Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Viagem à Toscana – o transporte da ficção

Dermeval Netto

Jornalista, documentarista, diretor de televisão e professor de Comunicação Social

Luiz Fernando M. Carvalho

Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira

Na primeira cena do filme Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami, está a imagem de uma mesa, sobre ela o livro exibido em um display, e dois microfones posicionados. Ao fundo, a parede antiga mostra inscrições em latim emolduradas por algumas estátuas esculpidas nela.

Nesse primeiro quadro, onde estão justapostos elementos e objetos modernos e clássicos, são inseridos os créditos de abertura do filme. Sobre essa imagem, que demora cerca de dois minutos, cresce o som ambiente do burburinho de vozes.

Cópia Fiel começa com uma plateia à espera de um escritor que está atrasado para o lançamento de sua obra Copia Conforme, em edição italiana. Diante do incômodo do atraso do escritor, o tradutor do livro e organizador do evento toma a palavra para justificar, ocupando o lugar do falante, como substituto do original esperado. O livro está exibido na mesa à espera do seu autor, que finalmente adentra o espaço da sala, desculpando-se pelo atraso e iniciando sua palestra. Após alguns instantes, chega uma mulher que se senta na fila reservada aos convidados; seu filho adolescente a perturba durante o início da palestra e irá obrigá-la, em seguida, a sair. Mas antes, em uma de suas primeiras falas, o autor em tom jocoso informa à plateia o titulo alternativo de seu livro: Esqueça o original, apenas consiga uma boa cópia, afirmando em seguida temer que isso “desagrade e ofenda sensibilidades artísticas”.

Cópia Fiel, filmado em belíssimos cenários naturais da Toscana, traz como tema central a questão do valor da obra de arte em sua versão original e autêntica, em contraposição ao valor de sua cópia. É a partir desse núcleo que o diretor iraniano Abbas Kiarostami desenvolve sua narrativa entre dois planos – o jogo entre ficção e realidade – e vai revelando aos poucos quais suas reais intenções: capturar e manter o público entre essas camadas, superpondo as noções de falso e de verdadeiro.

A ótima performance dos atores Juliette Binoche e William Shimell é determinante para situar o espectador na misteriosa relação em que os personagens são envolvidos. Ele é um escritor inglês famoso, autor de livro recém-lançado sobre o tema; ela é francesa, dona de uma galeria de arte em Arezzo, Itália, e fã do escritor. A questão central do filme será: afinal, os personagens James e Elle estão representando ou vivendo e falando sobre uma história deles próprios? A verdadeira natureza do relacionamento desses dois, construído entre climas de sedução e conflito e de evocações do passado, é a chave da descoberta da história.

O filme se desenvolve com o episódio seguinte acontecendo no interior de uma galeria de arte subterrânea, muito escura, onde os dois personagens se reencontram, conversam, apreciam e comentam as obras expostas ali.

Em seguida, ela o convida a entrar no carro para ir até uma cidade histórica próxima. E aí estamos num dos cenários preferidos de Kiarostami: o interior de um carro, como célula deflagradora do microcosmo que se concentra nas falas e explode. De dentro do carro em close-up a conversa antes gentil torna-se ríspida, a tensão se arma e se desdobra ao redor.

Os principais conflitos já estão no interior das falas no interior do carro em deslocamento pela belíssima paisagem verde da Toscana. Na visita a um lugarejo histórico, com os dois atores buscando sempre o tom naturalista em suas conversas e discussões, o tema recorrente é o da obra de arte, a original e sua cópia. Até que, ao chegar a uma cafeteria, os dois são confundidos pela velha senhora proprietária como se fossem marido e mulher. A partir desse episódio, o filme faz um turning point e se transforma em outro, com os dois passando a encenar novos papéis.

Ao pautar a discussão sobre a valorização de uma obra de arte não autêntica e ao mesmo tempo converter a relação de seus personagens em um encontro baseado em um aparente jogo de cena e de interpretação, Kiarostamiestabelece uma maneira de se referir ao próprio cinema e à sua lógica de representação.

