por testemunhos! O ato criativo visa transformar aquilo que é naquilo que ainda não é, atento ao desejo da imaginação. Em consequência, o ato criativo ou criador se desenvolve quase totalmente na clandestinidade. O criador é um rebelde que não se adapta à nossa “educação bancária” (Freire, 2004), à mecânica organização de nosso trabalho e às leis que regem nossa civilização.

O ato de criação é, então, um ato (quase) proibido num mundo civilizado e tecnocrático, porque somente a produção do que possa se converter em lucro é assimilada. Esses são os limites impostos à criatividade; em parte, isso explica a baixa adesão aos estudos de Arte e a uma pedagogia da criação nas escolas: tem que se produzir mão de obra especializada para as indústrias, ao mesmo tempo eliminando quaisquer vestígios de criticidade e criatividade no interior da educação, pois o sistema escolar está voltado para o treinamento, o adestramento do estudante, tornando-o um dócil servidor do sistema econômico. Nosso modelo educacional voltou-se exclusivamente à transmissão de sentidos já prontos e acabados. Trata-se de transmitir fórmulas e conceitos específicos sem despertar o educando para o sentido de sua vida num ambiente histórico-cultural. Tal processo termina então por inibir e cercear a criação como possibilidade dos educandos, já que sua situação concreta não interessa ao sistema, e os significados válidos são apenas aqueles propostos verticalmente pelo professor. Logo, com a crescente industrialização, com a cisão mais e mais entre a intelecção e os sentimentos, a educação institucionalizada voltou-se para o simples treino de habilidades intelectuais e a produção de mão de obra. Em grande escala, o sistema educacional está engrenado para uma única fase do desenvolvimento: a da evolução intelectual. Aqui a aprendizagem é muito fácil de medir, mas isso equivale a definir aprendizagem numa acepção muito estreita. A aprendizagem não significa meramente acumulação de conhecimentos; também implica uma compreensão de como esses conhecimentos podem ser utilizados. Aprendizagem supõe integração harmônica entre o saber e o agir, entre o sentir e o pensar.

Japiassu (1975), citando Piaget, afirma que compreender deve ser entendido como inventar ou reconstruir por invenção. Ou seja, todo ato de conhecimento, no fundo, envolve certa criação ou certo rearranjo (parcial ou total) de nosso esquema conceitual. Quando aprendemos algo estamos de certa forma criando-lhe uma significação com base em nossas vivências e conceitos. Por isso, no ato de conhecer está envolvida certa criação: a criação de um lugar para o novo conhecimento na estrutura cognitiva anterior; a criação de condições para que o novo possa ser utilizado na ação sobre o mundo. E este talvez seja o ponto crucial com relação a uma aprendizagem significativa. Ela envolve a articulação do novo com o já existente; envolve a criação de um sentido para o aprendido em função do já conhecido, enquanto na simples memorização, isto é, no ato de decorar, o novo conceito não se articula aos anteriores, não se integra à visão de mundo do sujeito; assim, por não receber significação e valoração, é rapidamente esquecido. Para que a aprendizagem e o conhecimento se deem é necessário, portanto, esse pequeno ato criativo: a constituição de um sentido e de um lugar para o novo conceito a partir dos conhecimentos anteriores.

Pela arte o homem explora aquela região anterior ao pensamento, onde se dá seu encontro primeiro com o mundo. A forma discursiva da linguagem toma esse encontro e o fragmenta em conceitos e relações. A forma não discursiva na arte tem função diferente: articular conhecimentos que não podem ser expressos discursivamente porque ela se refere a experiências que não são formalmente acessíveis à projeção discursiva. Tais experiências são os ritmos da vida, orgânica, emocional e mental, que não são simplesmente periódicos, mas infinitamente complexos e sensíveis a todo tipo de influência. Nesse sentido, pode-se dizer que a arte possui algumas funções cognitivas ou pedagógicas (Duarte Jr., 2007, p.102), que, de acordo com o pensamento do professor Duarte, explicitarei aqui de forma mais sintética.

A primeira delas é apresentar eventos pertinentes à esfera dos sentimentos que não são acessíveis ao pensamento discursivo. Pela arte somos levados a conhecer nossas experiências vividas que escapam à linearidade da linguagem. O conhecimento dos próprios sentimentos que a arte possibilita pode ainda ser ampliado na medida em que é possível repetir-se a experiência frente a ela. Podemos voltar a uma obra e explorar os sentimentos que ela desperta, segundo direções diferentes e em diferentes momentos de nossa vida. Assim, ao objetivar sentimentos a arte permite ao espectador uma melhor compreensão de si próprio.

