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O leitor ideal é o leitor honesto

Alexandre Amorim

Qual o verdadeiro significado de uma obra literária? E quem pode determinar esse significado? O próprio autor de um livro pode interpretar seu trabalho de várias maneiras, pelo motivo ao mesmo tempo simples e complexo de que esse autor é um ser humano – e o homem é sempre um intérprete, não um produtor de dogma. É impossível descartar as preconcepções do intérprete, assim como preconcepções da obra. Impossível apreender a essência de uma obra, e graças a essa impossibilidade a hermenêutica é um processo crítico: não havendo como chegar a uma verdade, chegaremos à eterna construção de compreender e interpretar.

A hermenêutica como ferramenta crítica desenvolve-se a partir da noção do homem como intérprete de si e de sua alteridade. Perceber o outro (mesmo que esse outro seja o estranhamento de si mesmo ou um reconhecimento de si no outro) é o primeiro passo para o deslocamento e, portanto, para uma nova faísca criadora. A noção de alteridade e a crítica originam a criação. A arte redentora da vida, como preconiza Nietzsche, não deixa de ser o passo criativo desse deslocamento: a vida está na terceira pessoa – é alteridade –, e como tal deve sofrer os três fenômenos instaurados na hermenêutica: ser percebida, criticada e recriada de acordo com seu observador. Mesmo que se leve em consideração o homem como ente inserido na vida e a vida como ente inserido no homem (em termos heideggerianos), ainda podemos afirmar que o ser-aí e o ser-com se desenvolvem conjuntamente e o homem se dá, o homem se “humana”, por assim dizer, através de sua relação com a vida.

Quando Nietzsche substituiu os conceitos de conhecimento e de verdade por interpretação e avaliação, fixando o “sentido, sempre parcial e fragmentário, de um fenômeno” e totalizando os “fragmentos, sem atenuar nem suprimir a sua pluralidade” (Deleuze, 1965, p. 17), a recriação deixou de ser sinônimo apenas de cópia, porque não se tenta recriar a verdade absoluta: “a cada perspectiva ou ponto de vista corresponde uma obra autônoma, dotada de um sentido suficiente” (Deleuze, 1988, p. 124). A nobreza do homem está em perceber-se como tal e poder produzir-se a partir daí. A partir daqui, a mímesis não é mais somente imitação, mas também a produção da vida em si mesmo, uma vez que é realizada por meio da arte, isto é, da interpretação artística. A arte não é apenas resultado da interpretação da vida, mas o leitmotiv da própria vida. E para que não se duvide da nobreza possível do homem, a arte não está acima dele, mas com ele, nele. O homem produz arte através de si mesmo e do mundo, por isso é passível de ser além de si mesmo – e porque o homem produz arte, interpreta e avalia, pode tomar a hermenêutica como ferramenta de autorreflexão.

Gustavo Bernardo deduz que “todo fenômeno observado modifica-se conforme o observador, o ângulo e a distância da observação” (Bernardo, 2002, p. 161). A realidade ocorre na relação, mas essa realidade somente ocorre naquela dita relação, em que o objeto, sujeito e circunstância se encontram, ou, por outra, essa realidade é ajustável ao momento em que objeto, sujeito e circunstância se encontram, porque “a verdade só pode ser devir, retomando e corrigindo as evidências sucessivas” (Bernardo, 2002, p. 87). O homem vive o que Gustavo Bernardo chamou de “verdade-andando”; ele é o “sendo-humano”.

Conviver com o texto é ser e estar com ele. A história de um indivíduo, sua cultura e sua construção psíquica fazem parte do fenômeno hermenêutico, assim como fazem parte sua vida sendo vivida naquele momento e suas predisposições para o futuro. Em suma, o leitor é um ser humano se abrindo a uma nova experiência, trazendo consigo todo o repertório singular daquele ser humano. Quando o leitor se abre a um texto, já estava previamente em conversa constante consigo mesmo e com o mundo a seu redor.

O leitor é um anfitrião que promove o encontro de mundos diferentes e os amalgama. E enquanto ocorre essa recepção se dá a interpretação – da obra e de si mesmo – por meio da percepção, da crítica e da criação.

Evidente está que a recepção de um mundo ficcional vai se refletir de modo diferente de uma experiência factual. Mesmo a percepção desse novo mundo acontece de modo diferente, uma vez que toda a verificação estética de um texto nos chega por vieses distintos do real. Seja na área sensorial, em que toda essa experiência se dá pela imaginação dos sentidos, seja pela percepção intelectual, em que existe uma predisposição de se relacionar com um objeto que se sabe ficcional, isto é, que necessita ainda da analogia com o que o leitor considera real. É a “encenação” de Iser, quando o experimentar da ficção é o vivenciar do disponível através do indisponível:

A literatura não elimina a relação entre disponível e indisponível, mas se transforma em lugar no qual essa relação pode ser encenada. A indisponibilidade encenada do ser humano se manifesta em uma abundância de conflitos imprevisíveis, que pode tornar-se tangível mediante o conjunto das variações do jogo. A peculiaridade desse jogo é a infinitude, porque a encenação permite o paradoxo, de outro modo impossível, de experimentar a própria inabilidade do ser humano em possuir a si mesmo” (Iser, 1996, p. 356).

A percepção é parte fundamental da hermenêutica, porque é o olhar do leitor sobre aquilo que lhe chama a atenção – é a apreensão a priori. A arte de interpretar requer, antes de tudo, o brilho desse olhar que captura o texto e apreende nele mais do que o reconhecimento, mas o desafio do reconhecível – do indisponível. A percepção no ficcional é a admissão da possibilidade de reconhecer-se no que é lido, e assim admitir que aquela literatura possa realizar a sua relação com a alteridade, e, desse modo, possa germinar transformação. Acostumar-se a um território (ainda que imaginário), considerar a possibilidade de explorá-lo, eis aí o papel da percepção na hermenêutica.

