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Meandros do entremeio com o vaqueiro Mariano de Guimarães Rosa

Carolina Natale Toti

Umas palavras intensas, diferentes, abrem de
espaços a vastidão onde o real furta à fábula.

(Guimarães Rosa, 1985, p. 95)

O “entremeio” do narrador “com o vaqueiro Mariano” aponta logo de início para uma situação intermediária. Remete a um espaço, um tempo, uma circunstância entre dois limites. O encontro de um vaqueiro, habitante da Nhecolândia, com um pesquisador sem nome, estranho ao local, que narra sua estada no Pantanal do Mato Grosso, em companhia de Mariano. Na definição do Dicionário Michaelis (1998), a palavra “entremeio” também significa “a região do corpo da vaca entre as nádegas e as coxas, atrás do úbere” – região bastante fértil, que pode ser interpretada como uma metáfora do caráter frutífero da interação entre tradições distintas e, neste caso, das trocas culturais entre um pantaneiro pertencente a uma cultura predominantemente oral e um citadino letrado.

A primeira observação que o narrador faz sobre Mariano é uma apreciação de como a imagem deste cumpre a representação comum construída pela literatura a respeito dos vaqueiros. Afirma em seguida, no entanto, que essa aparência estagnada, “fácil da pequena lenda” (ROSA, 1985, p. 93) formada pelos letrados, é incapaz de reter em si o “tão de carne-e-osso” (ROSA, 1985, p. 93) Mariano. Trata-se de um narrador que, construindo uma representação textual do pantaneiro, é consciente do lugar comum traçado sobre esse tema pelos escritores em geral. É consciente também, e principalmente, da impossibilidade de um texto encerrar uma existência, da insuficiência da palavra ante a experiência. O pesquisador descreve em seguida algumas de suas impressões sobre a pessoa do vaqueiro: “denso, presente, almado (...) crepitante de calor humano” (ROSA, 1985, p. 93) – impressões essas tão parcialmente comunicáveis pela escrita e tão simples de serem apreendidas no contato imediato.

Em primeira pessoa, o narrador descreve seus momentos na Fazenda Firme, representando a fala de Mariano, empregando uma linguagem singular – tão frequente em Guimarães Rosa – que se pode caracterizar como uma prosa poética permeada pela ficcionalização da peculiar linguagem do pantaneiro ou de seu contexto. O pesquisador diz ao leitor o motivo que o levou até ali: “Eu tinha precisão, de aprender mais, sobre a alma dos bois” (ROSA, 1985, p. 93). Para isso, o acervo ao qual recorre é a memória do vaqueiro: “instigava-o a fornecer-me fatos, casos, cenas” (ROSA, 1985, p. 93). O entrevistador narra o que Mariano lhe conta sobre os bois, por vezes inserindo a fala direta do vaqueiro. Suas perguntas se mostram implícitas na fala do entrevistado, e esta é sempre sucedida por interpretações do narrador. Este, mediando a fala do vaqueiro, reproduz no texto algumas características da oralidade, às vezes incluindo erros gramaticais, imprecisões, redundâncias, ambiguidades e repetições “na estringência de mugidos: fino, grosso, longe, perto, forte, fraco, fino, grosso...” (ROSA, 1985, p. 94), causando no leitor a impressão de um contato mais próximo com a fala de Mariano.

São inúmeras as impressões relatadas pelo pesquisador a respeito do pantaneiro. Suas descrições pormenorizadas expressam um ponto de vista marcadamente ilustrado sobre o vaqueiro rústico – “homem entre o boi xucro e permanentes verdes” (ROSA, 1985, p. 97) – e a relação algo tensa entre ambos. Sentados, conversando, o narrador observa a postura de Mariano – com as mãos estacadas sobre a mesa – e compara-o a “um bicho em vigia” (ROSA, 1985, p. 93). Em seguida, nota a expressão do vaqueiro, que, sendo acostumado ao trabalho braçal, “tomava ar de seriedade, meio em excesso” (ROSA, 1985, p. 93), quando empenhado num exercício reflexivo. Repara no olhar que o pantaneiro lhe dirige, revelando sentimentos ambivalentes: ao mesmo tempo que é atencioso, demonstra cautela; aparenta tranquilidade e ao mesmo tempo desconfiança.

