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Cenas cotidianas de racismo no Brasil
Mariana Cruz
Nós, brasileiros, vivemos dizendo aos quatro cantos que nosso país não é racista, que somos todos descendentes de negros, brancos e índios. São sentenças comuns de escutarmos por aí. O fato de sermos a terra do samba, do futebol e da feijoada reforça ainda mais a ideia de que moramos em um lugar onde, de fato, a democracia racial existe. Tal discurso funciona bem na teoria. Na prática, porém, se tivermos um olhar mais atento para algumas cenas do cotidiano, que muitas vezes passam despercebidas aos nossos olhos – seja pelo costume ou por acontecerem em forma de “brincadeira” – é fácil perceber que essa tão aclamada convivência pacífica entre as raças não é tão harmônica assim.
Nesta semana, a caminho do trabalho presenciei uma dessas cenas urbanas que alguns podem considerar um acaso, outros não. Entrei no ônibus. Todos os lugares ocupados e três pessoas de pé. Ao passar a roleta percebi que havia um lugar vago, bem na parte central do coletivo, na fileira do corredor. Na janela estava uma senhorinha negra vestida com trajes simples. Dirigi-me para lá, já pensando que o assento devia estar furado, molhado, com chiclete. Mas estava limpo. Parecia que o único motivo de estar vazio era a cor da mulher. Pode ter sido uma infeliz coincidência – ou não. Mas como já me deparei com situações semelhantes (de o último lugar vago ser ao lado de uma pessoa negra) outras vezes, creio não ser mera coincidência, e sim uma atitude racista dos passageiros.
Ainda sobre ônibus. Uma amiga negra contou-me que, durante uma revista policial no ônibus em que estava, somente ela e outro negro foram “premiados”. Ao interpelar o policial sobre o motivo de ter revistado apenas negros, ele se esquivou dizendo que poderiam ser revistadas apenas duas pessoas por ônibus. Isso, no entanto, nada respondeu à sua pergunta. O motivo de ter optado por revistar justamente dois negros, e não um negro e um branco, ou mesmo dois brancos, não foi esclarecido. Outra “coincidência” dessas ocorre nas portas giratórias dos bancos; por que será que elas muitas vezes travam quando um negro está passando? Sobretudo se for um garotão. Será que se for um garotão louro de olhos azuis a porta trava também?
Nas discussões – sérias ou de brincadeira – entre os meninos na escola onde dou aula, quando um dos envolvidos na contenda é negro, os xingamentos geralmente fazem referência à cor da sua pele: “seu macaco”; “só podia ser preto mesmo” (isso ocorre mesmo quando aquele que xinga é também negro). Mas quando a pessoa xingada é branca, os desaforos são mais gerais: “seu babaca”; “otário”; “mané”. Por que não chamá-lo de “branquelo”, por exemplo? Talvez porque esse adjetivo, por mais que seja pejorativo, parece não ter a carga que os termos utilizados para ofender os negros têm. Um peso que vem desde a época da escravidão e se arrasta como as correntes e os grilhões que aprisionavam aqueles seres humanos feitos cativos por homens, estes, sim, verdadeiros animais. Parece que aquele sofrimento, que devia ser motivo de vergonha de todos os brasileiros, não foi o suficiente, e até hoje os negros pagam um preso alto pela sua alforria.
E o que dizer das pérolas que, vez ou outra, alguém que se diz “nem um pouco racista” solta? São frases tais como “ele é negro, mas é ótima pessoa”; e daqueles que assumem sua ascendência negra com a infeliz sentença “eu tenho um pé na cozinha”; isso sem falar de lamentáveis expressões como ”negro de alma branca” (o que eu, do alto da minha ignorância acerca assuntos metafísicos, sempre imaginei que, se alma existe de fato, ela deve ser transparente, ou não?).
Nem mesmo os famosos escapam do preconceito racial aqui. Chico Buarque, num vídeo no youtube, fala que só no Brasil ele é visto como branco, e que isso é um equívoco, pois, se formos observar nossa árvore genealógica, é impossível que, em se tratando de um brasileiro de gerações, ele tenha apenas ascendentes brancos. Além disso, Chico relata as agressões verbais em forma de “gracinha” que ouve nas ruas em referência ao fato de uma de suas filhas ser casada com Carlinhos Brown, ou seja, uma mulher que as pessoas aqui no Brasil consideram branca ser casada com um negro. Além de agressivas, tais perversidades, em forma de piada, mostram evidentemente alto grau de ignorância por parte de quem as profere.
Sei não, mas todos esses exemplos mostram que esse papo de o Brasil não ser um país racista parece coisa para inglês ver.
Publicado em 03/01/2012
Publicado em 03 de janeiro de 2012
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