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Waldomiro de Deus: 50 anos de cores e fé
Juliana Carvalho
Eduque a criança com carinho, mas corrija-a. A correção do mundo pode ser triste, penosa e cruel.
Waldomiro de Deus
Esteve em exposição no Centro Cultural dos Correios em novembro a arte de Waldomiro de Deus, que comemorou 50 anos de carreira reunindo 30 obras criadas nas décadas de 1960 a 90 e nos primeiros anos no novo milênio. No salão em que estavam expostas suas obras, Waldomiro recebeu os visitantes cumprimentando-os um por um e falou sobre cada quadro, contando detalhes de sua história e conversando sobre assuntos atuais. Essa forte integração entre artista, obra e público não é comum. Geralmente visitamos exposições de artistas mortos há muito tempo, às vezes com o auxílio de guias que contextualizam as obras, falando de seu momento histórico e raramente sobre as características estéticas. Presenciar um artista falando sobre sua produção foi uma oportunidade rara, e por isso vou contar um pouco da história desse pintor que é o maior expoente da arte naïf no Brasil.
Sua vida é inspiradora. O artista nasceu em 1944, em Itajibá, no sul da Bahia, e aos 12 anos começou a percorrer o Brasil. Inicialmente, passou pelo interior de Minas, onde chegou a dormir em grandes pedras no meio de um rio. De carona em um pau de arara, chegou a São Paulo em 1958. Lá, viveu nas ruas, dormindo em bancos de praça, até que um sargento da guarda civil o levou para a sua casa em Osasco. Para o pintor, aquele foi o momento em que sua sorte começou a mudar: “Quando chegamos em casa, o sargento disse à sua mulher que daquele momento em diante eu seria o filho do casal”. O policial também lhe deu uma caixa de engraxate, com a qual começou a trabalhar.
Nesse tempo, seu talento para as artes começava a aflorar: “Minha primeira obra foi uma escultura de barro de uma santa com roupas modernas que coloquei em uma loja da cidade. O dono até quis me bater”. Depois disso, começou a trabalhar como jardineiro na casa de um antiquário. Aproveitava as frias noites paulistanas para pintar em pedaços de papel. Como pintava na hora em que deveria dormir, dormia na hora em que deveria trabalhar. Por fim, foi mandado embora do emprego.
Sem trabalho, resolveu expor algumas pinturas no Viaduto do Chá, em São Paulo. Lá, conheceu o decorador Terry Della Stuffa, que, além de oferecer a Waldomiro casa, comida e material para pintar, organizou sua primeira exposição individual em 1962, no Parque Água Branca, também em São Paulo. Na ocasião, conheceu muitas pessoas influentes na sociedade de São Paulo. Participou da I Bienal Nacional de Artes Plásticas, em Salvador, da IX Bienal Internacional de São Paulo e de várias mostras nacionais e internacionais. De 1969 a 1973 viajou para Europa, Ásia e América Latina. Em Israel, morou num convento. Nesse convento, Waldomiro teve uma experiência com Deus. Ele conta que sentiu, vindo do céu, um raio de luz azul, que era a presença de Deus. Essa experiência o modificou para sempre e, a partir daí, os temas religiosos tornaram-se ainda mais presentes em sua obra.
Depois disso, a arte de Waldomiro percorreu o mundo. Suas obras foram adquiridas por colecionadores europeus, americanos, japoneses e árabes e estão expostas em museus e galerias de arte em vários continentes. Viveu na Alemanha, França, Itália e Israel, locais onde é elogiado pelos críticos e considerado um dos grandes artistas brasileiros. Na França, seu estilo foi denominado naïf (ingênuo).
No retorno ao Brasil, voltou a morar em Osasco, na Grande São Paulo, em uma casa repleta de obras de arte, bonecas e com um caixão no lugar da cama. Não é preciso dizer que o local virou ponto de encontro de artistas, colecionadores, empresários, jornalistas e pessoas influentes da sociedade de São Paulo. Em paralelo, participou do movimento tropicalista ao lado de Gal Costa, Caetano, Gil e Tom Zé. As fotos dessa época revelam outra paixão de Waldomiro: a moda. De cabelo black power e calças boca de sino, o artista percorria as ruas de São Paulo buscando inspiração nas vitrines. Foi então que escandalizou o Brasil conservador do final da década de 1960 pintando Nossa Senhora Aparecida de minissaia como parte de uma série de quadros que hoje são relíquias e estão nas mãos de colecionadores.
A mostra reuniu obras que retratam o Brasil inteiro: lá estavam índios, recriações da natureza e personagens rurais e até nossos políticos corruptos, jogadores de futebol e outros tipos emblemáticos da nossa cultura. Além disso, também estavam representadas grandes tragédias nacionais e internacionais, como o ataque às torres gêmeas de Nova York, ocorrido há 10 anos, o atentado terrorista a uma estação de Madri, na Espanha, o recente tsunami que atingiu o Japão depois de um terremoto de 8,9 graus na escala Richter e o acidente ocorrido na construção da Estação Pinheiros do Metrô de São Paulo.
A obra mais antiga da mostra era uma paisagem, realizada com guache sobre cartolina. Utilizou esses materiais porque foram os únicos que encontrou na casa daquele antiquário de São Paulo onde trabalhou como jardineiro. Waldomiro já foi tema de mestrados de aspectos socioculturais, filosóficos e teológicos, além de livros e literatura de cordel. É um dos pintores brasileiros mais conhecidos, e alunos de centenas de escolas fazem frequentemente releituras de suas obras.
Uma frase de Jorge Amado sobre Waldomiro abre a mostra e inspira a apreciar sua obra: “É realmente de Deus esse Waldomiro que reinventa a vida com a pureza de sua ingênua sabedoria. Um poeta do povo, um mágico. Jogral a misturar as cores como quem faz versos ou inventa um passo de dança, recriando a vida com amor, Waldomiro de Deus nos oferece com sua pintura o que de melhor existe: o gosto de viver, a fraternidade, a ternura”.
As pinturas de Waldomiro são uma excelente oportunidade de ler o Brasil e o mundo; vale a pena mostrar aos alunos uma obra rica em cores, imagens e metáforas em diferentes lugares e cenas deste nosso país.
Para saber mais sobre Waldomiro de Deus:
- Livro: Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf Waldomiro de Deus, de Oscar D’Ambrósio, publicado pela Editora da Unesp.
- Dissertação de mestrado de Maria Filomena Gonçalves Gouvêa: O profeta da pintura entre Deus e o outro: um estudo dos aspectos sociocultural e religioso na obra artística de Waldomiro de Deus, no Departamento de Filosofia e Teologia da Universidade Católica de Goiás.
- Site do artista: www.waldomirodedeus.com.br.
Publicado em 06/12/2011
Publicado em 06 de dezembro de 2011
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