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Sobre a preguiça – última parte

Alexandre Amorim

Preguiça e criação

Ao fechar o ciclo de palestras Elogio à preguiça, apresentado por Adauto Novaes, o multifacetado José Miguel Wisnik citou Dorival Caymmi e Hannah Arendt. Vamos, aos poucos, tentar entender por que duas figuras tão geograficamente distantes podem se relacionar.

Arendt é autora de uma crítica ao marxismo e ao platonismo – ou, basicamente, uma crítica à tradição filosófica ocidental, fundamentada no livro A condição humana. Grosso modo, Platão defendia a existência do mundo das aparências e do mundo das ideias. Neste último, estariam as verdades eternas, imutáveis. No mundo das aparências, em que vivemos cotidianamente, estão as sensações, a imitação do que é real, o mero simulacro do que realmente é. Para tentar alcançar o mundo das ideias, é necessária a vita contemplativa, em que o ser humano pode contemplar as ideias, desenlaçado das necessidades cotidianas. Para isso, é preciso estar livre do que Hannah Arendt chamou de labor (os processos e necessidades biológicos do homem), work (o processo de fabricar, isto é, de tornar artificial o que é natural) e action (a atividade do homem político, seja em ambiente doméstico ou social).

Arendt, no entanto, criticou justamente o rebaixamento desses três aspectos do homem – valorizando a vita activa, considerada menor pela tradição do pensamento ocidental, por achar que a ocupação afasta da contemplação, condição sine qua non para se tornar um homem. A filósofa germano-americana subverte esse conceito clássico para determinar que o homem atinge, pela interação social, sua liberdade, porque essa atividade política é uma iniciativa, isto é, agir é demonstrar a liberdade como princípio do homem.

Está claro que Hannah Arendt, como ela própria já afirmou, trata do homem como ser social. E essa sociedade, hoje, não se baseia mais no contemplar, mas no produzir. Assim, há que se pensar no prazer da ação como o prazer sentido por um ser agente – o homem que interage tem o prazer de verificar que existe por meio de sua ação. A filósofa toma as palavras de Dante para se explicar:

Daí resulta que todo agente, na medida em que atua, tem prazer em fazê-lo; como tudo que é, deseja sua própria existência; e como na ação a existência do agente é de algum modo intensificada, o prazer se segue necessariamente… Assim, nada age, a menos que ao agir torne patente seu si-mesmo latente.

Transformar o homem em agente, pode-se argumentar, é diminuí-lo. Como estamos em plena discussão do elogio à preguiça, a valorização da ação parece um paradoxo. A questão, no entanto, se torna mais complexa quando a ação se torna criação e fonte de prazer. Porque a preguiça é elogiada justamente quando compreendemos que ela é condição para a contemplação; logo, para a criação e para o prazer.

E, para que haja mais consistência nessa questão, é importante verificar que a preguiça também é subversiva à vita contemplativa professada por Platão quando não compactua com a vontade do ideal, do mundo das ideias. Ela é, em si mesma, uma cessação do ansiar e do produzir.

Ócio é repouso, nunca inquietude. Logo, a preguiça não busca o real, porque não busca nada. A preguiça é elogiada quando é um estado de bem-estar. Se, por ser um estado de prazer e conformidade consigo mesma, a preguiça torna-se espaço propício à criação, isto não é sua regra nem sua natureza, mas uma de suas possíveis consequências. Como poderia ser a apatia.

Valorizar a ação ou a preguiça seria, então, duas faces de uma mesma moeda?

Se pensarmos em possibilitar a criação e o prazer, pode-se dizer que sim.

E se, de um lado dessa moeda, temos a filósofa da práxis social, do outro lado temos o compositor praieiro.

Dorival Caymmi é, em si, o elogio à preguiça. Soube viver a preguiça, criar por ela e criar a respeito dela. Quase um estoico, Caymmi aceita, em suas canções, as intempéries com serenidade (“é doce morrer no mar”, ele canta). Mesmo melancólico de saudade, apenas pede para que a saudade de Itapoã o deixe. A lembrança de um bem-estar quase absoluto, que é ter saboreado a praia de Itapoã, traz a saudade que incomoda. “Me deixa”, ele pede. Caymmi também quer o prazer, mas o da preguiça, do dolce far niente. Criar pela arte do não fazer, pela falta de necessidade de produzir. Se a ação proposta por Arendt nasce de uma sociedade produtiva, a produção de Caymmi nasce justamente por não ser necessária.

José Miguel Wisnik talvez tenha encontrado o vértice ente os dois no ócio prazeroso da ação e da preguiça ou em outro ponto em comum: a criação ou a obra. Numa espécie de yin/yang, podemos entender que há ação na preguiça criativa, assim como há ócio na ação produtiva.

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Publicado em 18/10/2011

Publicado em 18 de outubro de 2011

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