O momento dessa virada é essencial: após saírem do café, James e Elle percorrem vielas inicialmente desertas, mas que de repente se tornam repletas de varais com roupas, mulheres e bebês. É como se fizessem uma breve e instigante travessia, no tempo e espaço, pelo neorrealismo italiano, como se a visitar e copiar outros originais cinematográficos.

Cópia Fiel incorpora também o melodrama, e já não importa se os personagens de Juliette Binoche e William Shimell fingem ou não ser um casal de verdade. James e Elle transportam-se na ficção e, em seguida, não se consegue mais distinguir a realidade de encenação. Tornam-se atores também Elle e James, na trama, à imagem e semelhança de Juliette e William, atores no filme. Pessoas que se tornam outras e que passam a ser outras. Onde o falso e onde o real? Tão longe e tão perto, na arte e na vida.

Kiarostami, em sequências alternadas, mostra o casal, ao longo do passeio por igrejas e praças, interagindo com outros casais, um que está se casando, outro já com alguns anos de casamento e outro já idoso (em que, no papel do marido, vemos o escritor e roteirista Jean Claude Carrière). Esses casais vêm traduzir diferentes fases e formas da relação amorosa imaginada ou mantida pelos protagonistas, movimento que se repete quando James está diante de uma janela que mostra, no fundo da cena, a celebração de um casamento – em outras imagens, uma projeção de acontecimento passado de sua vida ou somente mais uma versão.

Cópia Fiel elabora uma sequência de situações que não conduzem à certeza sobre nada que é mostrado, um jogo de ocultamentos e revelações que permeia o filme por inteiro em torno da transformação do que pode ser uma mentira em uma verdade, ou vice-versa.

Verifica-se também no filme a questão entre o falado, o dito e escrito e o abismo da experiência, que muitas vezes encontra-se numa outra dimensão inalcançada pelas palavras ou pelo universo conceitual. Nesse sentido, o filme afasta-se por vezes da discussão central sobre original e cópia para tratar da necessidade de colocar em circulação a experiência de vida. Da vida com seus deslocamentos e reagenciamentos dirigidos pelos afetos corporais.

Em uma das mais expressivas cenas do filme, a atenção dirige-se aos pés de Elle, liberados de suas sandálias, ao pé da escada de uma casa, que percebemos depois ser um hotel. Ao desamarrar e expor os pés, o corpo da mulher fala pelas extremidades; o corpo desliza do foco no rosto – objeto particular da pesquisa deKiarostami no Irã – e, no impasse da boca, com seus conflitos insolúveis – fala com os pés, pelos pés, e num primeiro momento chama a atenção de James, que se interessa pelo corpo de Elle por seus pés. Pergunta se ela sente dor, percebe a força naquele corpo, interessa-se por ele, o que motiva um novo investimento no jogo amoroso por parte da mulher. O jogo do como se é estrutural, inerente ao movimento feminino, ao jogo dos véus do movimento dançante de se aproximar do parceiro.

Essa possibilidade, disponibilizada como jogo do como se, é antecipada em outra belíssima cena do filme, em que Elle se retoca ao espelho do toillete de um restaurante e escolhe, dentre um arsenal de brincos, os mais imponentes, preparando sua volta à mesa na busca por seduzir James. O close que Kiarostami imprime no rosto de Juliette Binoche faz reluzir, além dos brincos,

o brilho enigmático e sensual da mulher na sedução do homem, num momento crucial do filme, em que o falso e o verdadeiro se confundem e seguem seu transporte na ficção.

No equilíbrio entre brincos e pés, emergem o instante da exibição e o instante do desnudamento do corpo, como antecipação metonímica de uma possível entrega total, como promessa dos gestos corporais. Que não se dá porque o brinquedo retrospectivo com a linguagem verbal está cerceado pela razão. O delírio e a fantasia ficam reduzidos e controlados pelo medo de James de sair do seu confronto com o passado e com sua forma de abstrair-se e de evadir-se. A aventura não se dá ou só acontece como impasse, como não porosidade, como evitamento da hospitalidade à pele.