O segundo fator pedagógico da arte seria a agilização da imaginação, a sua libertação da prisão que, de certa forma, o pensamento rotineiro lhe impõe. Pela arte, a imaginação pode realizar sua potencialidade, criando sentidos fundados nos sentimentos, desdobrando e detalhando-os. Por isso a arte é também um fator de descoberta: por ela a imaginação descobre e cria elementos até então insuspeitados na maneira de nos sentirmos no mundo; com ela colocamo-nos em posição similar à da criança, para quem a descoberta de novos eventos é motivo de prazer e fantasia. A arte pode constituir-se num elemento liberador justamente por negar a supremacia do conhecimento exato, quantificável, em favor da lógica do coração. Embora quase uma década atrás Mitjás (1999) já propusesse uma figura ainda mais interessante no sentido de privilegiar a indissociabilidade das funções humanas, o ato criativo parte da configuração personológica da criatividade, máxima expressão de unidade das capacidades cognitivas e afetivas do ser humano.

Até aqui foram considerados dois fatores pedagógicos da arte: a livre atuação da imaginação e o conhecimento de nossos sentimentos que ela possibilita. Por outro lado, temos de considerar que a arte não apenas permite que conheçamos nossos sentimentos como também propicia o seu desenvolvimento, a sua educação – fato este a ser assinalado como o terceiro fator educativo da arte. Como então podem ser desenvolvidos e educados os sentimentos? Da mesma forma que o pensamento lógico, racional se aprimora com a utilização constante de símbolos lógicos, os sentimentos se refinam pela convivência com os símbolos da arte. O trabalho desenvolvido por meio de símbolos lógicos, que conduzem a altos graus de abstração, permite que, pela crescente familiaridade com tais símbolos, o pensamento se agilize e se acure. Igualmente o contato com obras de arte conduz à familiaridade como os símbolos do sentimento, propiciando o seu desenvolvimento. Quanto maior é o contato com a arte, maior a bagagem simbólica para representar e, consequentemente, compreender as minúcias do sentimento.

O quarto fator pedagógico da arte se situa no âmbito de que a obra de arte, não transmitindo um significado explícito, mas expressando um campo geral de sentidos, possibilita ao espectador a sua compreensão (fruição) segundo os seus próprios sentimentos. Na experiência estética, a imaginação toma os sentimentos propostos pela obra, ampliando-os e combinando-os em novas modalidades do sentir.

A quinta vertente pedagógica da arte diz respeito à oportunidade que ela nos fornece para sentir e vivenciar aquilo que, de uma forma ou de outra, nos é impossível experienciar na vida cotidiana. E isso é a base para que se possa compreender as experiências vividas por outros homens. Pela arte expressa-se a produção de uma época e de uma cultura.

Dessa forma, o sexto fator educativo da arte diz respeito ao significado cultural da educação que a arte propicia. Ao manter-se em contato com a produção artística de seu tempo e sua cultura, o indivíduo vivencia o sentimento da época, isto é, participa daquela forma de sentir comum a seus contemporâneos. Um problema fundamental em nossas culturas polissêmicas é justamente a dificuldade de conseguir, entre os inúmeros sentidos, uma visão do todo cultural. A arte pode, então, vir a fornecer as bases para que essa visão seja conseguida.

Em termos interculturais, a arte também apresenta importante elemento pedagógico. Na medida em que nos é dado experienciar a produção artística de outras culturas, a compreensão dos sentidos estrangeiros torna-se mais fácil, porque, pela arte, pode-se participar dos elementos do sentimento que fundam a cultura estrangeira em questão, o que é o primeiro passo para que, a partir de nossa visão de mundo, interpretem-se seus sentidos explícitos.

Os símbolos estéticos das diversas culturas tornam-se excelente meio de acesso à visão de mundo de outros povos, o que podemos considerar o sétimo elemento educativo da arte.
Por fim, como oitavo fator pedagógico da arte, deve-se considerar o elemento utópico envolvido na criação artística. Ao propor outras realidades possíveis, a arte permite que, além de despertar para sentidos diversos, perceba-se o quão distante (ou não) nossa sociedade se encontra de um estado mais equilibrado e harmonioso (mais estético). Assim, a arte pode despertar para o que pode ser construído, para um projeto de futuro, para uma utopia.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 2000.

DUARTE JR., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Papirus, 2007.

FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

GUILFORD, J. P. The nature of human intelligence. New York: McGraw Hill, 1967.

JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

KNELLER, George. Arte e ciência da criatividade. São Paulo: Ibrasa, 1976.

MITJÁS, Albertina Martínez. Los estudios sobre creatividad en Cuba: actualidad y perspectivas. Educar, 10, p. 61-70, 1999.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. La imaginación y el arte en la infancia. Madrid: Akal, 2000.

Publicado em 18/10/2011

Publicado em 18 de outubro de 2011

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