Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

CONVERSA COM PROFESSORES

Cyana Leahy-Dios

PhD em Educação Literária pela London University; professora da UFF, escritora, tradutora e editora

A educação literária: algumas questões

Conforme encontrado em pesquisa feita em duas escolas da rede pública e uma da rede privada do Estado do Rio de Janeiro, em 1995, descrita e analisada em minha tese de doutoramento.

Ensinar e aprender, como sabemos, são ações políticas. Ensinar e aprender literatura na escola secundária brasileira é atuar dentro de um panorama pedagógico marcado por limites difusos e por uma interação interdisciplinar de caráter muitas vezes confuso e amorfo. Enquanto alunas e alunos se ressentem da ‘gratuidade’ de uma disciplina que, em sua visão, apenas repete dados históricos e reforça conhecimentos linguísticos de forma acrítica, suas professoras se veem cerceadas por estreitos limites de tempo, pelo perfil pedagógico da matéria, pelas imposições sociais, culturais e econômicas dos exames vestibulares; a tal ponto que chegam a confundir dados históricos sobre literatura com teoria literária. O que será, então, a educação literária? Qual o seu papel no currículo da escola de ensino médio? Como repensar a disciplina? Valerá a pena mantê-la na escola do século XXI?

Gillespie (1994) cita o argumento pragmatista: “Ninguém precisa de literatura para ser um trabalhador produtivo e competitivo na economia global... A matéria de real importância para o futuro será a informação, e as habilidades de leitura exigidas estarão relacionadas à coleta e ao processamento dessa informação... Quem realmente precisa ler Shakespeare hoje em dia? Isso é um entusiasmo passageiro, uma ocupação para as horas vagas, jamais uma necessidade para o século XXI” (p. 16, minha tradução).

Segundo alguns ‘pragmáticos’, a educação dos filhos das classes trabalhadoras requer apenas conhecimento prático e eficiente que lhes possibilite exercer sua função a contento: com que finalidade um futuro operário metalúrgico leria e analisaria Bilac, Balzac ou Shakespeare? Contra esse argumento, Tim Gillespie afirma que estudar literatura possibilita a subversão do pensamento social do leitor: o medo do poder da palavra escrita se esconde por trás do argumento pragmático. Paulo Freire certamente diria se tratar de medo da liberdade possível, pela importância do ato de ler.

Há um grave problema no perfil da disciplina: apoiada sobre gêneros literários, autores, história da literatura, elementos de poesia e ficção e instrumentos rudimentares de crítica literária, ela é aplicada a alunas e alunos de ensino médio que nem sempre se destinam aos cursos de Letras. Existe alguma teoria coerente de educação literária (Bancroft, 1994)?

Penso que a principal acepção de educar diz respeito ao complexo processo de facilitar – ou mediar – o encontro da pessoa consigo e com o Outro, de forma que possa exercer conscientemente sua cidadania. É impossível pensar em bens culturais sem passar pela questão pedagógica e vice-versa. Educar por meio da literatura parece ser o meio ideal para encontros conscientes e criativos, considerando-se o tripé disciplinar em que se apoia a disciplina: Língua, Arte, estudos da Sociedade.

Assim sendo, qual a eficiência de uma disciplina escolar que deveria, conforme os programas de ensino, despertar sensibilidades, ampliar o universo cultural de alunas e alunos, reforçar o conhecimento da língua pátria e difundir o melhor da produção literária nacional? O que está sendo ensinado e o que se aprende nas aulas de literatura no ensino médio? Estará a educação literária cumprindo seu papel fundamental de educar através da literatura? Qual a sua vinculação com o mundo real habitado pelos estudantes?

Aulas de literatura

Os dois modelos são descritos, analisados e avaliados em Leahy-Dios (1996).

Existem duas principais vertentes de educação literária, apoiadas em princípios filosóficos distintos: o modelo anglo-americano, de estudo crítico de textos canônicos, de orientação liberal-humanista; e o paradigma histórico-biográfico franco-brasileiro, cuja influência positivista obriga a memorizar datas, fatos, nomes e características. Porém, nem um nem outro modelo atende às necessidades político-culturais da sociedade brasileira deste século. Isso indica a urgente necessidade de repensarmos criticamente os conteúdos, os métodos, os objetivos, o processo de educar cidadãos brasileiros através da nossa literatura (Leahy-Dios, 1996, conclusão).

