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Uma aula de Francês

Alexandre Rodrigues Alves

Não sei por que cargas d’água veio agora o nome completo: Paul Mauriat. Era o maestro de uma daquelas orquestras açucaradas dos anos 1960, semelhante e concorrente de Frank Pourcell e Ray Conniff, todos best sellers musicais daquela época.

Lá em casa tínhamos quase todos os discos do Paul Mauriat, que ouvíamos à exaustão. Se não me engano, faltava apenas o volume 3 (eram todos numerados: Paul Mauriat volume 1, volume 2... Parece-me que foi lançado até o volume 17, mas nessa época eu já estava curtindo rock progressivo). Todos os discos tinham closes de belas mulheres na capa.

Entrando por outra vertente da história: fiz meu ginásio num colégio que tinha na grade duas línguas estrangeiras: inglês e francês. Eu nunca tinha estudado outra língua na vida, nem nos meus anos de escola primária pública, nem no admissão – que, se não me falha a memória, tinha só quatro disciplinas: Português, Matemática, História e Geografia. Nem Ciências tinha!

Enfim, no segundo segmento do 1º grau (a Lei 5.692 tinha acabado de entrar em vigor) passei a estudar dois idiomas, de formas completamente diferentes. As aulas de Inglês eram em laboratório audiovisual, com projetor de slides e gravador. Era uma infinidade de plect-plect para ouvir o locutor dizendo “My name is Bill Wilson”. Plect. Outra voz dizia: “His name is Bill Wilson”. Plect. “He is Bill Wilson”. Plect. “I am Bill Wilson”. As imagens se alternavam entre Bill Wilson apontando para o próprio peito e uma mão acusadora apontando para o coitado do Bill. Repetição enfadonha. Todo mundo tinha que dizer cada uma dessas frases. Trinta e poucas vezes Bill Wilson a cada frase...

As aulas de Francês, não. Eram na mesma sala de aula das outras matérias; cada um pegava seu livro, o professor Moraes lia primeiro o diálogo, depois mandava duplas de alunos fazerem o mesmo diálogo. “Allo, c’est Philippe Ledoux?” “Oui, c’est moi.” “Comment allez vous, Philippe?”. “Bien, et toi?” E por aí seguia, numa espécie de história em quadrinhos. Dois ou três meses depois, tivemos uma aula de Francês no laboratório. Que novidade! Será que mudou o sistema?

O Moraes estava com uma vitrolinha na sua mesa. Pediu que os alunos se arrumassem em grupos de cinco e avisou que precisava de silêncio, porque ia tocar uma música e cada grupo teria que escrever uma redação com base no que sentisse ao ouvir a tal música.

Tocou a primeira vez. Era Paul Mauriat, eu reconheci. Esperou um pouco que os grupos se manifestassem e que voltassem ao silêncio. Nosso grupo aproveitou para definir o tema da redação: era solidão, pois a música era triste, sentida. Cada um escreveria a sua e depois, de algum jeito, juntaríamos tudo. Fugindo à metodologia que o professor teria imaginado, cada um escreveria em português mesmo e depois o Sylvio – que era repetente e sabia mais francês do que todo mundo – verteria para o idioma de Victor Hugo. Ele aproveitou a oportunidade para pedir que não escrevêssemos nada muito difícil, para não atrapalhar a versão, ainda que tivéssemos um dicionário em mãos. Afinal, era um trabalho em grupo e a nota seria única.

Ouvimos novamente a música, já anotando algumas frases, ideias, linhas de pensamento. Lembro-me de que eu comecei a escrever um arremedo de poesia, algo como “Não há ninguém,/eu estou só./Todas as pessoas foram embora,/eu estou só.” E ia por aí adiante, com mais uns três ou quatro “eu estou só”. Outro colega havia escrito alguma coisa mais conceitual, que começava assim: “A solidão, para alguns, é o refúgio do amor. Para outros, a tristeza de estar esquecido”. Aí ficamos embatucados: como juntar coisas tão diferentes?

Depois de muitos debates, concordamos em começar pelos meus “versos”, depois colocar a tal frase e fechar com mais um “eu estou só” – o que provocou mais discussão: colocar ou não? Uns diziam que ficaria muito repetitivo, outros achavam que era o fecho perfeito. Votamos e ganhou colocar mais esse verso no final.

Sylvio fez a tradução. Ficamos sem saber como colocar o “estar esquecido”. Fomos ao professor, que escreveu num papel: “être oublié”. Pronto. Entregamos o trabalho meio ressabiados, pois estávamos certos de que não tinha meio-termo. Era ou zero ou dez.

Ficamos ansiosos até a aula seguinte. O Moraes entrou com sua pastinha – que mais parecia pasta de aluno que de professor – e começou a entregar os trabalhos. As notas eram cinco, seis, seis, cinco, seis e meio... Fazia comentários rápidos, do tipo “interessante”, “bem-feito”, “muito simples”... E nada de entregar nossa “poesia”.

“Esse cara vai arrasar a gente”, disse o Baixinho pra mim. “Se ele sacanear a gente em público vai ser terrível”, respondi.

Pronto. A última folha que ele tirou de dentro da maldita pastinha era a nossa. Eu sabia que era – e todos nós nos entreolhamos – porque era uma folha de fichário da finada Papelaria União. E agora? O que viria?

Nosso grupo estava preparado para se enfiar embaixo das mesas, para ser azucrinado pelos outros colegas, ridicularizado pelo menos até o final da semana. Até que o Moraes começou, escandindo as palavras:

“Não gosto muito de poesia. Tem que ser muito boa para mexer comigo. Mas esta aqui está especial.” E leu nosso trabalho para a turma toda, em silêncio.
Lembro que o único erro foi um excesso de pas, dispensável no verso “Il n’y a pas personne” (o correto seria “il n’y a personne”).

Foi meu único dez em francês, nos quatro anos em que estudei esse idioma no colégio. Talvez por isso guarde até hoje esse original, autografado por todos os autores.

Só não lembro onde.

Publicado em 06/12/2011

Publicado em 06 de dezembro de 2011

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