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Educação, escola e paradoxos no campo da violência - Parte II
Lúcio Alves de Barros
Professor da FAE-UEMG, doutor em Ciências Humanas
Débora Luiza Chagas de Freitas
Graduanda de pedagogia da FAE-UEMG
Introdução
Este é o relatório final de pesquisa apresentado ao Centro de Pesquisa da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), ao Programa Institucional de apoio à pesquisa (PAPq/UEMG) e ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/UEMG/Estado).
A pesquisa analisa as relações sociais produzidas em uma escola estadual de Belo Horizonte. Tais relações tinham como latente a sociabilidade fundamentada nas relações de violência. Partimos da ideia de que a violência é um conceito polissêmico e recebe roupagens de acordo com os interesses dos agentes envolvidos, bem como da localidade da instituição escolar e da posição ou papel social que o agente, por vezes, incorpora.
Nesta segunda parte, ressaltamos os dados da pesquisa. A despeito das dificuldades, notadamente horários, condições das entrevistas e recursos para a confecção e aplicação do questionário, foi possível perceber que estudantes e professores estão encarcerados em relações paradoxais.
No caso dos alunos e alunas, tais relações, principalmente as consideradas violentas, não são calaras e, por vezes, carregam as incongruências, os conflitos e os entendimentos tácitos e manifestos sobre o que os agentes entendem por violência. Distante do senso comum, os atores não navegam – conforme acreditam alguns – num campo no qual a violência é aberta e perceptível. Sabemos que não se vê o que não se deseja. Por outro lado, tornou-se impossível fechar os olhos aos fatos que, aparentemente, tornaram-se normais e corriqueiros. Nesse sentido, pelo menos na representação coletiva dos estudantes da escola estadual em pesquisa, o mundo paradoxal da educação e da violência revelam alunos e alunas à deriva, sem lugar, sem "sonhos" e sentidos. São crianças, adolescentes e jovens marginalizados, esquecidos pelas políticas públicas e distantes de bons projetos pedagógicos.
Da percepção do fenômeno
Diante de tantas variações da categoria violência e de como ela se manifesta, nada como perguntar aos atores o que entendem sobre o fenômeno. Os alunos responderam a uma questão direta sobre violência(s) nas escolas. A pergunta permitia que os alunos marcassem mais de uma opção. A maioria dos estudantes respondeu que “estuprar", “matar uma pessoa”, “bater em mulheres” e “atirar em alguém” são ações violentas. O estupro é a ação mais violenta, tal como revela a Tabela 1, seguido por homicídio e espancamento de mulheres. As respostas seguem o campo do que o Código Penal considera crime. Não quer dizer que os estudantes têm noção do campo normativo. Tudo indica, levando inclusive em consideração as respostas abertas, que os alunos nutrem grande resistência às ações que podem vitimizar as mulheres. Não pode ser por acaso que o estupro aparece como mais violento que o homicídio e que, logo em seguida, os estudantes apontem o problema do espancamento das mulheres. Pode-se sugerir que muitos enfrentam o problema no ambiente doméstico ou que já ficaram sabendo de casos que inegavelmente levaram as vítimas e os familiares a grandes sofrimentos.
É interessante observar que 7% dos estudantes declararam “uso de drogas” como ação violenta e 4% anotaram a alternativa "andar armado". Ou os estudantes realmente não entendem como violência a utilização de drogas ou elas não aparecem como problema na instituição. Mas é curioso como o "andar armado" pode aparecer como um comportamento não violento (4%) ou mesmo o "brigar com socos, sem usar armas” (3%). Tais comportamentos podem fazer parte do cotidiano da comunidade ou se tornaram banais diante da avalanche de informações sobre violência e criminalidade que invadem as casas dos estudantes (Tabela 8).