No decorrer do conto, o leitor fica sabendo de todo um extenso conhecimento do vaqueiro – que certamente também é o de seu grupo – a respeito da relação imbricada dos bois com o espaço e as condições climáticas, o que o permite fazer deduções, previsões e tomar decisões indispensáveis para a sobrevivência da comunidade. Desse modo, é possível perceber a inerência existente entre espaço, tempo, animais e humanos – algo tão distante e desconhecido para um habitante da cidade, acostumado a uma estrutura cada vez mais alienante. Antonio Candido, no texto Estímulos da Criação Literária, servindo-se de algumas proposições de uma pesquisa sobre os nuer – nativos das regiões do Alto Nilo, que sobrevivem principalmente da criação de gado –, faz alguns comentários que podem ser aplicados ao conto de que se trata ou mais precisamente sobre os vaqueiros:

a interpretação do mundo se liga à presença do gado; e este é de tal modo importante para a sobrevivência do grupo que passa a constituir um aspecto decisivo da sensibilidade individual. (...) Não estamos mais considerando o traço social como assunto; estamos interpretando-o como componente da estrutura das obras (CANDIDO, 2000, p. 55).

A proximidade de Mariano com os bois faz com que os considere individualmente, atribuindo-lhes nomes, percebendo comportamentos e personalidades específicas, afeiçoando-se particularmente com cada animal. A partir de alguns comportamentos específicos do rebanho, Mariano sabe quando um bezerro nascituro é macho ou fêmea, quando haverá temporal na madrugada, quando a chuva está quente, quando haverá eclipse. Em lugares desabitados no sertão, Mariano sabe distinguir, pelo cheiro, se por ali passou um touro, um boi ou uma vaca. Reconhece os odores específicos de cada rês e calcula até mesmo quantas horas o animal permaneceu ali. “Senti, pelo cheiro. A gente sabe” (ROSA, 1985, p. 94). Deixa claro que se trata de um conhecimento comum ao grupo. O narrador sente que o vaqueiro se orgulha de “seu poder de rastreador” (ROSA, 1985, p. 94). Num momento em que, durante a entrevista, o pesquisador demonstra estar impressionado com o excesso de trabalho no cotidiano do vaqueiro, este lhe responde: “– Aqui, o gado é que cria a gente...” (ROSA, 1985, p. 96). Antonio Candido diz que “boa parte da criação poética do homem primitivo se liga ao drama permanente da sobrevivência imediata do grupo pela exploração do meio” (CANDIDO, 2000, p. 51).

Em geral as narrativas de Mariano envolvem problemas e apuros que vivencia frequentemente com a criação do gado, sempre preocupadas com as circunstâncias que motivam as doenças dos animais – rebanhos que ficam doentes quando chegam à estrada; touros que morrem de raiva devido a maus-tratos; cavalos que ferem as patas após semanas de caminhada. São várias as situações contadas envolvendo a reprodução, a vida e a morte do gado e de outros animais, as variações do tempo e do clima; as enchentes, as secas, as queimadas; além de uma constante e intensa descrição do espaço, com todo um vocabulário particular referente aos animais, à vegetação e aos instrumentos de trabalho.

visto que o indivíduo (...) deve ser integrado – essa integração devendo ser constantemente confirmada – a um espaço cultural e social determinado (...), o que está em jogo para a comunidade é o ser e o permanecer. E é por essa razão que (...) praticamente toda a literatura oral vai descrever o espaço e as regras da construção comunitária, constantemente redizendo-as e relembrando-as. A literatura oral é a expressão dessas regras, das exigências e saberes da memória da comunidade, e, ao mesmo tempo, é ela que as instaura, as ratifica, é ela que é a memória (PELEN, 2001, p. 55).

Tratando-se de um pesquisador que delimita previamente o recorte de sua investigação, escolhendo um informante, interpretando sua fala e seu comportamento, orientando a entrevista e reduzindo todo esse processo a um texto em que ele é o narrador, o que resulta disto é uma pasteurização de toda a complexidade do vaqueiro e de seu contexto. Segundo Pacheco,

el peso de la perspectiva modernizada, ilustrada, se impone sobre el de las voces y perspectivas de los personajes populares, reduciéndolos a ‘materia prima’ regional, relativizándolos como objeto de observación, estúdio y reflexión, ‘filtrándolos’, desde una racionalidad que corresponde, sin duda, a la del productor del texto ficcional y muy probablemente a la de sus lectores (1992, p. 126).

Enquanto Mariano conta suas experiências para o entrevistador, este se deleita em vê-lo rememorar, imaginando os sentimentos que o vaqueiro revive no momento em que relata. Dessa forma, o letrado experimenta a vivência do outro a distância:

quando estacava, para tomar fôlego ou recordação, fechava os olhos. Prazia ver esse modo, em que eu o imaginava tornado a sentir-se cavaleiro sozinho, reposto no livre da pradaria e suflado de seu rude bafo pastoril (ROSA, 1985, p. 95).

