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O ceticismo em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Carolina Natale Toti

Mestre em Letras (UEL)

O presente trabalho tem o propósito de procurar no texto Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o delineamento de um pensamento cético. Antes de tudo, vamos traçar um breve panorama do contexto histórico em que o romance se dá: o processo de modernização da sociedade brasileira, o liberalismo escravagista, a recepção da moral burguesa. Em seguida vamos expor algumas breves considerações a respeito dos aspectos fundamentais do ceticismo, e a partir daí veremos de que modo esse pensamento se faz presente nas Memórias.

Ciência do progresso

No decorrer do século XIX, com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, inicia-se o processo de modernização da sociedade. A racionalidade burguesa empreende reformas urbanas e sanitárias, o liberalismo difunde as certezas da ciência e do progresso. No decurso dessas transformações, destaca-se a preponderância da política higienista para a normalização das relações sociais, sejam públicas ou privadas. Aos poucos, os médicos substituem os padres em algumas funções. Passam a nortear as maneiras de agir dos indivíduos e da coletividade, seus usos, costumes e valores, a fim de adaptá-los às exigências racionalistas da nova ordem. Organiza-se um novo modelo de família, inserida regularmente na recém-chegada sociabilidade burguesa, distinta do padrão familiar tradicional da colônia.

O investimento estatal em políticas públicas de saúde, inexistente no período colonial, fundamenta-se em discursos de cunho positivista que se referem à sociedade desorganizada e à aglomeração de indivíduos como uma anomia propícia ao surgimento e propagação de doenças, e daí a necessidade da intervenção médica em todo o espaço urbano. Dessa forma, a atuação e o conhecimento médicos envolvem também problemas geográficos e políticos e acabam por organizar os hospitais, os presídios, as indústrias e escolas.

A autoridade médica normativa atuante em toda a extensão das cidades baseia-se nos conceitos da ciência, da razão e do progresso, e permite em larga medida o fundamento do Estado liberal. A estrutura capitalista se utiliza das políticas higienistas para originar um novo perfil de indivíduo, de família e de sociedade adequado às suas necessidades. Se durante a colônia o poder era conservado por famílias patriarcais, a atuação médica para a produção de um novo modelo familiar (conjugal) será imprescindível para que o Estado possa avocar esse poder para si.

os médicos se ocuparão com a criação de um indivíduo moderno – cidadão – para o qual se apaga, à medida que lhe são circunscritas as fronteiras, o conflito entre o privado e o público, entre a família e o Estado. Esse indivíduo é o citadino de elite, identificado às normas [da] burguesia europeia. (...) Os médicos conciliam os ideais do liberalismo europeu, de sua literatura médica, com a realidade brasileira, cunhando o que se chama, paradoxalmente, liberalismo escravagista (Muricy, 1988, p. 31).

No período colonial, quem detinha o poder econômico e político eram os patriarcas. Suas famílias abarcavam grupos extensos compostos não somente por parentes próximos, mas também por afilhados: agregados considerados parentes por laços de afinidade e religião. Todos estavam rigidamente subordinados à autoridade do pai, estabelecida sobre os vínculos informais de parentesco. “A estratégia de poder do compadrio neutralizava a contundência da sujeição, inscrevendo-a no código afetivo das relações filiais de obediência e honra” (Muricy, 1988, p. 58). Esse formato de um grupo amplo submetido ao poder do patriarca conduziu e deixou de herança o nepotismo, o favoritismo dos políticos aos seus parentes, existente desde o domínio clerical. Em meio a essas grandes famílias, afiguravam os escravos, tratados com indiferença e violência, como objetos e animais. Na colônia inexistia a noção de um núcleo familiar ou de privacidade da família, uma vez que a casa abrigava inúmeros agregados e mantinha presentes os escravos. 