Ações | Estudantes | % |
Estuprar | 256 | 16 |
Matar uma pessoa | 247 | 16 |
Bater em mulheres | 189 | 11 |
Atirar em alguém | 188 | 11 |
Usar drogas | 111 | 07 |
Roubar | 103 | 06 |
Brigar com irmãos, pais e filhos | 78 | 05 |
Pichar | 54 | 03 |
Trocar insultos, xingamentos, vaiar, gritaria | 63 | 04 |
Andar armado | 61 | 04 |
Fazer ameaças | 70 | 04 |
Brigar com socos, sem usar armas | 54 | 03 |
Fazer racha ou pega de carro | 48 | 03 |
Quebrar orelhões | 35 | 02 |
Riscar / arranhar carro | 34 | 02 |
Dirigir rápido | 39 | 02 |
Outras | 17 | 01 |
Total | 1647 | 100 |
Foi perguntado aos alunos as ações que eles |
Nota
Os dados recolhidos sobre a temática das drogas nesta escola se referem à ciência de que os alunos têm de colegas que já utilizaram ou utilizam alguma substância ilícita. Dos entrevistados, 51% afirmaram que conhecem alguém que já utilizou e 49% desconhecem. Apesar de o assunto não ser nenhum tabu naquele ambiente, os estudantes claramente têm receio de responder à questão. De qualquer modo, as drogas não parecem ser o maior problema da direção, e os estudantes, talvez pela própria cultura local, também não entendem a questão das drogas como um “problema”. Provavelmente é por isso que os alunos se dividiram nas respostas, e o fato de conhecer ou não um colega que já utilizou inclusive nos pareceu até enganoso e passível de nova verificação em outras pesquisas.É difícil avaliar o quanto a mídia interfere no aumento, na diminuição, na veiculação, na prevenção ou no controle da violência e, consequentemente, na produção do medo e da insegurança. Há muito já se sabe inclusive que os meios de comunicação tornaram-se campos de disputa, e a violência, tal como qualquer outra mercadoria, passou a receber os requintes e privilégios que outrora somente eram dispensados a determinadas mercadorias. A ela foi acrescentado o poder do espetáculo, da ressonância, da fama e da infâmia ou mesmo do sensacionalismo e da surpresa das “cenas do próximo capítulo”.
Como pode ser observado na Tabela 8, a maioria dos estudantes se mantém informada pelos programas de TV (47%), depois apostam em revistas e jornais (2%), e 16% responderam utilizar a internet. Realmente é difícil verificar o impacto que imagens de violência têm nas mentes dos estudantes; contudo, é possível mencionar que boa parte do que os alunos entendem por violência deve estar associada ao forte apelo midiático.
Não é por acaso que os estudantes apontaram como violência ações que retratam a situação das mulheres. Historicamente vitimizadas no país, a TV há muito dedica um grande espaço a vitimização feminina na esfera da comunicabilidade. Por outro lado, muitas das ações que os alunos nem encaram como violência recebem poucas tintas dos meios de comunicação, sugerindo banalização de certos episódios, notadamente devido à constante repetição e naturalização de certos fenômenos de violência. É forçoso mencionar que provavelmente os alunos assistem demasiadamente à TV devido ao tempo ocioso existente em suas vidas. A maioria dos alunos e alunas não trabalha e possivelmente, no interior do grupo doméstico, fica um bom tempo em frente à televisão ou na internet. Com os dados apresentados, é impossível dizer se os meios de comunicação podem ou não interferir no aumento da violência na escola. Por outro lado, é perceptível que principalmente a TV se tornou um bom veículo de informações para jovens e crianças, haja vista ser este meio entendido como lazer, (in)formação, ócio e entretenimento.
Estudantes | % | |
Programas de TV | 263 | 47 |
Jornais/Revistas | 116 | 21 |
Internet (sites) | 87 | 16 |
Conversas com amigos | 46 | 08 |
Programas de rádio | 30 | 05 |
Professores | 08 | 02 |
Nenhum | 04 | 01 |
Total | 554 | 100 |
Foi perguntado aos alunos como eles se informam dos acontecimentos |
Diferentemente do que revela boa parte das pesquisas de opinião, a maioria dos estudantes (31%) afirmou que um dos problemas sociais mais graves que o país enfrenta é a “assistência à saúde”. Em seguida apareceu a segurança (28%) e em terceiro a escola (14%). A resposta contundente dos alunos pode estar associada aos poucos equipamentos públicos de saúde disponíveis no bairro. Afinal, são alunos de uma escola que atende o que chamamos de periferia, local no qual moram famílias nucleares de baixa renda e que labutam a maior parte do dia.
Estudantes | % | |
Assistência à saúde | 235 | 31 |
Segurança | 205 | 28 |
Escola | 103 | 14 |
Transportes/Pavimentação | 71 | 10 |
Saneamento | 66 | 09 |
Abastecimento | 22 | 03 |
Habitação | 21 | 03 |
Nenhum/Não respondeu | 17 | 02 |
Total | 740 | 100 |
Foi perguntado aos alunos: |
Foi perguntado aos estudantes sobre as notícias acerca de casos de violência ocorridos na escola. Praticamente metade deles respondeu que já teve notícias de violência (43%); 57% disseram que não. Os estudantes se dividiram nessa questão. Conforme já mencionado, muitos na verdade não entendem certas práticas como violentas. Poucas foram as salas nas quais não foi possível observar tensões e conflitos manifestos que fogem ao fazer pedagógico.