E qual seria a dimensão do abismo que separa a nós, leitores, da experiência de Mariano? O contato que temos afinal com a intensidade do informante, com o que Zumthor chama de “esta pulsão do ser na linguagem” (2005, p. 69), é extremamente debilitado.

Há uma passagem muito rica em que o narrador se dirige indiretamente ao vaqueiro, assemelhando-se antes a uma reflexão pessoal. Nesse trecho o pesquisador problematiza a sua própria posição e a de Mariano, bem como a condição da comunicação entre ambos e o próprio papel da narração. O letrado, que no início do conto já salientava a distância existente entre a palavra e a experiência, recoloca o problema agora de modo resoluto, afirmando que o que ele conhece de Mariano é apenas o contador de histórias. A substância, aquilo que é apreendido unicamente pela experiência pessoal, permanece intocada. Seu alcance se limita às aparências, ao que pode perceber com seus olhos e ouvidos, o que é transmitido pelo corpo de Mariano – seus olhares, seus gestos, seus tons de voz. Já na relação entre o iletrado e a sua comunidade, essas histórias são o que ordenam e tornam possível a sua própria conservação. O pesquisador é consciente disso e afirma que o ato de narrar – tratando-se do narrador iletrado, no caso o Mariano, e não no narrador do conto – não se reduz a uma dose de palavras que escorrem da língua do narrador; a narração antes constrói o narrador.

Te aprendo ao fácil, Zé Mariano, maior vaqueiro, sob vez de contador. A verdadeira parte, por quanto tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo poderás transmitir-me. O que a laranjeira não ensina ao limoeiro e que um boi não consegue dizer a outro boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, que dá trunfo à tua voz e tento às tuas mãos. Também as estórias não se desprendem apenas do narrador, sim o performam; narrar é resistir (ROSA, 1985, p. 98).

Narrar é resistir porque, aos grupos iletrados, essas histórias constituem parte substancial do cotidiano, funcionando em larga medida como o que organiza e mantém o conhecimento do grupo, estruturando seus modos de sobrevivência e possibilitando sua continuidade, enquanto na perspectiva do narrador do conto, Mariano é apreendido “sob vez de contador”, sendo desta forma um princípio de construção de conhecimento e de representação.

Em certo momento, o pesquisador parece se preocupar em explicar ao leitor uma fala do vaqueiro, esclarecendo-a antecipadamente e em seguida inserindo a fala direta deste, certamente pressupondo um leitor urbano, estranho ao meio. Trata-se do touruno; segundo Mariano: “O touruno guarda aquele modão de touro. O touruno é um touro que passou por desgosto muito grande...” (ROSA, 1985, p. 96). O narrador explica antes que estes são os animais que foram castrados, assumindo “manias perigosas” (ROSA, 1985, p. 96), ou seja, não deixaram de procurar as fêmeas; algo que, como conta o vaqueiro, “numa boiada, puxa desordem...” (ROSA, 1985, p. 96).

O recorte da pesquisa do narrador permanece orientando o desenrolar da entrevista, induzindo Mariano ao que exatamente deve contar: “Eu quis saber suas horas sofridas em afã maior, e ele foi narrando, compassado, umas sobressequentes estórias.” (ROSA, 1985, p. 96). Aqui o vaqueiro começa a falar sobre situações penosas que viveu na época da seca: um momento em que quase morreu, esbarrando de frente com um touro em meio a uma nuvem de poeira e terra; ou na época da enchente, em que perseguia dentro d’água parte do gado que havia escapado, e acabou vendo “um boi ficar louco” (ROSA, 1985, p. 97) – o animal estava sendo devorado por piranhas, que por sorte não atacaram o vaqueiro também. Estende-se ainda num longo relato sobre uma perigosa queimada, que por pouco não consome os homens e os animais, causando tumulto geral:

– Foi um choque de pôr juízo em doido: a gente se fechou com outro fogo aflito, dobrado e emendado, cravando o caminho todo, sem perdoar, nem um buraquinho solito, por onde se ir deixando boiada p’ra trás e fugir... Eu desacorçoei. Mas o guia gritou: ‘Agora é farofa ou fava. Vira, gente!’ Os bois já estavam torcendo nos cascos, desenveredando por onde podiam. P’ra cada um se cuidar, todos tinham de andar juntos (ROSA, 1985, p. 100).