Na maioria das escolas brasileiras, conteúdos e métodos de trabalho literário-pedagógico são determinados e delimitados pelos livros didáticos, que, num ‘rodízio estrangulador’, impedem o exercício da construção criativa: sob a justificativa de facilitar o trabalho docente, autores planejam e pensam pela professora, que passa a mera cumpridora da tarefa de repassar conteúdos. A maioria das aulas de literatura consiste na leitura direta e mecânicado livro didático adotado.

Professoras, alunas e alunos de literatura na escola se queixam, dentre outros problemas, do programa extenso demais, concentrado em informação superficial e aligeirada sobre a literatura produzida no/sobre o Brasil. Longo e compartimentado, é inadequado para a limitada provisão oficial de cinquenta minutos semanais praticada na rede pública.

Um número significativo de estudantes culpa o estudo de literatura na escola por seu afastamento da leitura como fonte de lazer, informação e prazer. Alguns estranham o distanciamento entre o cânone e a construção de sua cidadania, dada a notória ausência de questões de etnia, gênero e políticas sociais atuais. Tais ausências se tornam mais agudas pelo fato de que, dentre o alunado da rede pública, encontra-se predominância de mulheres jovens, não brancas, da classe trabalhadora. Seria legível e legítima uma representação de sua identidade social, cultural e política em textos literários nacionais? Por que a seleção canônica parece comprometida com um projeto de educação falocêntrica, europeizada, colonizadora e embranquecida, afinada com os segmentos economicamente privilegiados?

Para concluir o texto, não a reflexão

Ao longo de obras didáticas em que não se estimula entre discentes a problematização do conhecimento, alunas e alunos não são responsáveis pelo próprio saber: não se questionam valores nem instituições, não se discutem gostos, cânones nem programas. Estudantes chegam ao final do terceiro volume pedagógico-literário incapazes de questionar as diferenças e os tratamentos de cada gênero na análise da obra estudada, em que costuma ser quase total a ausência de nomes femininos, do Quinhentismo ao Pré-Modernismo. Ou seja, quando a mulher escreve, o faz sobre os limites de seu deslumbramento, de seu entorno imediato: somos tão ‘iguais’ em pensamento, sensibilidade e imaginação que não há necessidade de identificação pessoal.

Mulheres são sujeitos sociais parcialmente invisíveis na literatura nacional, embora o contingente feminino na população docente e discente nas escolas públicas seja elevado. Mas os limites de sua importância social e política ficam claros frente à escassez de recursos que evidencia: educação escolar é tarefa de mulher. Sendo assim, é apenas coerente a manutenção da invisibilidade de nosso gênero nos modelos canônicos, mantendo perfeito e intocado o status quo – até mesmo quando o livro didático é de autoria feminina.

Educar, repito, reproduz a estrutura dinâmica e o movimento dialético do processo histórico de produção do ser humano, buscando a conquista de sua forma humana. E se a literatura deveria ser o meio ideal para encontros conscientes e criativos consigo e com o Outro, que encontros estão sendo produzidos na prática quotidiana de sala de aula? A que sujeito social visam os programas, os livros didáticos, o cânone? Que sensibilidades estão sendo despertadas, que universo cultural ampliado, que conhecimento linguístico-literário construído entre as mil páginas dos livros didáticos de literatura? Quando nos daremos conta da estigmatização dos papéis na vida real e do seu modo de representação na literatura e na escola?

É urgente repensar os objetivos, os conteúdos, os programas de educação literária. É urgente abandonar o modelo implantado no currículo escolar da Primeira República, de estudos da história da literatura, e reformular teorias e práticas. Senão, para que servem nossos encontros e reencontros?

Referências

BANCROFT, Michael. Why Literature in the High School Curriculum? English Journal, NCTE, Illinois, v. 83, n. 8, p. 23, dez. 1994

GILLESPIE, Tim. Why Literature Matters. English Journal, NCTE, USA, v. 93, n.8, p. 15-18, Dez. 1994.

LEAHY-DIOS, C. M. Literature education as a social metaphor. Tese de PhD, Universidade de Londres, 1996, mimeo.

Publicado em 24 de abril de 2012

Publicado em 24 de abril de 2012

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.