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Literacidade, conhecimento sistêmico e novos desafios da globalização, internet e literatura
Juliana Maria Carvalho
Professora e redatora
Globalização, novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC) e virtualidade são alguns dos tantos conceitos que diariamente são aplicados por milhares de pessoas em diferentes lugares de nosso planeta. Esses conceitos têm gerado complexidade do conhecimento e divisão da população em imigrantes e nativos digitais.
A complexidade do conhecimento se obtém por três diretrizes: a rapidez que o conhecimento tem em seu crescimento, sua crescente fragmentação ou especialização e a globalização da qual é o objeto.
Nativos digitais são os sujeitos que passaram suas vidas inteiras rodeados pelo uso de computadores, jogos de vídeo, música digital, vídeos, telefones celulares e outros jogos e ferramentas da idade digital; ao contrário, os imigrantes digitais são os que não nasceram em um mundo digital, porém em algum momento de suas vidas se atualizaram e adotaram alguns ou a maioria dos aspectos das novas tecnologias.
Por sua vez, já que estamos falando em atualização, convém lembrar as novas competências profissionais desejadas pela Comissão Europeia em 2007, definidas na Declaração de Lisboa:
- comunicação em língua materna;
- comunicação em línguas estrangeiras;
- competências matemáticas e competências básicas em ciências e tecnologias;
- competências digitais;
- aprender a aprender;
- competências de cidadania;
- sentido da iniciativa e de empreendimento; e
- consciência cultural e expressão.
Observando todo o cenário descrito, é possível compreender a necessidade de viabilizar a compreensão leitora nas experiências virtuais desenvolvidas na internet, ou seja, não basta simplesmente saber ler, e sim que esta ação desenvolva, conjuntamente, processos cognitivos de nível superior, os quais apontem as destrezas digitais ou de comunicação em língua materna bem como outras competências necessárias.
A alfabetização digital – que pode ser definida como o conhecimento e a capacidade de manejar ferramentas de produtividade básicas como processador de texto, planilha de cálculo ou outros programas de produtividade e ter conhecimento básico para navegar na internet, possibilitando assim o acesso à rede de conhecimento – constituirá uma necessidade inegável de prover ações de políticas públicas de oferta, porém que não devem possuir somente esse foco de atenção. Se analisarmos a alfabetização digital pela taxonomia de Bloom – a qual se constitui em ordem ascendente de desenvolvimento dos processos cognitivos através do conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação –, perceberemos que o desenvolvimento está ocorrendo apenas até o nível da aplicação.
O conceito de literacidade, por sua vez, abarca todos os conhecimentos e atitudes necessários para o uso eficaz, em uma comunidade, de gêneros escritos. Como se pode ver, esse conceito é trabalhado com outros (comunidade) e não só se limita aos conhecimentos como reconhece que devem existir certas atitudes necessárias para seu uso eficaz.
Se compararmos as duas definições, é possível perceber um detalhe implícito: enquanto a alfabetização digital como definição é desenvolvida por um indivíduo, a literacidade é realizada em comunidade. Por isso se entende que ela deva pôr em ação muito mais formas de inter-relacionamento e, por isso, ao aplicar a mesma taxonomia mencionada, se pode obter até o nível de avaliação em sua execução. Complementando o exposto pela literacidade, é possível afirmar que esse conceito inclui todos os conhecimentos, habilidades, atitudes e valores derivados do uso generalizado, histórico, individual e social do código escrito", o qual nos entrega as bases para concluir que ela estará relacionada ao analfabetismo funcional.
Seguindo uma comparação entre alfabetização digital e literacidade, é possível estabelecer níveis para a integração curricular das NTICs às disciplinas. Podemos classificar essa integração em três diferentes níveis:
- Apresentação às TICs: é dar os primeiros passos em seu conhecimento e uso, talvez realizar algumas aplicações; o centro está em vencer o medo e descobrir as potencialidades das TICs.
- Uso das TICs: implica conhecê-las e usá-las para diversas tarefas, porém sem um propósito curricular claro. As tecnologias são usadas, porém o propósito para o qual são usadas não está claro; elas não penetram a construção do aprender, têm mais um papel periférico na aprendizagem e na cognição.
- Integração: aprender X com o apoio da tecnologia Y. O aprendizado é visível e as TICs se tornam invisíveis.
É preciso advertir, porém, que a literacidade não implica criar conhecimento, fazê-lo disponível e esperar melhores resultados, pois se deve compreender que o conhecimento acrescenta valor significativamente diferente ao excesso de informação e, por isso, uma gestão do conhecimento é fundamental. Reconhecer os três distintos níveis de conhecimento pode auxiliar nessa tarefa:
- Conhecimento tácito: é de natureza altamente pessoal, sendo difícil de formalizar e, por conseguinte, difícil de ser comunicado a outros indivíduos. Esse conhecimento é apresentável, mas dificilmente explicável.
- Conhecimento explícito: possui duas características: sua índole formal e ser sistemático, o que o torna de fácil comunicação e compartilhamento.
- Conhecimento implícito: todos aqueles que estão ocultos nas organizações, por exemplo: procedimentos, métodos e a cultura corporativa.
Esses três conhecimentos geram quatro dinâmicas do conhecimento:
- Conhecimento harmonizado: quando um conhecimento tácito passa a se constituir em outro conhecimento tácito, desenvolvendo a sociabilização do conhecimento.
- Conhecimento operacional: quando um conhecimento passa a se constituir dentro de outro conhecimento tácito, ou seja, a interiorização do conhecimento.
- Conhecimento conceitual: quando um conhecimento tácito passa a ser explícito, desenvolvendo a exteriorização do conhecimento; e, finalmente,
- Conhecimento sistêmico: quando um conhecimento explícito se constitui em outro conhecimento explícito, ou seja produz uma combinação do conhecimento.
