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Histórias, estórias, ex-tórias

Alexandre Amorim

Uma corrente de estudiosos determina que Heródoto (grego que viveu em meados do século V a.C.) foi o primeiro autor de uma obra sobre História como análise de eventos referentes a um povo. Heródoto batizou seu livro de Histórias, que no original significava “pesquisas”, e narrou várias guerras helênicas, mas nunca de modo objetivo – ao contrário, o livro do autor grego é repleto de observações e opiniões, além de digressões poéticas.

Em busca de uma sistematização do conhecimento do seu povo, Heródoto pode ter copiado textos mais antigos e até mesmo inventado várias das passagens narradas, inclusive as próprias viagens para obtenção de informações acerca do seu objeto de estudo. Nem mesmo as fontes escritas em que se baseou têm caráter preciso, uma vez que a maioria dessas fontes eram obras poéticas de Homero, Safo, Ésquilo e outros. Suas investigações ainda careciam de método científico – que ele ajudou a construir.

Como se vê, a História nasceu da necessidade de narrar acontecimentos e analisar esses acontecimentos para gerar conhecimento. Se o método científico passou a ser utilizado para se escrever a História, esse mesmo método foi muitas vezes posto em dúvida e teve que se adaptar ao espírito dos tempos. O povo grego tem sua vida narrada em epopeias, tragédias e poemas, e muitas dessas fontes confundem a mitologia com acontecimentos factuais. Séculos depois, a Igreja Católica continuava a misturar mitos e fatos e determinava a história da humanidade de acordo com sua visão monoteísta e divinal. Se o iluminismo já trazia a questão histórica para o Homem como centro de sua própria vida, com o desenvolvimento tecnológico e a chamada Revolução Industrial a história centrou-se no ser humano e a questão causa/consequência continuou sendo fundamental na explicação dos fatos, agora com a necessidade de comprovação por uma visão científica da vida.

Hoje em dia, a História não pode mais ser vista como mero mecanismo de causa e consequência. As ligações e interseções entre conceitos acabam por nos mostrar que qualquer noção histórica deve ser encarada de modo totalmente heterogêneo, isto é, constituída por tantos elementos quantos estiverem conectados a ela (por exemplo, os conceitos formadores dessa noção histórica e formados por esta). O próprio homem já mostrou que suas narrativas são, em si, importantes o suficiente para formar sua bagagem histórica. A vida de um indivíduo ou de um povo está formada por tal complexidade de fatos e interpretações entrelaçados que a própria narrativa de suas vidas ajuda a formar essa vida.

Um exemplo claro de narrativa escolhida para formação de um povo é descrita a seguir:

Até meados da década de 1980, aprendíamos na escola que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil graças às calmarias. Calmaria é um termo meteorológico que se traduz em falta de ventos. Por que essa falta de ventos fez com que Cabral chegasse ao litoral do que viria a ser o Brasil, poucos professores explicam. A narrativa passa a ser válida em si mesma, deixando para seus ouvintes a tarefa de imaginar ou deduzir a lógica dessa história. Como diria Guimarães Rosa, a história passa a ser estória, ou seja, um fato passa a ser trama. A partir daí, é necessário entender que o fato não é mais apenas ele mesmo, mas um conceito e, como tal, deve ser compreendido como algo complexo e suscetível de interpretação. A história como fato não mais existe, é ex-tória. Vale agora interpretar o que foi contado.

A calmaria pode ser entendida como fato ou como criação, e não há mais como reconhecer a verdade. Podemos acreditar em registros da época como retrato fiel dos fatos ou acreditar que questões políticas levaram os registros da época a registrar distorções dos fatos. Assim como uma criança acredita no Lobo Mau até substituir esse fantasma por outros (e então passar a acreditar no Lobo Mau simbolicamente), pode-se acreditar na calmaria como fato ou como símbolo. A História, atingida em seu cerne de registro dos fatos, se desvanece em conceitos interligados que se misturam e deixam de ser uma só verdade. Passa a ser um conceito, ela também, interligada à estória (a narrativa) e à ex-tória (a falta de uma verdade objetiva).

Publicado em 01 de fevereiro de 2011

Publicado em 01 de fevereiro de 2011

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