Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Futebol, mito e poesia

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia do IFRN

Os velhos gregos sabiam que nem todas as palavras eram iguais. Algumas, por mais semelhantes que fossem, guardavam profundas distinções de seus símiles. Mas não eram apenas as palavras, objeto dessa decomposição de significados. O próprio discurso, a própria fala que constrói a rede de linguagem que cria o mundo dos homens, não é igual.

Existe o logos,uma fala exata, racional, cortante e mental, articulada em estruturas gramaticais que induzem os grandes saltos do pensamento e as perigosas construções que usamos para compreender o mundo que nos cerca e desmontar o véu ilusório das ideologias sociais.

Mas existe também uma outra fala, um outro discurso, um outro verbo que constrói também seus paraísos e seus deleites narcóticos, como aqueles que vêm da razão.

O mitos é a palavra sagrada que evoca a memória dos heróis mortos. O verbo poético que nos encanta e enlouquece com sua beleza simbólica, com seu furor entusiasmado que nos arrebata até esferas de emoção. A poesia que nos leva ao delírio do riso ou ao universo encantado das lágrimas libertadoras.

O Sócrates grego era um mestre no primeiro tipo de discurso. Um craque das praças abertas da velha Atenas de Péricles; seu combate, seu confronto mais intenso se deu na arena do logos, no campo da política e do pensamento, que, em sua selvageria contida, desconstruía as crenças preguiçosas dos velhos atenienses.

O Sócrates brasileiro também era muito bom na arte de seu xará ateniense. Nascido dentro de uma biblioteca (como disse em uma palestra dias antes de morrer), herdou o nome do velho mártir da filosofia pela paixão de seu pai, seu Raimundo, um autodidata nascido nos sertões do Ceará, pelas letras. Foi pelas páginas do mais conhecido livro de Platão, A República, que seu Raimundo achou o nome de seu filho.

Num tempo em que ter coragem e postura era um imperativo dos justos, o Sócrates brasileiro reconstruiu, na pequena ágora corintiana, a experiência radical da democracia dos gregos.

Mas o Sócrates brasileiro não se destacou só pela suas qualidades intelectuais, pela sua coragem de postular e seguir uma ideologia, como Johan Cruyff na Holanda e Breitner na Alemanha também fizeram nos sombrios anos setenta. O Sócrates brasileiro também dominava outro discurso, outra narrativa, outro verbo poético que o grego nunca imaginaria ser possível.

Na poesia da bola, nosso Sócrates construiu uma narrativa mitológica que cristalizou na memória estética do mundo a ideia de um futebol arte, que não se subordinava à lógica produtivista da vitória. Sua luta não era a luta dos iguais, dos que se contentavam com a banalidade do mesmo, com a redutiva isonomia do comum.

Quer na poesia mítica do futebol arte, quer nos rigores lógicos da razão política, que desmanchava as alucinações ideológicas de um sistema que instituiu a vitória como assassina da beleza e que insiste no descabimento de transformar o futebol em um esporte, Sócrates era uma dissidência. Um único. Um significante e imprevisível poeta da bola, que dominava como poucos nesse tempo árido de significados a técnica do pensamento.

Se o Sócrates dos gregos assumia que só sabia que nada sabia do mundo das ideias, o Sócrates brasileiro no mundo da bola foi um dos nossos mais importantes sábios. Como disse Haroldo Soares, técnico do time infantil do Marista ao ver seu alto, magro e desengonçado aluno jogar naqueles anos setenta: “O Sócrates é um desses jogadores a quem a gente não precisa ensinar nada. Ele já nasceu sabendo”.

Publicado em 13/12/2011

Publicado em 13 de dezembro de 2011

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.