Conforme avançam o processo de modernização, o desenvolvimento da economia e do espaço urbano, desestabiliza-se aos poucos o poder econômico e político dos patriarcas, que por sua vez são atraídos para as cidades em busca de moradia e de trabalho. Desse modo, dá-se a transformação do formato colonial, de família patriarcal com encargos econômicos e políticos, para um modelo de família nuclear e conjugal, com atribuições reduzidas, sendo sua finalidade última a reprodução dos indivíduos. Surgiu nesse momento a noção de privacidade familiar. Os discursos e as intervenções da medicina higienista passaram a orientar os novos padrões de comportamento: como a família deve portar-se, como deve alimentar-se, vestir-se, tratar-se e reproduzir-se. Sobretudo a procriação é estimulada, são valorizados os exemplos saudáveis do pai e da mãe, em oposição às figuras insalubres do libertino e da mundana. As mulheres são incentivadas a frequentar as ruas e o comércio, mas sempre com moderação. Os indivíduos devem então contrabalancear sua participação entre o espaço público e o privado, garantindo assim as necessidades do Estado.

Devemos ter em mente a peculiaridade do processo de modernização no Brasil, que não se direcionava a todos os indivíduos, à generalidade do tecido social, tampouco implicava uma mudança radical na estrutura da sociedade. O desenvolvimento do liberalismo se aliava à organização fundamental da colônia, constituindo aparentemente uma contradição, “o fundamento não liberal de nosso liberalismo” (Schwarz, 1990, p. 42). As elites brasileiras forjavam um espetáculo repugnante, açoitando seus escravos com a distinção da nova burguesia.

Machado de Assis publica suas obras na segunda metade do século XIX, momento em que se intensificam particularmente as medidas para a modernização da sociedade brasileira.

O pensamento cético

Em meados do século V a. C. já se elaborava, entre os gregos e os romanos, os traços principais do ceticismo. Mas foi no período helenístico que Pirro de Elis (360-270 a. C.) fez do pensamento cético uma escola filosófica. O radicalismo de Pirro rejeitava qualquer possibilidade de o conhecimento humano alcançar conclusões inalteráveis. Nos séculos II e III, o pirronismo reapareceu na Grécia com Enesidemo e Sexto Empírico. A obra deste último, publicada no século XVI, em muito influenciou o pensamento renascentista e moderno, destacando-se escritores como Montaigne e Pascal.

Na interpretação de Sexto, vemos que o ceticismo é, sobretudo, uma indagação antidogmática, isto é, seu problema central consiste em investigar princípios estabilizados a fim de analisar sua legitimidade. Não se trata de um conjunto de normas que regem a disposição do cético. Não há regras sobre a possibilidade ou impossibilidade do conhecimento. Segundo Sexto, o cético não adere nem mesmo ao próprio argumento, “devido à equipolência dos objetos e razões assim contrapostas” (apud Neto, 2007, p. 15). Considerava que tanto o argumento que refuta quanto o que é refutado são retóricos, buscam persuadir, e por isso os abandona. Como não alcança nenhuma espécie de conclusão, nem que afirme certezas e nem que desminta certezas, sua investigação jamais termina.

A trajetória do pirrônico difere da do dogmático pelo fato de sua investigação (zetesis) não levá-lo a uma doutrina, mas a uma equipolência. Incapaz de escolher entre uma doutrina e sua contrária, o pirrônico suspende o juízo (epoche) e inesperadamente alcança a tranquilidade (ataraxia), que inicialmente pensava encontrar na descoberta da verdade (Neto, 2007, p. 16).

Dentre os argumentos céticos de Enesidemo apresentados na obra de Sexto, destacamos os principais: o pirrônico ressalta a suscetibilidade dos nossos órgãos sensoriais. Estes são relativos, pois variam conforme as distinções naturais de cada indivíduo; conforme as diferentes situações em que se encontram, o temperamento, a idade, a disposição física e intelectual; e conforme as diversas perspectivas: o ângulo, a luz, o espaço. Aponta também para a variedade dos costumes segundo épocas e culturas distintas, ou seja, para o devir constante do mundo. São fatores que impedem o estabelecimento de asserções estáveis e verdadeiras sobre a natureza das coisas.

Essas considerações não implicam uma suspensão generalizada do juízo. O cético não pode negar a percepção de seus sentidos, as aparências das coisas, mas salienta os limites sensoriais dos homens quando, pretensiosamente, tentam desvelar a essência dos objetos e dos seres. Entende que quaisquer afirmações não expressam um conhecimento sobre a realidade, apenas constituem uma descrição das aparências, levando-se em conta a falibilidade dos sentidos para essa descrição.

