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Ruína e utopia no ensino de cinema

Janaina Pires Garcia

Doutoranda em Educação (PPGE/UFRJ); professora de Sociologia no Ensino Médio

Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era fazer uma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia, não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como um lírio pode nascer de um monturo.” E o monge se calou descabelado.

Manuel de Barros. Poesia Falada. (Vol. 08). Poema 10.

Como fazer do cinema uma ruína para o renascimento do que foi morto pela mesmice? A palavra utopia remete à metáfora de ruína em Walter Benjamin (1987). Para o autor berlinense, nessa metáfora está guardada a promessa à felicidade da arte, mas expressa pelas avessas:

E a obra literária seria o registro disso (a felicidade possível), correspondendo, portanto, às ruínas das potencialidades não construídas na história: a obra de arte possui duas possibilidades: a utopia concreta e o refúgio esotérico (Benjamin, 1987, p. 43).

A ruína – em comparação – “resto de um mundo que já foi e já se foi” (Benjamin, 1987, p. 43), aproxima-se do documento pelo fato de ela a priori também não indicar o passado de modo proposital, exceto quando transformada intencionalmente em monumento histórico. De qualquer maneira, a ruína, o documento e o monumento, aproximam-se por indiciarem o passado, por trazerem-no como resto do que foi a presentes posteriores.

A obra literária é ficcional e, na forma de ruína, é representação de uma realidade que nunca existiu. Portanto, o conceito de ruína traz mais do que um significado sócio-histórico; é por excelência “indício de possibilidades em aberto, concretização de um mundo possível, índice de alternativas do real” (Benjamin, 1987, p. 58).

A correspondência entre passado e presente possibilita uma leitura esclarecedora da obra de arte e da época em que está inserida considerando o presente interpretativo: “O passado testemunhado pelas obras de arte é o registro da felicidade que não se realizou” (Benjamin, 1987, p. 99).

Nesse sentido, uma declaração do cineasta francês Jean Renoir poderia servir de fundamento a um outro modo de assistir e analisar filmes e de se pensar o cinema de outra forma:

Para apreciar um quadro, é preciso ser um pintor em potencial, senão, não se pode apreciá-lo; e, na realidade, para gostar de um filme é preciso ser um cineasta em potencial; é preciso dizer: mas eu teria feito deste ou daquele jeito; é preciso fazer seus próprios filmes, talvez apenas na imaginação, mas é preciso fazê-los, senão não se é digno de ir ao cinema (Bergala, 2002, p. 128).

Alain Bergala, professor de Paris III, sempre foi a favor de outra abordagem dos filmes, pois para ele há uma forma de ver e refletir sobre os filmes que constitui uma primeira iniciação à passagem ao ato, o que é denominado “análise de criação” (Bergala, 2002, p. 127), contrariamente à análise fílmica clássica – cuja finalidade é compreender, decodificar, “ler o filme”, como se diz na escola –, que prepararia ou iniciaria a prática de criação. A análise não ocorre como uma finalidade em si, mas como passagem para outra coisa. Nessa “pedagogia da criação”, trata-se de imaginar um retorno ao momento imediatamente anterior à inscrição definitiva das coisas; trata-se de fazer um esforço de lógica e de imaginação para retroceder no processo de criação até o momento em que o cineasta tomou suas decisões, em que as escolhas ainda estavam abertas. É uma postura que exige treinamento quando se quer entrar no processo criativo para tentar compreender – não como a escolha realizada funciona no filme, mas como se apresentou em meio a muitos outros possíveis. Dessa forma, o DVD se mostra inovador para o ensino de cinema: esse novo suporte permite pensar e realizar novas formas de pedagogia que eram até então impraticáveis, devido à linearidade constitutiva da fita de vídeo; logo, podemos aproveitar as possibilidades oferecidas pelo DVD para repensar novas formas pedagógicas (como uma ferramenta metodológica possível para análise de criação) que escapam aos limites da fita de vídeo.

A esse propósito, Bergala sugere como método de análise de criação uma “pedagogia de articulação de filmes ou fragmentos” (Bergala, 2002, p. 113) que se caracteriza por um didatismo leve, em que já não é o discurso que detém o saber, mas em que o pensamento surge da simples observação dessas relações múltiplas e da própria circulação. É essa capacidade – a facilidade de reunir e de relacionar fragmentos – que faz o DVD uma ferramenta preciosa em possibilidades de inovações pedagógicas. Uma pedagogia que faça apelo ao imaginário e à inteligência do utilizador, seja aluno ou professor. A forma curta, que é a do trecho ou da sequência, combina os méritos da velocidade do pensamento (algumas vezes, o ato de pôr em relação três trechos permite compreender mais coisas do que um longo discurso) e da transversalidade (pode-se estabelecer relações imprevistas, esclarecedoras, excitantes entre cinemas, filmes e autores que uma abordagem mais linear separaria em categorias estanques). Não há nenhum motivo para que a velocidade do digital não seja utilizada, pois ela põe em relação, cria pensamento. Sobretudo porque o DVD permite fazer também, com alta qualidade visual, o movimento inverso, indispensável na Pedagogia, de desacelerar e paralisar as imagens.

