Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Os “Bens Comuns”

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Conferência Rio+20

Dentro de aproximadamente três meses, nossa cidade estará sendo tomada em função da Conferência da ONU Rio+20. Mesmo que, como tudo indica, muitos presidentes e primeiros-ministros de países desenvolvidos não se façam presentes, será grande a participação de ministros de meio ambiente, da área econômica e de relações externas da maioria dos países do mundo, cercados por profissionais negociadores, lobistas dos principais grupos econômico-financeiros e grande cobertura da mídia. A Conferência pode não ter brilho de estrelas, para frustração de nosso governo, mas nos seus bastidores poderão ser feitos acordos que comprometerão o futuro da humanidade e do planeta. Como contrapeso e força de vigilância, a nascente cidadania planetária, por meio de suas entidades e movimentos sociais, suas redes e coalizões, está empenhada em organizar uma grande Cúpula dos Povos. Bem ou mal, o Rio de Janeiro será foco do mundo durante duas semanas de junho.

A balbúrdia e o transtorno na vida da cidade será grande. O fato é que não vai dar para ficar simplesmente olhando ou se irritando, porque é de nós todos, comunidade humana, e de nossa relação com a natureza que se estará tratando lá no distante RioCentro. Sou dos que acham que precisamos ficar muito preocupados. Vendo o tal documento oficial em elaboração, não é coisa boa que vem por aí. O risco é a Conferência ser aval para uma nova frente de expansão capitalista, a mercantilização e a financeirização da natureza, sob o manto bonito de economia verde.

Por isso, mesmo parecendo membro do exército de Brancaleone, insisto para que pensemos em um novo paradigma civilizatório. Chega de capitalismo da abundância excludente, da produção para o lucro antes de mais nada, do luxo que gera montanhas de luxo e destrói o bem comum maior, o próprio planeta. Precisamos enfrentar a lógica do ter mais e mais bens materiais de consumo individual e de acumular riqueza mercantil como parâmetro de felicidade. Para isso, sou dos que defendem que nos organizemos – tanto a nossa economia como o nosso poder – em torno dos “comuns”, os bens comuns a todas e todos, os bens fundamentais para viver, bens que se compartem entre toda a comunidade.

Nenhum bem é comum a priori; torna-se comum socialmente. Os “comuns” são os bens que as relações sociais identificam e gerem como tais. A água, as nascentes, os rios e as chuvas, as montanhas e os bosques, o ar que respiramos e o vento que refresca, o clima, a língua, a cultura, os conhecimentos, a comunicação, a internet, a rua, a praça e a cidade que compartimos, as instituições estatais, as sementes e a biodiversidade que generosamente a natureza nos dá, o mar com toda a sua vida, suas ondas e praias, todos são exemplos de bens comuns fundamentais. Enfim, a lista pode ser longa, e nela mesma está contida a qualidade da sociedade em que vivemos. Nem todos esses bens são tratados como comuns, assim como muitos outros são agregados à lista por diferentes povos.

A necessidade sentida, almejada e enfrentada coletivamente leva a criar bens comuns. A desenfreada busca de acumulação individual capitalista, que domina nossas sociedades hoje, promove a privatização e a mercantilização de tudo, encarcerando e destruindo os bens comuns. As sementes, hoje certificados e transgênicas, tendem a ser patenteadas. A música, o conhecimento científico e técnico também, obrigando a pagar para quem quer ter acesso e usufruto. A rua, espaço comum, é fechada pelo condomínio privado. A água é comercializada. A atmosfera foi colonizada pelas emissões de carbono de um industrialismo e consumismo sem limites de 20% da humanidade. O próprio planeta parece colonizado por uns poucos, em busca dos recursos naturais – não importam os povos que vivem aí há milhares de anos. Os oceanos estão sendo predatoriamente explorados por grandes empresas, e suas águas, acidificadas pelos poluentes químicos, estão ameaçando a teia alimentar essencial para o equilíbrio de todas as formas de vida. Estamos destruindo os “comuns” com esse modelo de produção e consumo dominante. E é esse modelo que corremos o risco de perpetuar, agora com fachada verde.

Resgatar e regenerar os bens comuns é mais do que uma resistência; é criar as condições para um outro modo de vida. Mas isso nada tem a ver com o que oficialmente, na Conferência da ONU, se denomina economia verde. Trazer os bens comuns ao centro do debate é trazer as condições da vida, de toda vida ao centro, muito além do estreito olhar econômico capitalista. A desmercantilização dos bens comuns é uma condição incontornável para superar a crise do sistema atual, a destruição que provoca. Mas, não esqueçamos, é por meio da ação cidadã, da luta a partir do cotidiano, da resistência tenaz às cercas, ao extrativismo, à apropriação privada do saber e da produção cultural, no combate tanto ao desmatamento como ao controle das sementes, na rebeldia do software livre, enfim, em múltiplas frentes e de diferentes formas podemos resgatar os bens comuns.

Resgatar bens comuns, alargar bens comuns, criar novos bens comuns, todas estas são tarefas de edificação de um novo paradigma de civilização, em contraposição ao que está em crise e que transfere para a humanidade inteira a sua crise, ameaçando a sustentabilidade da vida e do próprio planeta. Reforçar os bens comuns é reforçar o social, o espírito de comunidade e de compartilhamento, a vida coletiva, o viver como experiência que se realiza com outros seres humanos, com outros seres vivos e com a natureza, em sua contraditória e fantástica grandeza.

Publicado em 3 de abril de 2012

Publicado em 03 de abril de 2012

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.