O ceticismo em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Machado de Assis vincula o ceticismo antigo à sociedade de seu tempo. Suas indagações se dirigem tanto à condição humana quanto à especificidade do século XIX, aos discursos e práticas em voga nesse período. De acordo com Neto, a matéria sobre a qual Brás Cubas impugna seu ceticismo refere-se às doutrinas preponderantes na época: o cientificismo, o positivismo, o racionalismo, o evolucionismo. Esses conceitos aparecem reunidos no sistema filosófico de Quicas Borba: o Humanitismo, uma representação burlesca de tais princípios, “uma religião, a do futuro, a única verdadeira” (Assis, 1978, p. 171). Sobre os dogmas do Humanitismo, Brás Cubas infere a análise investigativa (zetesis), ponto de partida da via cética.

A posição de Brás Cubas na condição de defunto-autor remete diretamente à perspectiva cética. Se considerarmos que o transcorrer da vida de Brás Cubas mostra uma sucessão de malsucedidos, culminando por fim no “Capítulo CLX – Das Negativas”; uma existência de artimanhas pérfidas e dissimuladas para forjar qualquer sucesso que seja e atingir o reconhecimento da sociedade, mas que, entretanto, todos os seus empreendimentos vão sendo sequencialmente frustrados; entendemos que essa progressão de desilusões distancia gradualmente o personagem da vida social, uma vez que vai percebendo a precariedade, a inconstância e a incerteza da condição humana. Essa situação de contínuos desenganos, com um consequente afastamento da sociedade, atinge seu apogeu com a morte. Concebemos a transição da vida para a morte como a passagem de um ponto de vista que estima e dá crédito às realizações humanas para uma perspectiva desenganada, reflexiva, cética.

Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se possa gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer (Assis, 1978, p. 20).

A ótica cética de Brás Cubas se dá somente após a sua morte, como defunto-autor, quando, já completamente apartado da vida social e de seus interesses, pode investigar (zetesis) tranquilamente (ataraxia) as misérias de sua existência e da humanidade:

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos (...). Mas, na morte, que diferença! (...) Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados (Assis, 1978, p. 54).

O “Capítulo VII – O Delírio” aparentemente constitui uma exposição do último momento em vida de Brás Cubas, ocasião na qual a razão não participa e que, entretanto, em pleno delírio, exibe uma crua lucidez. Nessa experiência derradeira, Brás Cubas vê esvaírem-se todas as suas últimas esperanças, crenças e valores em relação a seus planos e à condição humana. É nessa circunstância que começa a adotar a perspectiva cética, a partir da qual, depois de morto, relata suas memórias. Esse capítulo condensa o argumento cético que se projeta sobre toda a narrativa.

É curioso observarmos, no diálogo entre Brás Cubas e a mãe e inimiga Natureza ou Pandora, as palavras usadas pela natureza para se referir a Brás: “verme”, “grande lascivo”, “sublime idiota”. Brás Cubas, por sua vez, diz:

tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar (Assis, 1978, p. 25).

Tão ressaltada pelo ceticismo, a incapacidade da razão para cumprir seus propósitos pretensiosos de sondar e administrar todas as coisas, de compreender o sentido do mundo, de fazer do ser humano, como quer o pensamento cartesiano, um senhor da natureza, aparece nesse momento em que o delírio predomina. Vemos também, na primeira visão de Brás sobre a natureza, os limites sensoriais apontados pelos céticos, a impotência do corpo em perceber a imensidão do espaço, a relatividade das perspectivas e ângulos:

Caiu do ar? Destacou-se da terra? Não sei (...). Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada (Assis, 1978, p. 24).

A natureza se refere à vaidade humana como algo a ser invalidado, o que também é salientado pelo ceticismo, uma vez que afirma a desmedida bazófia do conhecimento e suas limitações: “Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria” (Assis, 1978, p. 24). A descrição de Brás Cubas do rosto da natureza remete ao silêncio de Deus, à debilidade humana frente à vastidão inapreensível do mundo:

a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. (...) Ao mesmo tempo, (...) um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais decrépito dos seres (Assis, 1978, p. 24).

