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O uso dos clichês
Tatiana Serra
Entrevista com o ator Lucio Mauro Filho
Lucio Mauro Filho
Chavões, frases prontas, preguiça linguística, massificação da civilização, paralisação do pensamento. Por que temos obsessão pela padronização? No monólogo Clichê, em que humor e reflexão andam de mãos dadas, damos muitas gargalhadas e paramos para pensar nas palavras que derramamos por aí... Tudo isso conduzido pelo ator Lucio Mauro Filho, que, dirigido por Rubens Camelo, interpreta o texto de Marcelo Pedreira todo escrito em clichês, questionando sua utilidade e inutilidade.
Nada de conversa jogada fora; a entrevista com Lucio Mauro Filho foi um bate-papo cheio de humor, clichês, conteúdo aprofundado e, acima de tudo, possibilidades de reflexões sobre o X da questão. “O clichê não passa de uma preguiça linguística. Afinal, até que ponto respostas prontas são boas quando, no fundo, elas impedem o pensamento?”.
A peça Clichê está em cartaz no Teatro Leblon, no Rio de Janeiro, às sextas e sábados, às 23h30. O valor é um dos melhores do circuito de peças da cidade: R$ 50 (inteira) e R$25 (meia entrada). A previsão é de que o espetáculo fique no Rio até o final de maio. Leia a entrevista.
Educação Pública - Sobre sua escolha profissional, você acha que filho de peixe peixinho é?
Lucio Mauro Filho - Desde que me entendo como gente, eu sempre apontei para essa área das artes, da comédia, do palhaço. Eu sempre tive prazer em me apresentar em festas, no colégio etc. Eu cresci num ambiente muito propício para a comédia, no meio de Lucio Mauro, Chico Anísio, Agildo Ribeiro etc. Essas pessoas faziam parte da minha vida, estavam na sala da minha casa, e aquilo tudo era muito sedutor pra qualquer criança. Nós íamos muito a um hotel no caminho de Friburgo (RJ) e as colônias de férias tinham apresentações em que eu sempre era uma das estrelas, e posso dizer que essas foram minhas primeiras apresentações artísticas. Nessa mesma época, comecei a fazer aulas no Tablado (curso de teatro); essa foi minha maior escola. Lá fiz grandes amigos e parceiros profissionais que mantenho até hoje. Tive oportunidade de trabalhar com a própria Maria Clara Machado, fiz o último texto inédito dela. Do Tablado, eu me profissionalizei já aos 17 anos. No final de 2011, faço 20 anos de carreira.
Educação Pública - Como surgiu a ideia de fazer uma peça sobre clichês? Como você se encantou por ela?
Lucio Mauro Filho - Foi exatamente isso que aconteceu, eu me encantei pelo tema de Clichê. Porque, na verdade, o autor (Marcelo Pedreira), o diretor (Rubens Camelo) e eu tínhamos outro projeto: Sexy Times, um monólogo sobre o guru do sexo, que ainda não foi realizado por conta de muita burocracia para captação de recursos. No meio de 2010, recebi o texto do Pedreira, que pediu para eu ver como a gente conseguiria colocar comédia nele e, inclusive, uma indicação de ator. Passado um tempo, comecei a ler o texto e nem via muito teatro, mas fui me interessando cada vez mais. Quando acabei de ler, eu estava encantado. Fiquei pensando o quanto a gente usa clichê, o quanto eu sou clichê, o quanto todo mundo é clichê (risos) e que, se eu conseguisse produzir nas pessoas o que o texto produziu em mim, isso já seria uma bênção. Passou mais um tempo, encontrei o Pedreira e disse que a gente tinha que fazer o Clichê,mesmo antes de Sexy Times e mesmo sem dinheiro. O Camelo leu o texto, também ficou encantado e começamos a ensaiar todos os dias. Depois de duas semanas, tínhamos feito doze ensaios e montamos a peça para janeiro. E teatro é isso. Muita burocracia foi tornando o teatro uma coisa cara, e não é pra ser assim. Não temos patrocínio, mas a peça está sendo um sucesso. Utilizando um clichê, não vamos dar um passo maior que a perna, e estamos fazendo tudo aos poucos. A peça ia ficar em cartaz até final de fevereiro – e já vai ficar até o final de março.
