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A alma do povo em Chico Anysio

Pablo Capistrano

Escritor, filósofo, professor do IFRN

Ontem um amigo me contou ter visto uma cena que o deixou chocado. Um ônibus bateu em um carro de passeio. O motorista do automóvel, enlouquecido, subiu no capô do próprio veículo e, com um pedaço de pau, quebrou o vidro do ônibus e tentou espancar o motorista que havia provocado a colisão.

É, amigo velho... Parece que estamos definitivamente perdendo a transcendência.

Até o mais ferrenho materialista precisa de algum pedaço de transcendência para viver. Mesmo que não seja Deus ou as coisas sem nome do espírito, a transcendência vem pela fé na história (como tinham os velhos comunistas); pela esperança na continuidade biológica de nossos próprios filhos; pela vontade de poder, que se manifesta no desejo de passar pelo mundo e deixar uma marca, um sinal, um fragmento com significado que nos permita superar, nem que seja por um instante, a crueldade do tempo.

O problema é que hoje, nesse desértico cenário do real, com a constante e nauseante certeza de que a mediocridade humana reina absoluta, só o humor nos salva. Sim, só o humor nos ajuda a transcender esse deserto cotidiano destes tempos sombrios. E, na arte do humor, pouca gente neste mundo encontrou o grau de genialidade que Chico Anysio alcançou.

Não apenas porque Chico era muitos. Não apenas porque Chico se multiplicava em centenas de tipos que desfilavam no rádio, nos palcos ou nas telas de TV de nossa infância. Chico era genial não pela quantidade de seus personagens, mas pela singular profundidade arquetípica que eles alcançavam.

Não vou encher seu saco, leitor de boa-fé, tecendo teorias sobre os motivos da genialidade dos muitos Chicos que se multiplicavam nas telas do Brasil nos anos setenta, oitenta e noventa do século passado.

Vou apenas lamentar que essa abrangência, essa profundidade que só os grandes atores conseguem impor a seus personagens tenha se perdido do nosso horizonte de possibilidades.

Não que tenhamos apagado Chico do arquivo da memória afetiva nacional. O Youtube (a maior invenção da humanidade após a rede de dormir e o corretor automático do Word) vai manter, nos retalhos da memória visual da civilização, fragmentos da genialidade de Chico enquanto a rede suportar nosso navegar nessas ondas de informação.

Neste tempo de CQCs, Pânicos e Zorras Totais, a intensidade, a um só tempo popular e erudita, simples e complexa, abrangente e exata do humor de Chico Anysio vai fazer uma falta da porra.

Não teremos mais um cronista da alma nacional como Chico. Sua radical singularidade, presente em cada fragmento de seus eus desdobrados, renascidos em arquétipos da alma popular brasileira, não vai nos presentear com sua peculiar interpretação humorística do tempo de meus filhos. Não vai oferecer um alumbramento do Brasil, com seus tipos variados, como presentou a minha geração e a geração de meus pais e avós.

Chico interpretou seu país como poucos artistas populares conseguiram fazer. Ele ofereceu seu corpo, sua voz, sua imagem, para que nós pudéssemos rir de nossa própria humanidade. Se Renato Aragão, outro signo do humor nacional, seguiu Chaplin, Buster Keaton, Groucho Marx, Oscarito, Mazzaropi e tantos outros, criando um alter-ego, um personagem de si mesmo, que pudesse lhe servir como guia, Chico, em sua genialidade, seguiu um caminho diferente de todos esses outros gênios e abriu-se para que a alma do povo pudesse refletir no espelho de sua arte.

Nessa abertura para a diferença do múltiplo, que misteriosamente contém a irredutível singularidade do mesmo, Chico nos contaminou. Éramos também Chico Anysio. Por isso, hoje, no dia em que todos os Chicos morreram, morremos também um pouquinho, juntos... todos nós.

Publicado em 27 de março de 2012

Publicado em 27 de março de 2012

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