Mariano descreve com detalhes o que aconteceu, como o grupo agia conforme o fogo avançava, o desespero de todos procurando alguma saída. Nem todos escapam, alguns animais acabam morrendo queimados: “Enxerguei boi frouxar paleta, desmanchar o quarto dianteiro, o osso despregar da carcaça e subir levantando o couro, e o boi, em vez de parar e deitar, seguia correndo (...) feito sombração.” (ROSA, 1985, p. 100). O tormento acaba quando o grupo alcança um terreno pantanoso. É interessante que, mesmo nessa situação, de iminente risco de vida, parece impossível o vaqueiro esquece os animais: “Não, que nós, os bois todos até, a gente tinha nascido...” (ROSA, 1985, p. 100).

O envolvimento de Mariano com cada um de seus animais é de tal forma acentuado que ele consegue reconhecer cada mugido, especificando o nome do animal que o emite. Ao pesquisador, a habilidade do vaqueiro parece incompreensível: “Mariano entra num gado, escolhe, aparta. Num rebanho estranho, nem sei que olhos o ajudam, com isso sempre custoso, e mais para as crias zebus, tão parecidas” (ROSA, 1985, p. 106). O narrador percebe que não somente o vaqueiro pode se orientar a partir do comportamento das vacas; estas também se portam conforme a movimentação de Mariano:

segui Mariano, que ia tocá-las, e elas sabiam, se movendo, que íamos abrir a porteira. Eram muitas, silenciosas; com a presença do vaqueiro, cessava, sem espera, a grande angústia mugibunda. A paz volvia a elas, como uma inércia doce (ROSA, 1985, p. 108).

O vaqueiro conta ao pesquisador alguns costumes próprios a determinadas vacas, destacando diversos nomes, características e situações, demonstrando maior afeição a algumas e justificando seus motivos. Sobre essa relação tão próxima, em que homens e animais se interpenetram, o narrador diz:

individuadas, meio perdido o instinto grande de rebanho. Para Mariano, entendo, elas são (...) quase pessoas, meio criaturas, meio cientes. Só elas têm nomes e recebem regras. (...) Com os homens se permeiam. (...) Dádiva e dependência. E as grandes vacas opacas respiram, confiadas, dentro da febril humanosfera, onde subjulgaram-nas a viver (ROSA, 1985, p. 112).

No início da terceira parte do conto, o narrador diz ao leitor: “Mariano ia mostrar-me, de verdade, como é que se tratam, sob o céu, bois e vaqueiros” (ROSA, 1985, p. 114). O vaqueiro e o pesquisador saem montados a cavalo. O primeiro guia, ensina e vigia o segundo sobre como se deve conduzir o animal. O narrador descreve todo o espaço: repara no pantaneiro, no céu, na mata, no chão, nas diversas aves, nas cores e odores. O aparecimento repentino de uma anhuma – ave “rainha do Pantanal” – leva Mariano a falar sobre o comportamento dos animais, relacionando-o às suas dificuldades na condição de vaqueiro, evidenciando novamente a estreita ligação entre toda a diversidade de seres existentes nesse espaço. Sobre a anhuma o pantaneiro diz:

sabem da gente, de uma distância, e dão esse grito: Evém aí! Evém aí! Os bichos todos aprendem e fogem logo, por compreender. Boi manheiro já fica esperando aviso. É praga p’ra gente vaqueiro (...). Tem vez (...) que essas estragam um dia da gente, quando é com gado arisco, que espirra só no ouvir conversa... (ROSA, 1985, p. 116-117).

Logo em seguida o narrador assiste a uma situação que parece lhe causar certo estranhamento. A facilidade com que Mariano identifica cada uma de suas reses, mesmo quando diante do gado reunido, dá ao pesquisador a impressão de que o vaqueiro consegue enxergar coisas que não estão ao alcance da visão humana. O comentário do narrador é significativo para que se perceba como se acentuam os limites da sua compreensão sobre o espaço em sua condição de estrangeiro e o quanto são distintas as percepções do citadino e do pantaneiro sobre a mesma circunstância. Mariano reconhece, além do próprio rebanho, o gado das fazendas vizinhas, identificando pelos detalhes qual rês pertence a qual fazenda. A situação vista pelo narrador se dá quando ele e o vaqueiro estão diante do gado amontoado, e Mariano percebe algo:

– Tem um que está sem o ‘sinal’. Vou ver se apronto...
Pensei impossível, para olhar humano, ter reparado qualquer coisa, mesmo o número de cabeças, na corrida e confusão. Mas Mariano lera os sinais – os sutis entalhes a faca, diferentes, conjugados, nas orelhas murchas, direita com esquerda: coice-de-porta e aparado, forquilha, figueira (...). E afirmou:
– Todos são daqui, só dois do Paraíso, e um da Alegria... (ROSA, 1985, p. 117).