Educação Pública - No espetáculo, você fala que o clichê é uma preguiça linguística e que respostas prontas impedem o pensamento. Fale um pouco sobre isso e cite alguns exemplos.
Lucio Mauro Filho - A resposta pronta tem a sua utilidade. A peça não demoniza o clichê, ela coloca quando ele é válido, quando é uma ferramenta a favor e quando joga contra. Então, por exemplo, as respostas prontas, os pensamentos pré-formulados funcionam para os negociadores, contratantes, para manda-chuvas em geral, ou seja, para quem não pode se envolver e precisa ser direto. Por exemplo, você está sendo demitido porque estamos cortando gastos. Nessas horas, o clichê é válido. Mas, quando você está discutindo a relação com alguém, aí o clichê entra num terreno delicado, porque você precisa aprofundar a conversa, é preciso ultrapassar o clichê e atingir o âmago da questão. Se você ficar usando essas expressões, pode estar sendo superficial e não ser compreendido. A outra pessoa, então, se sente desprestigiada, magoada, porque falta sinceridade. Então, essa é a grande brincadeira da peça, mostrar a utilidade e o ridículo do clichê.
Educação Pública - O clichê pode proporcionar uma vida confortável, pode preencher um vazio, pode ajudar a pessoa a se integrar a um contexto ou a um grupo. Na peça, você fala da massificação de uma civilização. Isso seria o uso de um discurso único, de uma padronização sem que as pessoas se deem conta disso?
Lucio Mauro Filho - As frases prontas vão sendo tão desgastadas que, num determinado momento, elas se vulgarizam. Essas expressões começam a se desvirtuar de maneira que nem se imagina, até mesmo pelo uso errado do português, como é o caso da expressão “cuspido e escarrado”, que tem sua origem em “esculpido em carrara” (tipo de mármore utilizado como matéria-prima para esculturas que ficavam perfeitas devido à sua delicadeza). Quer dizer, a origem da expressão é nobre, mas vira uma coisa nojenta (risos). Nesses casos, a gente está deixando de elaborar o pensamento de uma maneira melhor; isso acaba padronizando e colocando as pessoas numa mesma estante. Pode até parecer uma paranoia, mas será que não há um interesse de alguns detentores do conhecimento para que as pessoas parem de pensar e passem a ter um comportamento robotizado? E esse comportamento leva inevitavelmente ao empobrecimento do pensamento, que dá margem a um discurso único etc. Qual era uma das grandes críticas ao jeito de se comunicar do ex-presidente Lula? Na esperteza e na inteligência que ele tem, vai colocando tudo de maneira mais simples e fazendo com que o povo deixe de pensar. Trata-se de uma coisa maior. De acordo com o jeito de se expressar do presidente, o povo pensava: “ah, está tudo bem. Ele sabe o que está fazendo”. O povo foi se espelhando em alguém que teve uma vida parecida com a dele. Mas, nessa simplicidade, há muita inteligência. O jeito dele dá a falsa impressão de não ter tido muito estudo, quando na verdade ele é um grande estudioso.
Educação Pública – Usados em textos jornalísticos, em anúncios publicitários, em letras de música, em conversas formais e informais... Os clichês podem aparecer em qualquer situação, sendo úteis ou inúteis. Para chamar a atenção do público, ao anunciar uma matéria de jornal, ele pode ser útil, mas fazer uso de antigos clichês, por exemplo, em sala de aula, pode afastar professores e alunos. Dizer ao aluno que ele está confundindo liberdade com libertinagem pode atrair o ridículo e não o respeito. O que você pensa sobre isso?
Lucio Mauro Filho - O clichê pode ser usado como uma ferramenta para que se saiba em que terreno está se pisando. Muitas vezes, quanto se faz uma citação de um autor antigo que, aparentemente, é mais rebuscada, pode ser a citação de um clichê de época. Com relação aos professores, eu acho que existem dois lados, porque tem professor que gosta de ser ridicularizado. Eu acho que isso é uma tática. Para alguns menos experientes, isso pode ser uma falta de esperteza em não encontrar uma expressão que o aluno possa entender. Mas outros mais experientes fazem questão de que o aluno não entenda, porque essa é uma forma de ele se manter num patamar acima e também de manter a curiosidade do aluno (por que ele disse aquilo? O que ele quis dizer com isso?). E colocar uma pulga atrás da orelha do aluno, deixá-lo com o rabo entre as pernas também é uma forma de manter a autoridade. Dependendo do que o professor fale, o aluno não sabe se ele fez um elogio ou uma crítica. Assim, o professor continua com o poder e ainda promove a curiosidade. E os professores fazem parte de uma pequena parcela dos que sabem usar os clichês.
