Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Pierre Lévy e o poder da palavra na cibercultura

Juliana Maria Carvalho

Professora e redatora

Em agosto de 2011, Pierre Lévy, filósofo e professor da Universidade de Quebec, esteve no Oi Futuro do Flamengo para falar sobre o poder da palavra na cibercultura. Entusiasta das possibilidades cognitivas da internet, Lévy é um importante pesquisador do mundo virtual e das relações de comunidades em rede desde o começo dos anos 1990, quando propôs o conceito de “inteligência coletiva” em um momento em que a internet comercial ainda engatinhava. Ele é uma referência, um estudioso cujas pesquisas ajudaram (e muito) no desenvolvimento de ferramentas fundamentais na web utilizadas por todos nós. É, ainda, autor de clássicos como Cibercultura e O que é o virtual?

Lévy começou a palestra citando teorias sobre a criação de um cérebro global virtual. Para ele, esse cérebro global já existe e é composto por todas as pessoas que estão juntas se comunicando e acumulando memórias. A questão mais importante, hoje, seria como nós poderíamos dar a esse cérebro global uma consciência de reflexão.

Vamos pensar em nós, humanos, em comparação com os animais. Eles têm cérebro, mas não têm consciência reflexiva. O que nos dá essa consciência reflexiva, além do cérebro, é a nossa linguagem articulada. Um dos maiores poderes que a linguagem nos dá é pensar a respeito dos nossos processos cognitivos e pensar sobre o futuro – e os animais não podem fazer isso. A linguagem nos permite pensar e falar sobre cognição. Os animais naturalmente têm consciência original e primitiva. Eles são capazes de categorizar suas experiências, mas não conseguem pensar a respeito dessas categorias ou sobre a forma como nós as utilizamos. É a linguagem simbólica que nos dá essa consciência reflexiva. Usando nossa consciência pessoal, podemos dar à inteligência coletiva humana uma consciência reflexiva, mas como poderíamos estender isso às máquinas?

A consciência humana e a inteligência virtual são dois fluxos que criam dois mundos diferentes relacionados por meio da presença física, do mundo material: um corpo, um espaço tridimensional e um único tempo linear. Essa é a coordenação em 4D da física contemporânea. O mundo físico, o planeta Terra, é algo universal e também infinito, mas existe um mundo intermediário – a cultura (material, prédios, roupas) que pode evoluir ou não. O ambiente físico não é algo universal. Para exemplificar, pensemos na evolução dos ambientes físicos desde a Pré-História até hoje.

O outro lado da nossa existência, os pensamentos, a forma como pensamos e nossa consciência pessoal estão criadas em um ambiente e não podem existir sem ele. Cultura, linguagem, religiões, ciência, tudo o que é simbólico e também evolui não continua da mesma forma no decorrer do tempo. Além disso, temos outra coisa universal: a capacidade de manipular os símbolos, o intelecto. Estamos apenas no início dessa exploração da natureza, se a entendemos como algo que não está no tridimensional, no tempo, algo que não é apenas do espírito. Vivemos em uma constante relação entre o espiritual e o material, não podemos representar as mentes sem os símbolos. Nós compreendemos que um meio é algo ao mesmo tempo técnico e simbólico e que a técnica transforma as relações. Basta pensarmos na invenção do telefone e como isso modificou para nós a relação espaço/tempo. Essa transformação simbólica, mediada pelas inovações técnicas, altera a organização da memória humana, e isso não é novo para nós. A própria escrita trouxe uma nova organização da memória. Com essas transformações, podemos automatizar a memória.

A evolução da tecnologia possibilita o aumento da nossa capacidade de manipular símbolos, registrar; aumenta nossa capacidade de comunicação. Temos bandas largas cada vez maiores e isso significa que podemos nos comunicar mais com esse crescimento. Os três principais aspectos do meio digital são: o crescimento da necessidade de comunicação, o que gera o aumento das bandas e, com isso, maior possibilidade de registro.

Os aspectos simbólicos dessa imensa capacidade técnica são grandiosos, mas estamos cientes de que essas possibilidades são para uma ou duas gerações à frente. O sistema simbólico é perfeitamente capaz de explorar essas capacidades técnicas, ainda que a criação técnica seja mais rápida do que a simbólica. Todos nós, que estamos agora na geração presente, podemos ver a cultura como processo de transmissão de memória, de significado de uma geração para outra. Esse processo ativo de recepção e transmissão da memória baseado nos aspectos simbólicos da vida humana está sempre apoiado pela mídia. A dificuldade de entender nossos filhos vai crescer, pois a evolução da mídia vai se acelerar ainda mais.

Dessa forma, dado o meio técnico atual, com todas as características explicadas por ele, o que seria um meio simbólico com a máxima exploração do poder do computador? O primeiro passo é pensar em possibilidades para o aumento da recepção e da transmissão de dados. Ao receber uma informação e transmiti-la, nós a recriamos e enriquecemos essa herança com aquilo que recebemos.