É interessante destacar a ideia de organização de hipertexto, sinalizando que é uma analogia do conhecimento de criação do trabalho em equipes com o hipertexto, ou seja, toda organização de pessoas necessita de relações com seus membros para obter colaboração e participação na criação de um produto. É possível observar a organização de hipertextos nos links alojados em blogs, os quais proporcionam conhecimentos adicionais e complementares.
Outro exemplo é o conhecido como Lipdub. Ele se realiza em um plano de sequência, enquanto os participantes sincronizam lábios, gestos e movimentos com uma canção para entregar um vídeo divertido e criativo. Isso poderia nos levar a acreditar que a literacidade foi originada no mundo virtual da internet, mas o certo é que ela esteve presente desde o momento em que os homens se organizaram e criaram produtos imateriais (literatura), desenvolvendo o conhecimento. O processo sistêmico (o conhecimento explícito constitui outro conhecimento explícito) antes da iminente globalização e conectividade com a internet se realizava com um grupo reduzido de pessoas e largos usos de tempo para sua concretização. A literacidade, então, possuía um ritmo muito mais lento, cuja compreensão e significação eram restritas aos eruditos e críticos especializados. Atualmente, ainda existem pessoas especialistas que apresentam sua opinião, porém as novas tecnologias permitiram que pessoas não tão conhecidas em sua área profissional possam demonstrar a transparência de seus conhecimentos, habilidades, atitudes, motivações etc.
Atualmente, a literacidade, como conhecimento sistêmico, é mais global e simultânea, contribuindo na medida em que seus participantes a realizem de forma crítica. Ela é um produto anterior à globalização, mas hoje podemos identificar quatro novas formas dela:
- a) multiliteracidade: referência ao fato de que hoje lemos muitos textos e muito variados em breves espaços de tempo. Na internet, por exemplo, passamos de uma prática a outra: de responder e-mails a buscar dados em sites, de consultar um blog a bater papo com amigos etc. Trata-se de um autêntico zapping da leitura.
- b) biliteracidade: já deixou de ser algo elitista ou exclusividade de poucos privilegiados o fato de ler e escrever em duas línguas.
- c) literacidade eletrônica: usamos gêneros eletrônicos novos, que costumam se dividir em dois grupos, segundo o tipo de interação: síncrono (chat, MSM, jogos de simulação) ou assíncrono (e-mail, web, fóruns, blogs).
- d) criticidade: existem variados autores e posições: a escola de Frankfurt (que pretende discutir a realidade para melhorá-la), Paulo Freire (que sugere que a literacidade é uma ferramenta de empoderamento do oprimido).
Na compreensão crítica: a) o conhecimento cultural é fundamental para a compreensão do texto; b) Quando falta esse conhecimento, o leitor toma alguns elementos do texto e elabora a informação que falta: nem acerta sempre nem o elaborado tem o grau de precisão de uma compreensão avançada.
Como se pode observar, a literacidade eletrônica pode ser vista como uma nova forma de literacidade, pela qual se pode compreender que ela não é uma criação originada da globalização ou do uso da internet, e sim que sua definição como conhecimento sistêmico se mostrou óbvia e evidente por meio da internet.
O novo da literacidade eletrônica é a possibilidade de incorporar novos textos para o desenvolvimento de instâncias de aprendizagem, tanto na educação formal como no cotidiano virtual, ao "estar conectado à rede". É por isso que não é de se estranhar que as escolas, colégios e liceus estejam resgatando os textos não literários e os meios de comunicação de massa como conhecimento importante para tratar e estabelecer como proposta educativa contextual.
Tanto a globalização como a internet proporcionam que a literatura seja complementada pela literacidade como formadora de competências na comunidade, mas que também possua a responsabilidade de diminuir uma segunda brecha digital, o que é necessário para um desenvolvimento inclusivo na globalização e na internet.
A segunda brecha digital está relacionada com a brecha do conhecimento e, mais especificamente, com as habilidades digitais necessárias para viver e trabalhar em sociedades caracterizadas pela importância crescente da informação e do conhecimento. É por isso que não só devemos observar apenas quais níveis dos processos cognitivos se desenvolvem na literacidade (taxonomia de Bloom) como também que níveis de atitudes e valores devem desenvolver. Dessa forma, é necessário o resgate da taxonomia de Marzano para que a literacidade cumpra seu propósito com plenitude.
A taxonomia de Marzano é um sistema de consciência do ser que determina o grau de motivação à nova aprendizagem (integrada pela avaliação da importância, da eficácia, das emoções e da motivação); um sistema de metacognição que elabora um plano de ação composto por especificação de metas, monitoramento de processos de clareza e de precisão e um sistema de conhecimento que provê o conteúdo necessário (integrado por conhecimento, compreensão, análise e utilização).
Tudo isso nos permitirá sinalizar o grande desafio que possui a literatura como arte que utiliza a palavra como contribuição do ser humano, que é desenvolver a literacidade em todas as suas dimensões, proporcionando que o âmbito educativo resgate cada dia mais os textos não literários e recursos proporcionados pelos meios de comunicação de massa, utilizando as taxonomias apresentadas para impulsionar e desenvolver as competências demandadas pela atual sociedade e, por fim, que a literacidade seja um tema de debate, para que, dessa forma, seja considerada e incorporada nas propostas de políticas públicas educativas, pois devemos tentar dar respostas ao crescente analfabetismo funcional, o qual se move e cresce implicitamente com sua presença, contribuindo para o conhecimento implícito com prejuízo da literacidade pela exclusão que realiza para milhares de pessoas.
Publicado em 13 de março de 2012
Publicado em 13 de março de 2012
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