Educação Pública - Na busca pela originalidade, nós vamos nos repetindo e dando uma nova roupagem ao que já existe. Na sua opinião, ainda é possível ser original ou a própria busca já faz a originalidade ir por água abaixo?
Lucio Mauro Filho - Eu acho que ainda é possível ser original, sim, senão não teria sentido viver. Mesmo nos dias de hoje, em que temos tantas ferramentas, é possível ser original. A própria evolução tecnológica nos dá mais possibilidades. Se pensarmos que até três anos atrás não tínhamos ferramentas como o Twitter; e quantas coisas originais já surgiram graças a ferramentas como essa? Eu acho que a originalidade faz parte da evolução do ser humano. Tudo bem que a cada dia fica mais difícil ser original, é como encontrar agulha no palheiro, mas é possível. É bom lembrar que a originalidade hoje dura menos tempo do que antes, porque ela é tratada de outra forma. Hoje em dia, você tem mais acesso à fonte original, que por sua vez fica mais preocupada em guardar suas informações. Antigamente, os inventores ficavam mais protegidos. Por outro lado, a gente também não tem certeza da fonte do que já foi considerado original. Shakespeare pode ser considerado um dos maiores remixers da história (risos), porque não sei se alguma história dele foi realmente original. Ele foi misturando alhos e bugalhos e deu certo.
Educação Pública - No final do espetáculo, você sugere a reflexão sobre uma subversão linguística. Fale sobre isso.
Lucio Mauro Filho - A subversão linguística acaba dando a possibilidade de você chegar à originalidade. Porque você pode pegar um chavão, algo com que as pessoas estejam extremamente acostumadas, e ainda assim ser original. E acho que um dos melhores exemplos que cito na peça é: “da onde menos se espera é da onde não vem p... nenhuma”. É uma desconstrução dos clichês. A subversão linguística vem como uma proposta de antídoto para essa paralisia do clichê. Porque há também a possibilidade de subverter o clichê e chegar a uma frase que as pessoas também entendam. Até para mostrar também que o clichê não é indestrutível.
Educação Pública - Falando em chavões, lembramos do “humor de bordão”, muito usado em programas como o Zorra Total, que hoje é bastante criticado e chamado de alienador e superficial; ora dizem que é o reflexo de um povo, que é o tipo de humor que o povo gosta; em outros momentos, dizem que isso desconstrói uma sociedade... Mas o que não se pode negar é que todo humor tem sua inteligência. Como você vê esse tipo de humor que, aliás, é uma das suas “escolas”?
Lucio Mauro Filho - Eu acho que é um conjunto de fatores. Esse tipo de humor é um painel da sociedade, sim. O povo gosta, sim. Ele representa a origem da nossa comédia brasileira, e dali fomos para o besteirol, para a TV Pirata, chegamos até A Grande Família etc. É o tipo de humor que você pode ver com vários olhos. No caso da Zorra Total, estamos falando de um programa que está há 13 anos no ar, nas noites de sábado. E, como celeiro de comediantes, não existe outro programa que chegue aos pés do Zorra Total. O povo gosta e ponto. Isso não se discute. Eu me considero um elo de ligação entre essa comédia que se fazia nos anos 1940, 1950 e a nova comédia. Quando eu nasci, papai tinha 50 anos e isso me fez experimentar coisas que não eram da minha geração. Eu acho que consigo surfar na onda da comédia antiga – da chanchada, da caricatura, da careta – e na onda da minha geração, que traz um humor mais refinado, mais cínico, mais irônico. Então eu acho que quem reclama desse tipo de humor como o do Zorra está só virando as costas pro passado.
Educação Pública – E quanto a seus outros trabalhos? Fale um pouco sobre eles.