A principal questão filosófica gira em torno do significado, da cultura, do aumento e da criação do significado/sentido. Como poderíamos usar o ciberespaço para aumentar o significado cultural? Antes disso, o que é o significado? Os filósofos estão há séculos tentando responder a essa pergunta. O que temos nas nossas mentes e que tem sentido são as ideias. Os animais não têm ideias. Eles têm percepções, emoções, mas não têm ideias. A ideia tem três partes: o preceito é aquilo que podemos ver, escutar, tocar, o que está ligado à percepção direta ou à imaginação, lembrança ou sonho. A segunda parte é a emoção. Não existe ideia humana sem afeto; nós sempre sabemos se gostamos ou não. Nossa mente não funciona sem esses transmissores neurais da emoção. A terceira parte é o conceito, que é representado pelo símbolo, não necessariamente linguístico. Conceito, afeto e percepção estão sempre juntos em uma ideia, e é difícil diferenciá-los. O próximo passo é perceber essas ideias de forma que elas possam ser transformadas pelas máquinas.

Hoje em dia já é perfeitamente possível a representação e automação da percepção. Podemos manipular sons e imagens. A web é multimídia e nós já chegamos ao ponto de conseguir representar qualquer percepção. A percepção pode ser representada pelo endereço na web, como o www. A representação do afeto também não seria difícil. Ele pode ser representado pela intensidade e pela polaridade, atraindo ou repelindo. Os sentimentos mecânicos não são difíceis de reproduzir, pois podem ser representados por números, dígitos.

Para criar uma rede semântica, precisamos representar digitalmente percepção, afeto e conceito. Desses, já conseguimos criar representações para a percepção e o afeto, mas a representação do conceito ainda é um problema. Isso se deve ao fato de o conceito ser representado por elementos de linguagem naturais, e estes são irregulares. O processamento de linguagens é feito com base em estatísticas, redução ou pela parte lógica, valor verdadeiro de sentença. Por exemplo: nós temos duas mãos. Isso é verdadeiro ou falso? Essa representação é computação lógica, mas não semântica. O que Pierre Lévy quer inventar é a computação semântica.

Lévy visita a história do ciberespaço para explicar que ela pode ser representada como uma progressão de endereços. A primeira camada são os bits. Se não há um endereço para cada bit, para cada 0 e 1, não há como computar isso. O segundo sistema é o IP, o endereçamento de computadores na rede. O terceiro é o endereçamento de dados para as páginas ou documentos, hiperlinks de um documento para outros. Esse é um sistema totalmente mundial, com um incrível efeito social e político que é resultado dessa conexão automática entre os dados. Para ele, o que precisamos é de outra camada de endereçamentos. Como podemos ter certeza de que esse ponto é definitivo e de que não virão outras intervenções? Lévy acredita que a próxima camada de endereçamento será a de conceitos. Não teremos como utilizar linguagens naturais, pois elas não são computáveis. Precisamos criar um sistema simbólico para a computação de conceitos.

Pierre Lévy propõe, então, a criação do USL, o localizador semântico universal. Essa seria outra camada, e esse sistema teria outros endereços. Ele teria a forma da linguagem, linguagem artificial, pois a natural não é computável. Um aumento, algo novo com a forma de uma linguagem semanticamente computável. Se olharmos com zoom para dentro do conceito, vamos encontrar o sentido. E o que é o sentido? O sentido depende de um contexto, e por isso não pode ser computável; mas mesmo assim isso não nos impede de automatizá-lo.

O pensador cita como exemplo a frase “Há uma rede”, na qual há uma rede de palavras. Por que nós sabemos o significado dessas palavras? O dicionário traz todas as palavras definidas em relação com outras palavras. Um macaco é uma espécie de mamífero, mas um mamífero não é uma espécie de macaco. Essas palavras são explicadas por uma rede de relações. Quando pensamos em uma palavra que é utilizada dentro de uma frase, vem à tona uma rede que constitui as relações que as palavras têm entre si dentro da frase e o significado no dicionário, que a liga a outra rede. Se voltarmos à frase, veremos que ela faz parte de um discurso, que tem significado porque faz parte de um discurso que se apresenta como algo contextual, que está ligado a cenas, situações e que evocam outros textos. Essas relações intratextuais e intertextuais podem ser representadas por redes. O que precisamos é criar uma interface que apresente conexões dentro de um texto e entre textos. Podemos nos basear na conexão entre a palavra com outras palavras no dicionário para criar um processo computacional para cada proposição. Lévy acredita que é possível gerar automaticamente todas essas relações. Ele apresenta uma proposta para o ciberespaço: um quadro em forma de borboleta. “Digamos que no ciberespaço nós somos pequenas formigas nos comunicando e o resultado é uma espécie de inteligência coletiva que já existe. Agora, elas serão capazes de abrir asas, como uma borboleta, e enxergar todos os trabalhos das formigas”, conclui o filósofo. Veja como ficará o novo ciberespaço, de acordo com a proposta de Lévy:

Publicado em 03/01/2012

Publicado em 03 de janeiro de 2012

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.