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A escola do ressentimento
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia do IFRN
Em 1949, Louis Armstrong realizou um dos seus maiores sonhos: desfilou como Rei Zulu no Social Aid and Plesure Club durante o Mardi Gras em New Orleans. Para as novas gerações de intelectuais afrodescendentes, aquela era uma imagem bizarra.
Armstrong com a cara pintada de branco, vestindo uma fantasia de chefe tribal africano durante o mais famoso carnaval do país não parecia ser uma imagem condizente com algum tipo qualquer de dignidade racial proposta pelos movimentos de direitos civis. Mas Armstrong não dava a mínima. Para ele era uma honra estar ali. O problema é o que veio depois.
Louis havia preparado um show para apresentar após do desfile da mais antiga e atuante associação de luta pelos direitos dos negros nos EUA. O problema é que ele iria subir ao palco com Jack Teagarden, um trompetista branco. Foi justamente por isso que o show foi cancelado. As lideranças da luta pela igualdade racial naquela América do pós-guerra, ao menos em New Orleans, não pareciam achar adequado que, na maternidade do jazz, um trompetista branco subisse ao palco junto com um ícone da música negra, como era o velho Louis.
Armstrong ficou arrasado. Sua mágoa para com sua terra natal foi tão profunda que ele deixou expressa a sua vontade de não ser enterrado em New Orleans. Ele chegou a comentar: “Não me importa de nunca mais ver aquela cidade. O jazz nasceu nela e eu me lembro de quando não era crime que homens de qualquer cor se unissem para tocar”.
Há um risco em se assumir lutas políticas por causas justas.
Combater o racismo é um imperativo moral da humanidade. A ideia de raça é tão danosa e perigosa quanto a de guerra justa, superioridade cultural ou da existência do mal. Esse um conceito que pode ser usado para justificar enormes calamidades humanas. O problema é quando o combate justo contra o racismo se torna um tipo pernicioso de ressentimento.
Harold Bloom já havia entendido esses riscos quando publicou O cânone ocidental, nos anos 1990. Ele havia se insurgido contra um tipo de movimento nos estudos literários norte-americanos que chamou de “Escola do Ressentimento”. Era o tipo de leitura que buscava reduzir a importância literária de Shakespeare por ele ser racista.
O próprio Bloom (um dos maiores intelectuais judeus da contemporaneidade) reconhecia esse racismo quando dizia que Shakespeare (em O Mercador de Veneza) “parecia me odiar”. A despeito dessa evidência (a do antissemitismo de Shakespeare na peça citada), Bloom gemia de dor ao imaginar que nas escolas públicas norte-americanas fosse dado o mesmo tratamento a Hamlet e A Cabana do Pai Tomás, simplesmente pelo fato de a segunda obra ser mais “politicamente correta”.
O que Bloom parecia estar pressentindo era uma ameaça aos estudos literários, uma sombra que se estendia a partir dos chamados “estudos culturais” que poderia esvaziar a literatura de si mesma e reduzi-la a um apêndice antropológico de críticos e professores que liam livros não pela contribuição desses textos ao cânone literário, mas sim do seu ajuste a determinadas concepções ideológicas.
A literatura passava então a ser vista como um instrumento da política, e a importância de uma obra deveria estar subordinada à sua utilidade na construção de uma determinada imagem de sociedade pensada por grupos políticos específicos.
A discussão sobre o parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) que estabeleceu que o livro As Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, só seja distribuído nas escolas públicas brasileiras com uma nota sobre “estudos raciais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura” mostra – talvez para a infelicidade de nossa crítica literária e do futuro das aulas de literatura – que a escola do ressentimento pode estar definitivamente cavando suas trincheiras no coração dos brasileiros.
Ainda bem que o parecer foi retirado.
Publicado em 22 de fevereiro de 2011
Publicado em 22 de fevereiro de 2011
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