Na consideração está a crítica. A cada observação do leitor corresponde sua reação ao que lhe é apresentado, e a formalização intelectual dessa reação é a crítica. A percepção de uma obra – e sua consequente reação – não pode se dar de modo apenas sensível e ignorar o intelectual, justamente pela crítica. Enquanto o texto pode fascinar o leitor pela reação deste ao que lhe causa alguma sensibilidade, a crítica se instaura para que essa reação se ajuste ao racional, e assim a percepção dá lugar à consideração, isto é, à razão como forma de elaboração do que o texto é para o leitor.

A relação entre o leitor e sua alteridade persiste, e também a verificação por esse leitor de sua própria formação. Criticar é julgar, e julgamento pressupõe valor; portanto, toda interpretação é também um julgamento de valor da obra lida. É certo que esse valor se dispõe de acordo com o momento do leitor e de sua história, o que torna a crítica um retrato ambíguo, no qual se encontra o perfil da obra de acordo com o leitor e o perfil instantâneo desse leitor, por ele mesmo, refletido em seu próprio entendimento da obra. A valoração do texto, no entanto, ainda não configura sua completa interpretação. Embora experimentada de forma sensível e racional, a relação do texto com o leitor carece de uma integração em um nível em que a ficção possa ser vivenciada, mesmo que a ficção do texto passe pelos filtros (psicológicos e históricos) do leitor. Para que a interpretação se conforme em hermenêutica – e para que esta se dê de modo crítico – é necessária a criação.

Não quero afirmar aqui que qualquer argumento narrado deva ser aceito como verdadeiro pelo leitor para que haja relação de honestidade entre ele e o texto. Coleridge, o poeta inglês, já havia cunhado, no início do século XIX, o termo “suspension of disbelief” justamente para que o leitor possa se relacionar com o texto, mesmo que a obra esteja baseada em proposições fantásticas ou fora de um padrão comum do que se aceita como possível. A honestidade entre receptor e obra está relacionada ao fato de que um busca no outro uma realização sua.

Uma história é formada de reviravoltas e intervalos que podem espantar o leitor em dois sentidos: o espanto que afugenta, distanciando o leitor da obra – o que não nos interessa, já que nesse caso não mais haverá uma relação honesta entre os dois –; e o espanto que surpreende e maravilha o leitor, trazendo-o para a obra paradoxalmente por uma primeira repulsa. O passo para trás do leitor, ao tomar consciência de que pode adentrar terreno movediço, pode se transformar em passo de alavanca para realizar o movimento de mergulho na obra. Pode-se argumentar que esse mergulho será movimento do leitor ideal, por isso reescrevo as figuras aqui presentes. Não me preocupo com um leitor ideal que seguirá passos de uma cartilha de leitura, mas com o leitor que se envolva com a obra. O leitor honesto, que leia o texto com vontade de interpretá-lo. Não considero esse o leitor ideal – e não me preocupo em definir tal tipo. Considero o “leitor honesto”, aquele que lê e busca significado naquilo que lê – o leitor, simplesmente. Ler sem buscar significado algum não me parece digno do termo. Assim, o prazer e a fruição de Barthes são faces de uma mesma moeda, se considerarmos que mesmo a satisfação prazerosa obtida por meio de um texto precisa ser baseada em interpretação. Como afirma Iser, o espaço entre autor e leitor não se resume ao livro, mas à infinidade de intenções e experiências ocorridas entre eles.

O centro do labirinto – a “verdade” de uma obra literária – estará sempre inacessível, porque o labirinto literário se move de acordo com a percepção do leitor e do narrador. Mover-se pelo labirinto literário é escolher a incerteza como objetivo. “A linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura” (Foucault, 1999, p. 61). O centro oculto serve como metáfora para a busca constante de um significado na literatura, mas mesmo essa metáfora valiosa acaba por ignorar que o significado da narrativa não se dissipa a partir de um centro, mas a partir de todos os cantos do labirinto. O texto não é um signo único apontando em várias direções, mas um conjunto de signos que será lido por uma variedade desconhecida de intérpretes, que multiplicarão os significados dos incontáveis significantes encontrados no texto. A busca do leitor pelo significado de um texto não é a busca por um centro fixo e oculto, mas uma constante verificação da compreensão do texto pelo leitor e da afinidade do leitor com esse texto.

A leitura do texto não é a origem da interpretação daquele texto, mas uma etapa dessa interpretação. Impossível prever a ordem de entrada e saída do leitor-intérprete no labirinto de um texto, já que esse leitor pode ter acesso a interpretações desse texto antes mesmo do acesso à sua leitura e, por outro lado, a verve interpretativa desse mesmo leitor existe desde o início de sua vida. E o texto faz parte do mundo: é composto por ele e seu componente. A experiência de mundo trazida para a leitura de um texto já faz parte da interpretação desse texto. O labirinto literário passa a ter o tamanho do mundo, não tem um ponto certo de partida ou de chegada. Deslocar-se por ele é deslocar-se por um mapa que mimetiza a vida.

Referências

BERNARDO, Gustavo. A Dúvida de Flusser. São Paulo: Globo, 2002.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Trad. Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 1965.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 4ª ed. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8ª ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Trad. Johaness Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: um escrito polêmico. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Publicado em 01/11/2011

Publicado em 01 de novembro de 2011

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