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Correndo diante da vida
Pablo Capistrano
Professor do IFRN
Me espantei quando vi, na edição de agosto da versão brasileira do Le Monde Diplomatique, a capital do meu estado entre as quinze metrópoles do país. Nunca imaginei que Natal fosse, algum dia, aparecer no mapa, acostumado que eu estava em morar em uma fazenda às margens do Atlântico; agora tenho que me acostumar em viver numa metrópole, com tudo de bom e de ruim que nasce dessa palavra. Talvez seja por isso, por essa palavra, por esse conceito, que haja tanta gente na minha cidade que anda apresada, voando pelas ruas em um ritmo muito pouco usual.
Isso me faz lembrar uma história.
Um dia um mestre zen entrou em uma aldeia e espantou-se ao ver as pessoas apresadas, correndo de um lado para o outro. “Aonde vocês estão indo com tanta pressa?” – ele perguntou assustado. “Ganhar a vida”, “ganhar a vida” – todas respondiam, como se tivessem ensaiado uma mesma resposta. “E por que vocês acham que a vida está diante de vocês?” – perguntava o mestre. “Talvez ela é que esteja correndo atrás de vocês e não consiga alcançá-los”.
Correr atrás da vida é um contrassenso, porque, de um modo ou de outro, ela está em todo lugar e, na maioria das vezes, quando a gente corre, a gente se afasta dela. Mas esse é um padrão fundamental da consciência de nosso tempo. Hoje minha cidade vive um tempo em que os espaços estão sendo comprimidos. Quanto menor o espaço e maior a quantidade de gente, mais difícil fica de se movimentar. Essa é a equação da metrópole. É difícil se mover em uma grande cidade porque há muita coisa em pouco espaço.
Essa lógica do muito e do reduzido, esse sentido de um universo de coisas em um quarteirão é a lógica que paralisa o mundo desenvolvido e que faz com que as pessoas sintam essa intransponível vontade de correr. O tipo de consciência que emerge de um mundo assim é sensivelmente distinto da consciência que nasce de um mundo mais largo e vazio.
Quando nos deparamos com espaços amplos, nossa consciência se amplia e o barulho do nosso próprio discurso interior muitas vezes pode encontrar um fim. Não sei se você já viu um jardim zen... Sim... Você deve ter visto alguma coisa com esse nome na loja de abajures ou no escritório daquele decorador que você contratou para tornar teu ambiente doméstico menos esquizofrênico. Mas esses “espaços zens” que a gente vê por aqui, na maioria das vezes, são apenas lugarezinhos com areia e algumas pedras e talvez um cacto ou outro para dar uma “regionalizada”, sem nenhuma função a não ser a decorativa.
Um jardim zen trabalhado continuamente por um mestre espiritual de alguma tradição doutrinária derivada dos ensinamentos do Senhor Buda é uma experiência de consciência. A areia e as pedras devem ser dispostas de modo a fazer com que, em um espaço reduzido, esteja presente, de forma inexorável, a sensação de amplidão.
Esse tipo de espaço espelha a prática do próprio mestre que o constrói. Porque a ideia é fazer com que, a partir de minha própria consciência, de minha própria cadeia minúscula, do meu próprio lugar nesse mundo gigantesco, o infinito possa encontrar sua expressão mais significativa.
Vivemos em caixas apertadas, em espaços congestionados, em lugares apinhados de gente que corre, transpira e faz barulho. Vivemos em um espaço ordenado pelas necessidades biológicas do homem, por sua demanda por bens de consumo, por sua sede de aquisição de coisas que nos enchem e nos atulham a cada dia. Vivemos cercados por objetos inúteis que têm imenso valor econômico e que limitam nosso espaço, condicionando o movimento da nossa consequência, obrigando-nos a acelerar, acelerar, acelerar e acelerar para fugir daquilo que nos assusta e que nos encobre.
Duas das tradições da espiritualidade oriental nos ensinam o modo como é possível evitar a armadilha que a consciência cotidiana nos impõe. O hinduísmo, religião fundamental da qual se desdobrou a doutrina do Senhor Buda, aponta para a necessidade de se manter atento para o que se passa no íntimo, com foco em permanente concentração nos objetos internos, na respiração, nos próprios pensamentos que muitas vezes nos dominam e nos lançam de modo selvagem na pressa do mundo. O budismo, provavelmente a primeira grande religião universal da humanidade (se é que se pode considerar o budismo uma religião), especialmente na sua vertente zen (japonesa e chinesa), ensina um caminho diverso que nos leva ao mesmo lugar: dirigir uma atenção mais fluida a todos os objetos do mundo, para que a gente possa desfocá-los e libertar nossa visão da escravidão que as coisas nos impõem.
Nosso jardim urbano é uma construção oposta a um jardim zen. Em nosso espaço reduzido, não há lugar para o vazio. Em uma metrópole, o vazio não existe porque há gente demais, casas demais, prédios demais, carros demais, placas demais, luzes demais, signos demais. Isso perturba, ah como perturba.
Só quem viveu em uma fazendinha iluminada entende o que eu estou falando. Meus colegas de experiência humana andam muito concentrados no corre-corre do mundo. Eles têm pressa e se movem velozmente de um lado a outro da cidade, com seus carros velozes, com seus olhares tensos, suas passadas rápidas, seus telefones moveis, seus notebooks constantemente conectados, com sua mente cheia de barulho. Eles estão em todo lugar, e talvez até você seja um deles também.
Correndo atrás da vida, meus colegas de espécie não conseguem perceber que, na verdade, estão correndo diante da vida. Não percebem que estão passando junto com ela e que, provavelmente, quando ela acabar, eles irão junto, sem ter tido a mínima ideia do que vieram fazer por aqui.
Publicado em 25/10/2011
Publicado em 25 de outubro de 2011
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