Transparece no filme a afirmação da personagem feminina que acredita nos jogos de linguagem dispostos à aventura do movimento, sem ancoragem no passado ou numa suposta origem. O personagem masculino, ao contrário, a despeito do seu conhecimento classificatório e erudito do que seja cópia e original, não se desprende no plano pessoal da origem e da instância do arquivo. Fica atrelado à memória do vivido e não aceita brincar de futuro.

Para ele, no plano pessoal há limites nesse jogo, porque a memória

não permite riscos contingentes, que gerem a possibilidade, por exemplo, de vir a experimentar a paixão ou algo novo que faça com que seja alterada a sua condição original.

Aspecto também importante a realçar é que James e Elle são estrangeiros na Toscana, lugar que não é o da identidade, habitat de nenhum dos dois. Quando eles discutem, cada um fala a sua língua – ele em inglês e ela em francês –, como se houvesse na língua de origem a recuperação das condições de sobrevivência e proteção. Quando estão bem na conversação, eles se permitem a troca amigável de línguas. Como estrangeiros, são confrontados com a despaisagem, com a inquietante estranheza que a linguagem disponibiliza como provocação.

Kiarostami induz nossa visão sobre a arte, o cinema e seus personagens a não ser prejudicada pela percepção de sua irrealidade. As ideias e sensações que o filme e o casal transmitem, bem como seus conflitos, são essenciais mesmo que sejam falsos na origem – e sempreserão imaginários, já que nos encontramos diante de uma obra de ficção, seja qual for a versão do casal apresentada pelo filme. E as dúvidas seguem com o espectador, pois a qualidade da obra está precisamente nas suas múltiplas camadas e a imagem ambígua é a sua única verdade.

Não importa mais se, ao final do filme, eles são os mesmos personagens que iniciaram a narrativa ou não, já que ambos são elementos de ficção construídos por Kiarostami. Como no próprio tema discutido no livro do escritor personagem e dito em uma de suas falas no filme, as diferenças entre original e cópia não são fundamentais, mas sim a percepção que temos da obra e o que esta nos exprime.

E é na própria construção da imagem de Cópia Fiel que percebemos a fronteira tênue entre o falso e o verdadeiro, entre o real e o encenado, que se traduz nas cenas em que o casal, durante algumas de suas discussões, como na cena do restaurante, olha diretamente para a câmera e, portanto, para o espectador. Os momentos em que James e Elle olham diretamente para a câmera – o que contraria as regras da representação clássica – indicam e revelam a única verdade expressa de Kiarostami: o que está fazendo é cinema.

Na cena final do filme, após subirem ao quarto do hotel, Elle está recostada na cama e chama por James, incitando-o a reviver um encontro amoroso que os dois já teriam supostamente vivido naquele mesmo lugar, em sua noite de núpcias.

– Você se lembra?
– Não.
– Não lembra?
(James faz que não com a cabeça)
– Você não lembra de nada! Não acredito que tenha esquecido.
– Você sabe que não tenho nenhuma lembrança... Não é gentil me testar assim.
– Se me deito aqui... Me lembro de tudo.

Em suarecusa terminante a seguir participando desse jogo, James encaminha-se ao espelho do banheiro, onde permanece estático, olhando-se fixamente, num longo e definitivo plano de câmera. O rosto hesitante, impenetrável, dramaticamente refletido no espelho, encerra todo o enigma da representação. Ali, o personagem real está fora do quadro, e o que se vê é a sua imagem refletida, invertida, copiada, a invocar uma vez mais a duplicidade e a ambiguidade. No lugar da imagem real, a cópia fiel.

Ao retirar-se do quadro da câmera no instante final, o personagem libera o cenário, antes no fundo da cena: vista de uma janela, uma velha igreja da Toscana ao som do dobrar de seus sinos, que vão soando cada vez mais alto. O que resta é a pura contemplação. Um desafio ao olhar do espectador.

Ficha técnica do filme:

  • Título: Cópia Fiel
  • Roteiro e direção: Abbas Kiarostami
  • Gênero: Drama
  • Origem: França / Irã / Itália

Publicado em 27/03/2012

Publicado em 27 de março de 2012

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.