Pandora afirma ser a esperança “o maior dos males”, mal esse que Brás Cubas carrega por toda vida, na expectativa de ser reconhecido pela sociedade, mas que, diante de contínuos fracassos, acaba por abandoná-lo enfim, no decurso do delírio, assumindo decididamente a perspectiva cética após a sua morte, quando a partir daí então se põe a narrar suas memórias. O relato sincero de sua vida, a exposição sem disfarces de seus propósitos interesseiros revela as falsas aparências da própria sociedade.

Na contemplação do desfile dos séculos, da “destruição recíproca dos seres e das coisas” (Assis, 1978, p. 25), Brás Cubas diz que “nem a imaginação nem a ciência” podem alcançar a “intensidade” da “história do homem e da Terra” (Assis, 1978, p. 26), reafirmando desse modo os limites de todo o conhecimento humano. Esse capítulo reforça constantemente a condição miserável, a fragilidade e o fracasso da humanidade:

e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo (Assis, 1978, p. 26).

O fado de nossa existência, o sofrimento, a debilidade, as incertezas, o inevitável e o incompreensível, a felicidade como mero devaneio irrealizável, construção da esperança, o “maior dos males” chega até nós em uma belíssima descrição:

Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura – nada menos que a quimera da felicidade – ou lhe fugia perpetuamente ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão (Assis, 1978, p. 26).

Brás Cubas observa a finitude que tudo arruína, e que determina, excepcionalmente, a condição humana. Vê as gerações, “todas elas pontuais na sepultura” (Assis, 1978, p. 26). Vê a história, a civilização, a ciência, a arte como construções com as quais os seres humanos aliviam a penúria e a severidade da existência, com as quais entretêm “a necessidade da vida e a melancolia do desamparo” (Assis, 1978, p. 27).

Faz referência ao caráter vão dos sistemas que os séculos edificam, “de ideias novas, de novas ilusões” (Assis, 1978, p. 27). Quando finalmente aparece o século XIX, fala sobre seu aspecto astuto e ousado, porém baldado: “Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros” (Assis, 1978, p. 27). Afirma a soberba da modernidade e reconhece seu fracasso. Parece referir-se às pretensões científicas e otimistas da época, ao ímpeto de progresso, e à sua desgraça inevitável.

Considerando-se que a vida de Brás Cubas ilustra o ardil da sociedade do século XIX, é interessante observar o que o defunto-autor julga sobre si mesmo. No “Capítulo XI – O menino é pai do homem”, descrevendo seu comportamento de “menino diabo” que chegou a quebrar a cabeça de uma escrava e que ainda cavalgava diariamente sobre o menino Prudêncio, conclui que foi a vida toda “opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens” (Assis, 1978, p. 31). Tanto a definição que Brás faz de si quanto a caracterização de seu ambiente familiar parecem bem adequados ao aspecto geral de boa parte das famílias da época do liberalismo escravagista: “vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor” (Assis, 1978, p. 33). Nessas passagens menciona o valor das opiniões, da vaidade, da ostentação, da afeição extrema pelas aparências – traços tão característicos da sociedade burguesa e tão criticados pelos céticos desde a Antiguidade.

O relato de Brás Cubas sobre sua estada em Coimbra mostra a feição comum da modernidade brasileira, alardeando falsas aparências, ávida de progresso: “Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até bispo – bispo que fosse –, uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior” (Assis, 1978, p. 49). Por detrás da exibição de uma imagem pomposa, o defunto-autor revela uma realidade leviana, contraditória: “era eu um acadêmico estroina, superficial, tumultuário e petulante, (...) fazendo romantismo prático e liberalismo teórico” (Assis, 1978, p. 49).

Após voltar ao Rio e presenciar a morte de sua mãe, reflete: “E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e presunção” (Assis, 1978, p. 53). Confessa a futilidade de seu comportamento, sempre afeito à vanglória: “Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação” (Assis, 1978, p. 54). O choque causado pela morte da mãe leva Brás Cubas a afastar-se da sociedade. Refugia-se por um tempo na Tijuca, mas não tarda em enfadar-se da solidão, retornando ao convívio social. Esse movimento circular de desilusão-afastamento-esperança se repete nas memórias do finado até a ocasião de sua morte.

