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Quem precisa de heróis?

Alexandre Amorim

Há alguns dias, comemoramos os feriados dedicados a duas figuras ao mesmo tempo históricas e lendárias: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e Jorge da Capadócia, o soldado conhecido como o São Jorge ou como o orixá Ogum. É mais fácil provar a existência de Tiradentes, principalmente pela proximidade temporal de sua vida, no século XVIII, mas não podemos deixar o ceticismo nos impedir de acreditar na existência de um soldado romano cujo nome se aproxime do português “Jorge”. O fato é que são dois heróis aclamados no Brasil, por razões distintas, mas que convergem em duas questões fundamentais a serem tratadas neste artigo: a luta pela liberdade e a construção do herói.

Senhor dos metais e abridor dos caminhos na umbanda, Ogum é o guerreiro de Aruanda, a cidade etérea reconhecida por parte do candomblé como morada dos seres de caridade e dos orixás. Assim como a figura católica de São Jorge, são dois ícones ligados à luta contra as forças hostis ao homem, seja a força da natureza, sejam as forças do mal. Diz a lenda do cavaleiro romano que sua sublevação contra o imperador Caio Diocleciano e a favor do cristianismo o levou a ser torturado e degolado. Na mais conhecida oração feita a São Jorge, o orador declara estar vestido com as roupas e as armas do soldado, que teriam poderes fantásticos para protegê-lo. Assim, o santo é o herói que luta pela verdade e socorre seus seguidores. A imagem mais conhecida do santo guerreiro é a dele vestido em roupas de cavaleiro medieval, em um cavalo branco e subjugando um dragão com sua lança.

Tiradentes era também da cavalaria, um alferes (que corresponde a um segundo-tenente, hoje), e também se rebelou contra o poder estabelecido – no seu caso, contra o governo português no Brasil. Único inconfidente condenado à morte, enquanto seus colegas de conjuração foram exilados, seu enforcamento foi seguido de esquartejamento, seus membros foram colocados à vista da população e seus descendentes declarados infames. Sua imagem mais usual é vestido com um manto branco, de barbas e cabelos longos, com a corda que o enforcaria em seu pescoço. Historiadores consideram essa imagem muito pouco provável, uma vez que os presos tinham cabelos e barbas raspados, mas é muito comum relacionar essa sua imagem à de Jesus Cristo, e obviamente essa relação não é casual.

Ambos defenderam suas verdades, e muitos se identificaram com essas verdades. Se a Coroa portuguesa considerou a luta de Tiradentes infame e abominável, a quase totalidade do povo brasileiro defende sua luta como uma busca pela liberdade de nosso povo. Se Roma considerou Jorge um traidor, os cristãos o consideram um santo. Está visto que, mesmo entre heróis, existem sempre os dois lados de uma moeda. O heroísmo é sedutor; a fé em uma verdade é encorajadora e animadora. Mas é preciso compreender que lutar pela verdade é lutar por algo subjetivo e cheio de nuances, mesmo que essa verdade seja compartilhada pela grande maioria. É preciso aceitar que um herói não é infalível em suas crenças e que há sempre o anti-herói, com ideias antagônicas. O amadurecimento de uma sociedade está na capacidade de diálogo, e não na idolatria por um herói.

Tendo essas duas figuras se tornado míticas no inconsciente coletivo do povo brasileiro, o santo é usado como suporte para os momentos difíceis, em que a reza é a expressão religiosa de nosso pedido de ajuda, e o inconfidente serve como exemplo de bravura e honestidade. O problema é que o suporte da reza se torna desculpa para que o crente não se esforce além do próprio pedido de ajuda, e o exemplo do herói acaba sendo um referencial a ser apontado, mas nunca a ser seguido.

A necessidade de heróis não seria condenável por si só. Todos nós nascemos e crescemos envolvidos por lendas, fábulas, contos infantis, crenças pessoais e histórias que nos motivam a seguir em frente. As experiências de um povo são passadas em histórias contadas, escritas – narradas, enfim. Mas o poder da narrativa heroica está justamente em insuflar o heroísmo necessário em cada um de nós, e não apenas exibir atos de heroísmo distante, como lendas que não tangem nossa realidade. Os atos de heroísmo de cada príncipe refletem a potência de coragem existente em cada criança, que escuta a fábula e reconhece em si a vontade de bravura e lisura verificada na nobreza do herói. E assim deve ser com os heróis históricos ou com os santos que nos enchem de ânimo para levar a vida cotidiana. O herói é um ícone, não uma muleta.

E, assim mesmo, todos nós precisamos de heróis. Mas todos nós precisamos, também, de cautela na construção desses heróis, que podem ser fonte de nossa coragem ou eternos repositórios de nossa covardia.

Publicado em 15 de maio de 2012

Publicado em 15 de maio de 2012

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