Há dois modos de escolher e de pensar um trecho de filme. Como um extrato autônomo, que pode ser apreendido em si como uma pequena totalidade, sem experimentar a falta daquilo que o rodeia; ou, ao contrário, como um pedaço arbitrariamente destacado de um filme, em que se sente o gesto de extração como um corte, interrupção, ligeira frustração. Ambos têm virtude pedagógica. Os primeiros como modelos reduzidos, mais fáceis de visualizar integralmente que um filme inteiro. Os segundos como provocação (teasing) do desejo de ver o filme inteiro.

A “pedagogia do fragmento” (Bergala, 2002) combina frequentemente os méritos da condensação, da renovação e de uma inscrição mais duradoura das imagens na memória.

Dessa forma, Bergala defende uma abordagem do cinema a partir do plano, considerado a menor célula viva, animada, dotada de temporalidade, de devir, de ritmo, gozando de autonomia relativa, constitutiva do grande corpo-cinema.

No que diz respeito ao ato cinematográfico, o plano envolve, de modo magnífico e inextrincável, a maior parte de escolhas que intervêm real e simultaneamente na criação: onde começar e terminar um plano, onde colocar a câmera, como organizar e enquadrar os fluxos que vão atravessá-lo? Mas, enfim, o que é um plano? O plano é a unidade mais concreta do filme, é a interface ideal entre uma abordagem analítica (pode-se observar, numa superfície mínima, muitos parâmetros e elementos linguísticos do cinema) e uma iniciação à criação (a partir da conscientização de todas as escolhas implicadas em um fazer um plano).

Por esse motivo, seria conveniente que a pedagogia da criação encarasse o ato de criação no cinema a partir do plano e das operações mentais que o fazer um plano acarreta antes de encará-lo em suas operações técnicas. “A criação, no cinema como em outras artes, de início é cosa mentale, antes de tornar-se operações concretas” (Bergala, 2002, p. 134). Logo, o ato de criação cinematográfico envolve três operações mentais simples para Bergala: “a eleição, a disposição e o ataque” (Bergala, 2002, p. 133).

A eleição seria escolher as coisas no real em meio a outros possíveis: escolher na filmagem os atores, as cores, os gestos. Na montagem seria a escolha de tomadas; na mixagem, a escolha de sons isolados, de ambientes sonoros. A disposição seria nada mais nada menos que posicionar as coisas umas em relação às outras. Na filmagem seria dispor dos atores, dos elementos de cenário, dos objetos, dos figurantes. Na montagem, seria determinar a ordem relativa dos planos; na mixagem, seria dispor os ambientes e os sons isolados relativamente às imagens. O ataque concerne a decidir o ângulo ou ponto de ataque às coisas que se escolheu e dispôs. Na filmagem, seria decidir o ataque da câmera, isto é, em termos de distância, de eixo, de altura, de objetiva e dos microfones. Na montagem, seria decidir, uma vez escolhidos e dispostos os planos, o corte de entrada e de saída. Na mixagem, a mesma coisa com os sons. É importante notar que todas essas três operações mentais envolvem sempre uma escolha, uma tomada de decisão.

O que constitui ao mesmo tempo a especificidade, a dificuldade e a excitação do cinema é que essas operações mentais, sem as quais não há criação, jamais são simples escolhas abstratas ou intelectuais que poderiam ser validadas. Essas escolhas são obrigatoriamente negociadas com a dura realidade, por meio de tentativas e tateamentos, retornos, remorsos, até que se considere ter atingido um equilíbrio que não traia demais a ideia ou a vontade inicial, ainda quando somos dela afastados por força das circunstâncias.

Desde a fase da análise de sequência de filmes pode-se sensibilizar os alunos para o fato de que os cineastas, em sua grande maioria, não pensam suas cenas um plano depois do outro, em fila; em geral se esforçam para ter uma ideia do conjunto que se traduz na escolha dos principais eixos de ação. No ato de criação no cinema, apesar das aparências de trabalho coletivo, uma só pessoa tem em mente, mesmo que de forma imprecisa e com zonas mal definidas, o filme como totalidade futura. Não importa que a filmagem seja o resultado de um trabalho de equipe: o núcleo de criação no cinema permanece sendo um indivíduo, que é mais facilmente reconhecido por nós encarnado na figura do diretor.

Mencionei algumas das fases do ato de criação, que seriam as três operações mentais fundamentais para tal processo: a eleição, a disposição e o ataque. Contudo, há uma fase do ato de criação em que a questão da velocidade se coloca de forma menos rígida. Na montagem, o cineasta está em melhor posição para refletir, para racionalizar suas escolhas, recolocá-las em causa, para fazer e desfazer, para experimentar. Godard pôde certa vez decretar: “No cinema é preciso ver a história, não contá-la” (Daney, 2007).

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, v. II. Rua de mão única. Trad. de R. R. Torres F. e J. C. M. Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987.

BERGALA, Alain. L’hipothèse cinéma. Petit traité de transmission du cinéma à école e tailleurs. Paris: Petit Bibliothèque des Cahiers du Cinéma, 2002.

DANEY, Serge. A rampa. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2007.

Publicado em 01/11/2011

Publicado em 01 de novembro de 2011

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