Lucio Mauro Filho - Agora o Sexy Times vai ter que esperar, porque o Clichê foi uma surpresa agradável e está gerando frutos. A gente inclusive se preparou para que ele não gerasse frutos, mas gerou. E estamos num momento de descobrir como dar o próximo passo. A gente pensa em viajar com a peça. Além disso, estou nos estúdios dublando o filme Kung Fu Panda 2, que estreia no dia 10 de junho (é a segunda vez que o ator dá vida à versão em português do personagem Po); A Grande Família (em que ator interpreta o personagem Tuco) volta a ser gravada no final de fevereiro. Em 2011, o programa faz 11 anos; fora isso, tem a peça que eu escrevi para o Marcelo Serrado, Não existe mulher difícil, que estava no Rio e vai agora para São Paulo.
Educação Pública - Qual é sua relação com a música? Quais são seus projetos nessa área?
Lucio Mauro Filho - Com relação à música, eu tenho viajado com o Bailinho – festa com músicas variadas que percorre o país –, e tenho feito o evento também no Rio, fazendo uma parceria com o Rodrigo Penna, um grande parceiro. O evento tem atraído público como 2 mil pessoas no píer Mauá, por exemplo. Meu lado musical tem tido essa válvula de escape com o Bailinho. Eu sempre tive o lado musical como uma possibilidade mesmo. A música sempre me interessou. Eu tocava violão desde muito cedo etc. A coisa de ser DJ me acompanha desde que me entendo por gente, minhas primeiras lembranças musicais são da disco music. Meu aniversário de 11 anos e o de 13 anos da minha irmã Luly foram na boate Vogue. Aquela foi a primeira vez que teve aniversário de criança numa boate do Rio (risos). Nós fomos precursores. Na adolescência, tive aparelhagem e fazia festinhas. Depois, veio a época dos CDs e continuei tocando na noite. Conheci minha mulher, Cintia Oliveira, que fazia as badaladas festas do Ricardo Amaral. Chegou uma hora em que ficou inevitável que eu criasse minha própria festa. Toquei na boate People, na Baronete... E acabei me tornando um DJ semiprofissional.
Educação Pública - Falando ainda de originalidade e criatividade, você tem dois filhos (de 5 e 7 anos) e deve se preocupar com a educação atual. O que você acha da postura dos educadores de hoje e o que espera deles?
Lucio Mauro Filho - O estimulo à criatividade foi um dos parâmetros para a escolha da escola onde meus filhos estudam, a Escola Sá Pereira, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Eu acho que a escola (como instituição) perdeu o prumo e agora está tentando se encontrar. A escola dos meus filhos vai mais para o lado construtivista, de muita interação, privilegia o lado da criatividade, e eu acho que para dois filhos de artista isso seria natural. Tem pais que, mesmo com os filhos nessa escola, ficam questionando o tipo de ensino, preocupados com as crianças não estarem preparadas para o mercado de trabalho e tal... Eu acho que essas pessoas continuam acreditando que a educação é feita só na sala de aula. Mas acho que se você não encontrar um tempo para educar seu filho também dentro de casa e para dar a sua parcela de contribuição, não tem jeito: ninguém educa seu filho por você. Então, nenhuma escola é perfeita, e, se na escola onde meus filhos estão tem um lado mais frágil, e eu estou satisfeito com os outros lados oferecidos, é esse lado que eu quero compensar. Eu acho que a escola e os pais são uma equipe. Você tem que conversar com o professor, com o coordenador, com o diretor da escola, tem que conhecer os coleguinhas. A educação é de todos e para todos. Eu acho que os educadores também têm que começar a despertar para esse lado. Eles não podem ser paus-mandados, eles têm que estimular a criatividade e o convívio dos pais na escola. Isso é fundamental. Escola que acha que pode resolver o problema sozinha pode até criar uma máquina de aprender, mas eu não quero que meu filho seja uma máquina, eu quero que ele tenha inclusive a possibilidade da dúvida. Então eu acho que a nova escola está sendo criada, e é importante que os educadores olhem para o lado humano e para o trabalho em conjunto. Educar é transformar seu filho num cidadão livre e com possibilidades de escolha.
22/02/2011
Publicado em 22 de fevereiro de 2011
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