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Referências literárias na MPB – um exemplo

Alexandre Amorim

Antes de tudo, peço licença aos leitores (e ao compositor, Milton Nascimento) para publicar a letra da canção Morro Velho, que vai servir como exemplo de uso das referências literárias na Música Popular Brasileira.

Segue a letra (e sugiro que ouçam a música, lindíssima):

Morro Velho

Milton Nascimento

No sertão da minha terra,
fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força,
parece até que tudo aquilo ali é seu
Só poder sentar no morro
e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada
Filho do branco e do preto,
correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro,
crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho
de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, conta histórias prá moçada
Filho do senhor vai embora,
tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes,
deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar,
some longe o trenzinho ao deus-dará
Quando volta já é outro,
trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua
que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor,
e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.

A canção comete uma repetição poética da típica história da vida no interior do Brasil: o filho do dono da fazenda que, durante a infância, tem a vida livre e é amigo dos filhos de empregados (os filhos “do branco e do preto”, como Milton resumiu metaforicamente), mas que, ao crescer, deve partir para a cidade, tendo como obrigação adquirir conhecimento acadêmico para poder voltar e assumir o lugar do pai.

Se essa história se repete no interior do Brasil, especialmente na região Sul-Sudeste, o autor traduz essa tradição em uma mistura de referências literárias, o que parece ser a mimetização da mescla de tradição e transformação da vida social e cultural brasileira. Porque o autor soube fotografar o costume, mas também apontar a insatisfação com esse costume. E o fez cruzando toques de romantismo e modernismo, movimentos literários que se supõem contraditórios entre si.

A letra ainda traz o ideal da inocência e do mundo utópico que é o interior do país (“tudo verdinho, lindo a crescer”). A visão do universo romântico se junta a uma preocupação de ritmo e rima – mesmo porque é uma letra de canção. Se sua ambientação bucólica e pastoril remete aos ideais românticos, a preocupação formal não chega a tornar a obra parnasiana. Mas, não à toa, podemos encontrar os ecos abolicionistas de Olavo Bilac na canção: o poeta parnasiano que defende a volta aos ideais clássicos da escrita também defende novas relações sociais. Se Bilac pregava o fim da escravatura, Milton revela a relação arcaica mantida entre o filho branco, que é quem vai mandar, e o filho negro, que ao final já não brinca, mas trabalha.

O próprio arranjo da canção mostra esse amálgama de passado e presente: a toada do violão, que cede espaço a uma orquestração com toques de metais rompantes, quase agredindo quem espera que a música se mantenha serena.

Ao trazer duas influências confluentes em si – o romântico morador rural e o moderno reformador social, Milton Nascimento o faz pelo viés do idealismo. A melancolia expressa pela música se compõe por uma impossibilidade em alcançar o que o moderno idealista propõe – a igualdade social, mesmo que essa desigualdade apareça em um mundo quase utópico (isto é, romântico) – de peixes no riacho e estradas para se correr atrás de passarinhos.

A capacidade de beber das influências literárias e trazê-las harmoniosas em uma canção poética e tocante é comum a produção da música brasileira. Morro Velho é apenas um exemplo – mas, convenhamos, um dos mais bonitos.

Publicado em 28/06/2011

Publicado em 15 de fevereiro de 2011

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