Mariano está sempre muito atento e preocupado com seus problemas e necessidades. O pesquisador, a cavalo, compartilha por um momento os perigos cotidianos vivenciados pelo vaqueiro, lembrando de uma fala deste: “Cavalo pisa um furo de tatu, um pau, roda e caiu morto... Às vez, o vaqueiro morre também...”(ROSA, 1985, p. 118). Mas em geral o narrador parece um tanto inebriado com a paisagem, às vezes absorto em descrições românticas, encantado com os pássaros. E longe de não perceber a disparidade entre a sua visão e a do pantaneiro, ele o afirma, ao final de todo um parágrafo contemplando “o belo excesso de aves”:

e passavam casais de arara-azul – quase encostadas, cracassando – ou da arara-brava, verde, de voo muito dobrado. Mas Mariano preferia olhar os trechos mais fundos da invernada, falando de cenas da derradeira inundação:
– (...) Está vendo a porção de ossada, na beira do corixo? Ali, o gado triste, pesteado, se juntou p’ra morrer, na minguante de janeiro... (ROSA, 1985, p. 120).

Enquanto o narrador faz descrições minuciosas sobre todo o espaço, Mariano recorda situações recorrentes que implicam saberes nativos; conhecimentos fundamentalmente orientados pela preservação de toda a diversidade de espécies, constantemente preocupados com os modos de sobrevivência – as causas de morte, as doenças, os perigos, a defesa e a caça. Quando se depara com um bezerro que morreu de frio, o vaqueiro procura no defunto sinais de doenças que ameaçam o gado; depois vira o corpo, para facilitar a refeição dos corvos: “É sustento deles... (...). – Quem sabe, um dia vão fazer isso até comigo...” (ROSA, 1985, p. 122). Logo em seguida o narrador volta a descrever os pássaros...

Mariano se refere a determinados lugares isolados, “sem gente” (ROSA, 1985, p. 122), onde o gado é selvagem e não se deixa pegar. Sua fala contrasta a rusticidade e a dificuldade de sobrevivência nesses locais com a origem e a formação do pesquisador, evidenciando a consciência do vaqueiro sobre a disparidade estrutural existente entre cultura urbana e letrada do narrador e a cultura rústica dos pantaneiros que vivem em lugares desabitados: “P’ra lidar, lá, só homem corajado, quem tem calo na barriga e com coração que bate nas costas... Vaqueiro de lá é capaz de homem cidadão como o senhor nem entender a fala deles” (ROSA, 1985, p. 123).

Ao final do conto, vemos Mariano tentando laçar um touro bravo, e o pesquisador insistindo em voltar para casa. O primeiro cede e, na caminhada, o narrador retoma suas descrições. Sobre o vaqueiro, diz: “A roupa de Mariano era traje de luto, coisa de guerra” (ROSA, 1985, p. 126). Deparam-se em seguida com um bando de quero-queros – um casal resiste sobre seus ninhos, permanecendo no caminho dos cavalos, avançando ainda sobre estes. O pantaneiro se preocupa: “– Melhor a gente dar volta e deixar passarinho em paz. (...) Eles costumam fazer uma boiada destorcer p’ra um lado e quebrar rumo...” (ROSA, 1985, p. 127). Nesse momento, vemos a única vez, durante todo o conto, em que o narrador se dirige diretamente ao vaqueiro, respondendo: “– Melhor, sim, Mariano” (ROSA, 1985, p. 127).

Para o pantaneiro, a Nhecolândia e a oralidade de seu tempo fundamentam e possibilitam a existência de sua comunidade. Para o pesquisador, esse espaço e sua oralidade são fontes de saber, produção de conhecimento e de representação.

Referências

CANDIDO, A. Estímulos da Criação Literária. In: CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz/Publifolha, 2000.

FERNANDES, Frederico A. G. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. São Paulo: Ed. Unesp, 2007.

PACHECO, C. La ficcionalización de la oralidad cultural em la narrativa latinoamericana contemporánea. In: PACHECO, C. La comarca oral. Caracas: La Casa de Bello, 1992.

PELEN, Jean-Noël. Memória da literatura Oral. A dinâmica discursiva da literatura oral: reflexões sobre a noção de etnotexto. Trad. Maria T. Sampaio. História e oralidade (PUC-SP), v. 22, p. 49-77, 2001.

ROSA, João Guimarães. Entremeio com o vaqueiro Mariano. In: ROSA, João Guimarães. Estas estórias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

WEISZFLOG, Walter. Michaelis Português: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

ZUMTHOR, Paul. Presença da voz. In: ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Trad. Sônia Queiroz e Jerusa P. Ferreira. São Paulo: Ateliê, 2005.

Publicado em 03/01/2012

Publicado em 03 de janeiro de 2012

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