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O leitor brasileiro na visão de nossos escritores clássicos
Juliana Carvalho
Professora e redatora
Em continuação ao tema explorado no minicurso Literatura, Ensino e Divulgação Cultural, oferecido pela professora doutora Muna Omram na UFF, sobre o qual falamos aqui na edição de 4 de janeiro de 2011, a formação do leitor brasileiro mereceu especial atenção. Para Antonio Candido, faz pouco tempo que as obras nacionais trabalham com base no sistema literário autor – obra – público. Para o historiador, a literatura deve valorizar um esquema comunicativo mais completo, que não isole o autor em sua produção, mas coloque-o em diálogo com outros autores, adeptos ou não da mesma tendência. Durante muito tempo, o que vimos foi uma produção literária mais ou menos consciente de seu papel e que renegava o leitor a um papel secundário. Para esses autores, o papel do leitor era apenas ocupar um lugar de destaque como receptor privilegiado dessas obras.
Formação do público leitor no Brasil
A figura do leitor começa a aparecer na produção literária nacional no Romantismo. Os autores românticos se posicionavam como professores desses leitores. Em Memórias de um Sargento de Milícias, Manuel Antônio de Almeida parece conduzir o leitor pela mão, sempre recapitulando uma ação do capítulo anterior:
Os leitores devem estar lembrados de que o nosso antigo conhecido, de quem por algum tempo nos temos esquecido, o Leonardo Pataca, apertara-se em laços amorosos com a filha da comadre e que com ela vivia em santa e honesta paz. Pois este viver santo e honesto deu, em tempo oportuno, o seu resultado. Chiquinha (era este o nome da filha da comadre) achou-se de esperanças e pronta a dar à luz.
José de Alencar fornece ao leitor uma formação engajada com o projeto político e ideológico do Romantismo na primeira geração, representado pelo indianismo. Esse projeto pretendia, por meio da literatura, fundamentar os alicerces para a construção de uma nação ideal:
O que melhor do que a história de Peri para despertar o furor nacionalista que parecia adormecido no inconsciente coletivo — na juventude brasileira que ansiosa aguardava a chegada do trem transportando as páginas folhetinescas? O sentimento solidário agrupava jovens para uma leitura em voz alta a favor de quem não possuía um exemplar.
A mais conhecida razão para a escolha do índio como herói nacional foi a resistência que impuseram aos portugueses. Mas José de Alencar tenta desmentir isso nas primeiras linhas de Iracema. A luta apresentada quando Iracema se encontra com o branco é breve e apenas consequência de um reflexo de defesa contra um estranho. Mas ao disparar sua flecha e ferir o guerreiro, logo sente remorso. Este, ao contrário, “de primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida” .
Um pouco mais distante dos temas políticos, Machado de Assis tomou para si a missão de fornecer cultura ao leitor. São muitos exemplos, mas o conto Missa do Galo apresenta isso de forma bem clara. Observe o trecho em que Nogueira fala a Conceição (e ao leitor) sobre o romance que está lendo:
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução, creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas (...).
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
— Já leu A Moreninha?
— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns.
Já o conto A Cartomante tem início com uma citação de Shakespeare:
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
Além de sugerir listas de livros, peças, concertos e obras culturais às quais o indivíduo deve ter acesso para adquirir formação ampla, outro recurso usado por Machado de Assis é aproximar-se do leitor, fazendo-o sentir-se parte da história. Em Dom Casmurro, no capítulo 10, chama o leitor de amigo para convencê-lo:
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição, cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim.
Ao ser convidado a compartilhar os pensamentos e atitudes do narrador, o leitor é levado a refletir e tomar partido na narrativa. No caso da história narrada por Bentinho, o leitor decide se acredita na veracidade dos fatos ou não. Machado tenta claramente seduzir o leitor chamando-o de amigo ou tratando-o com cordialidade, mas o considera inapto para entender as sutilezas da linguagem. Talvez por isso Capitu não tenha sido condenada pelo autor, mas sim pelo público.