O denominado bullying (materializado e ostensivo por meio de gozações, discriminações, apelidos e outra atitudes semelhantes) é fenômeno banal. Os estudantes não fazem a mínima ideia de que se trata de violência e pode-se inclusive colocar em questão se este fenômeno realmente é um problema relevante naquela escola. Por outro lado, tais práticas podem ser tão corriqueiras e aceitas socialmente que passam despercebidas ou mesmo são banalizadas de acordo com a dimensão e a conjuntura em que aparecem.
Respostas | Estudantes | % |
Sim | 134 | 43 |
Não | 175 | 57 |
Total | 309 | 100 |
Da notícia de acontecimentos violentos para a posição de vítima vai um longo caminho de entendimento. Perguntadao sobre as ameaças de violência sofridas na escola, a maioria dos alunos respondeu que não foram ameaçada (80%). De todo modo, 20% dos estudantes declararam que já foram ameaçados no interior do estabelecimento escolar. Como se sabe, a ameaça é o fim do diálogo e o início de uma relação desproporcional. Embora a maioria não tenha declarado que tenha ameaçado o outro, é importante mencionar que a existência das ameaças é o suficiente para a configuração de um ambiente de medo e apreensão.
Respostas | Estudantes | % |
Sim | 61 | 20 |
Não | 248 | 80 |
Total | 309 | 100 |
É comum nas pesquisas sobre violência a atenção que se dá ao culpado e ao agressor. As vítimas, embora as pesquisas de vitimização tenham ganhado espaço a partir dos anos 1990, têm sido esquecidas. Uma possível explicação é que, se existe algo que a “sociedade excludente” não perdoa, é o sujeito vitimizado pelas circunstâncias da vida ou mesmo que se faz de vítima por algum motivo irrelevante. Qual o problema de ser vítima ou estar no lugar dela? Não deve ser por acaso que a maioria dos estudantes respondeu que não sofreu ameaça na escola. De todo modo, a conjuntura escolar recebe novas roupagens quando alunos e alunas respondem se já foram vítimas de furtos e roubos.
Respostas | Estudantes | % |
Sim | 114 | 37 |
Não | 195 | 63 |
Total | 309 | 100 |
Dos estudantes entrevistados, foi bastante significativa a porcentagem dos que responderam terem sido vítimas de furto/roubo na escola (37%). Por outro lado, 63% dos estudantes afirmaram que não foram vítimas de furto ou roubo. Curioso; embora haja notícias de muitos casos na escola, mais da metade dos estudantes se calou na resposta. Como dito, ser vítima não é boa coisa: o estudante que foi furtado ou roubado não aguarda o custo da ação. Parece saber que, caso procure as instituições, é penoso explicar ao professor, ao diretor, ao policial, ao delegado etc. o acontecimento. O recalcitrante – perdido no anonimato – obviamente não vai se dar ao luxo desse momento. O problema é que, mesmo na condição de vítima, muitos ainda são criminalizados e culpabilizados. Afinal, “você não tomou cuidado”, “não percebeu antes”, “quem mandou andar por ali”, “ficou dando oportunidade”. De vítima, paulatinamente o sujeito transforma-se em culpado. O verdadeiro culpado, por sua vez, passa por uma interessante metamorfose, tornando-se – aos olhos desatentos – marginal, esperto, forte, proprietário da verdade e controlador dos impulsos próprios e alheios. Tudo porque a vítima estudantil tornou-se fraca, burra, velha, negra, mulher "e merece é ser roubada ou violentada mesmo". Na escola pesquisada, tornou-se dever do aluno levar a mochila para o pátio nos intervalos. Há tempos os alunos reclamam de furtos e roubos em sala de aula e não confiam nos colegas.
Portanto, na sociedade excludente, não é possível encontrar lugar confortável para as vítimas. Inevitavelmente elas serão desfiliadas do corpo social e cairão na indigência e na exclusão de toda ordem. É um caos esperado e em pleno desenvolvimento, alicerçado nas injustiças e nas conveniências sociais. Contudo, é preciso saber o lugar e a identificação da vítima. Nessa situação, homens e mulheres, além de serem culpados levianamente, sentem culpa e se desgastam em dobro, cansando nervos e organizando mecanismos subjetivos e objetivos de defesa.
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A seguir:
Educação, escola e paradoxos no campo da violência – Parte III – Das ameaças e armas
Leia também:
Educação, escola e paradoxos no campo da violência – Parte I – As várias formas de violência
Publicado em 13/12/2011
Publicado em 13 de dezembro de 2011
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