As situações em que se chocam as empreitadas de Brás Cubas com fracasso são inúmeras: a separação brusca de Marcela e o desengano sobre os sentimentos interesseiros da moça; a notícia da mãe moribunda e a contemplação de sua morte, “esse duelo do ser e do não ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico” (Assis, 1978, p. 53); o insucesso do casamento e do cargo político planejados pelo pai; o caso com Virgília, pleno de expectativas e desventuras; a morte de Nhá Loló, frustrando o casamento programado; o malogro como político; o infortúnio do jornal; a visão da doença, da morte e da decadência no hospital da ordem filantrópica; o revés do emplasto que acaba provocando a própria morte.

As desilusões que se sobrepõem na vida de Brás Cubas desmentem os dogmas otimistas do Humanitismo de Quincas Borba. Como já afirmamos, esse sistema reúne, de maneira caricata, as filosofias em voga no século XIX. Na definição de Quincas, “este meu sistema retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade e enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo” (Assis, 1978, p. 122).

A pretensão moderna do homem, de ser um senhor da natureza, triunfante sobre a Terra com sua razão que tudo compreende e com seus projetos cientificistas para o progresso, aparece claramente ao final da explicação sobre o Humanitismo: “o poder espiritual do homem sobre a Terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como as estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo” (Assis, 1978, p. 144).

Esse excesso de otimismo sobre o mundo diverge fundamentalmente do chacoalhar da vida de Brás Cubas, permeada de planos seguidos de fracassos, de constatações da condição limitada e impotente do homem. “Tempora mutantur. Compreende que este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho, sem exceção nem piedade” (Assis, 1978, p. 156). Para o Humanitismo, o homem é parte da natureza e tudo conspira a seu favor, produzindo necessariamente os melhores resultados. Nas palavras de Quicas Borba:

este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram (...). Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite (Assis, 1978, p. 144).

Para a nova religião de Quincas, até mesmo as relações da escravatura integram o caráter sempre favorável da natureza. Esse pensamento que naturaliza as relações sociais de poder comumente justifica quaisquer estruturas hierárquicas, seja na colônia ou na modernidade. O filósofo humanitista explica, no capítulo “Orgulho da servilidade”, que os criados se glorificam em servir ao senhor, imbuídos de um “sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo” (Assis, 1978, p. 170). Percebemos uma cruel ironia quando eleva a situação miserável de um servo ao status de grandiosidade: “o homem, ainda a engraxar botas, é sublime” (Assis, 1978, p. 170).

A reflexão de Brás Cubas sobre a existência de Dona Plácida é expressiva no que se refere à condição lastimável da humanidade, à fatalidade, à falta de sentido da vida, à falácia dos dogmas, da modernidade, do progresso:

queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital (Assis, 1978, p. 106).

Brás Cubas, quando vivo, perdia progressivamente suas esperanças, mas jamais as abandonou completamente; a renúncia completa se dá somente após sua morte. Em vida, era sectário da filosofia de Quicas Borba. Mas já na “obra de finado” com suas “rabugens de pessimismo”, refuta em absoluto a perspectiva otimista do Humanitismo. As diversas situações em que Brás Cubas se depara com as próprias limitações, incapaz de compreender as ocasiões absurdas e incongruentes da vida, desmentem as pretensões de onipotência da razão e da natureza como um espaço de “recreio” para o homem.

Do mesmo modo que a crítica cética refuta as teorias racionalistas, o percurso da vida de Brás Cubas nega o Humanitismo. Ironicamente, Quicas Borba, louco ao final de sua vida, morre afirmando que a dor é ilusória, insistindo ainda no otimismo, repetindo dogmas em óbvia contradição com sua própria condição.

Referências

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MAIA NETO, José Raimundo. O ceticismo na obra de Machado de Assis. São Paulo: Annablume, 2007.

MURICY, Katia. A razão cética. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

Publicado em 01/11/2011

Publicado em 01 de novembro de 2011

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