Shakespeare volta a ser referência, se observarmos a estrutura e as semelhanças entre os perfis de Bentinho e Otelo. Bentinho, assim como Otelo, também reflete desajuste social, sendo descrito como um sujeito manipulado e sem decisões próprias. Fruto da autoridade matriarcal e da acomodação burguesa, vê em Capitu uma figura cuja força, exuberância e firmeza de atitude são capazes de subjugar sua própria identidade. Ambos viram como solução para a suposta infidelidade a morte de suas esposas. Otelo, em sua personalidade mais sanguínea, parte para o ato evidente, estrangulando Desdêmona, reparando sua honra numa atitude totalmente movida pela emoção, chegando à insanidade. Já Bentinho, um homem que prezava as convenções sociais, buscou solução mais racional, embora covarde, em ignorar Capitu, retirando-a aos poucos de seu convívio. O assassinato pode ser entendido na própria narrativa, em que Dom Casmurro, quase que por descuido, deixa escapar que ela morreu na Europa, sem uma observação mais relevante, distante dele e já há muito de seu coração.
No século XX, Lima Barreto cria uma personagem leitora, o major Policarpo Quaresma, que se eleva quando transforma em ideal o conteúdo de suas leituras. Ainda assim, o autor apenas indica uma lista extensa de obras, sem oferecer nenhuma explicação sobre sua importância. Isso evidencia o desprezo ao leitor presente na literatura brasileira em geral até então.
Mário de Andrade, em seu livro Amar, verbo intransitivo, conta com a ajuda do leitor na medida em que este, ao ler um texto, estabelece conexões implícitas, preenche lacunas, faz deduções, comprova suposições, e tudo isso significa o uso de um conhecimento de mundo em geral e das “regras” literárias em particular. Partindo desse princípio, o autor constrói uma obra cheia de lacunas, em que é solicitado o trabalho do leitor para interpretá-las. Apesar disso, ainda não há diálogo. O leitor realiza seu trabalho de interpretação já com base nas pistas oferecidas pelo autor, que direciona a leitura.
O conceito de metanarrativa permite ao autor guiar o leitor por meio de uma sucessão de lacunas ao fim das quais ele terá reconstruído o texto segundo a intenção do autor. A obra apresenta pistas que balizam as interpretações. A consciência de que há uma regra de montagem é que nos leva a fazê-lo corretamente.
A obra apresenta um narrador onipresente e onisciente, que interrompe a história para comunicar ao leitor que o que ali está em palavras não é algo inventado, mas efetivamente um relato. O leitor, a par das impossibilidades típicas do relato, como a onisciência e onipresença autoral, aceita a tarefa de contextualizar a ficção e torná-la verossímil. Existe uma intenção clara que solicita a cooperação do leitor, mas não se predispõe a dividir com ele o trabalho de autoria.
Talvez o primeiro autor dentro da literatura brasileira que realmente convide o leitor para ajudá-lo na construção de sua obra é Graciliano Ramos. São Bernardo, aclamado no meio acadêmico, apresenta um narrador que dialoga com o leitor com base em sua maturidade. O leitor passa a ser produtor e operário, com base no sistema de produção capitalista. Desde o início de São Bernardo, o protagonista compartilha com o leitor o processo de elaboração da obra, questiona sobre a linguagem a ser empregada, a divisão dos capítulos. Esses traços metalinguísticos tornam a obra ainda mais complexa; esse estilo pode oferecer pistas para compreender Paulo Honório, que compartilha conosco suas memórias. Já no início do livro percebemos a intenção do autor: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho”. Paulo Honório convida o leitor para construir a narrativa junto com ele, demonstrando solidariedade e reconhecendo a necessidade de diálogo, entretanto sem desprezá-lo ou diminuí-lo.
A partir da obra de Graciliano Ramos, outros autores passaram a respeitar a independência do leitor, já que somos nós que produzimos a leitura, construímos o personagem e geramos sentido, independente da criação do autor. Bastava aos autores apenas o reconhecimento e a elaboração da obra a partir dessa perspectiva.
Publicado em 1º de março de 2011
Publicado em 01 de março de 2011
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