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O amor, essa ambiguidade

Alexandre Amorim

Ao se despedir oficialmente do futebol, em 1977, Pelé convocou todo o público a dizer com ele três vezes a palavra Love. O discurso foi feito em inglês, porque o rei do futebol estava em campos norte-americanos, jogando pelo Cosmos. Pode ser uma bonita metáfora considerar o nome do time e o pedido do jogador: um amor cósmico, universal. Mas um ato falho – ou erro gramatical de um inglês claudicante – torna ainda mais bonito esse discurso de Pelé. Se repararmos bem, o Rei diz: “please, say to me...” e então se corrige: “say with me three times: love”.

Todos sabemos que Edson Arantes do Nascimento sempre se refere à sua imagem pública – o Pelé – na terceira pessoa. É um distanciamento, talvez necessário para que a pessoa se diferencie da persona. E por isso mesmo, porque Pelé é um personagem e Edson é um ser humano, o ato falho tenha sido tão comovente. Depois de maravilhar o mundo com dribles, cabeçadas, gols e quase gols, o jogador resolvia se aposentar. Largar a vida pública que o transformou em semideus. “Por favor, digam para mim: amor” era um pedido muito íntimo a todos que adoravam Pelé. Era um pedido de Edson para ser amado, ele também. Em uma fração de segundo, o personagem volta à cena, e conclama: “digam comigo”, porque Pelé – o personagem – sabe que todos dirão com ele o que ele quiser. Em um átimo de tempo, Edson pediu para ser amado, humanizando o que seria um discurso genérico.

Caetano Veloso, logo depois, fez canção citando o discurso. E mesclou o amor universal com o amor singular. Dizia a seu amor que o queria, que o amava, e citava o amor pelo mundo inteiro e pelo Brasil. O músico resumia: “Na maré da utopia / Banhar todo dia / A beleza do corpo convém”. É bom banhar-se de utopia, é bom que o indivíduo aceite a harmonia de um amor universal, mesmo que genérico, mesmo que utópico. É bom entrar no mar da idealização.

Porque o amor é ambíguo. É querer ser amado quando se diz que ama. É querer que o amor ao próximo seja sentido também por si mesmo. E aqui eu peço licença ao leitor para usar meu lado beatlemaníaco e ilustrar, com uma breve história da banda, a ambiguidade do amor.
A primeira canção dos Beatles a entrar na parada de sucessos foi Love me do. Uma canção simples, talvez até simplória. A letra, ainda mais boba do que a melodia: “Amor, me ame, mesmo / Você sabe que eu te amo / Eu sempre serei sincero / Então, por favor, me ame, mesmo”. Boba, mas honesta. É o que todo apaixonado espera de seu par: um amor sincero. Se eu amo alguém, espero mesmo que seja recíproco. Aqui, os Beatles ainda não pensavam em amor ao próximo como amor universal ou em comunidades baseadas no tema hippie de paz e amor.

Mas, dois ou três anos depois, a música The word trazia uma nova visão do que o amor podia significar. “No começo, não entendi bem, mas agora descobri que a palavra é boa”, cantava John Lennon. E a palavra era “amor”. Ao dizer essa palavra, segundo a canção, você se libertava. John ainda dizia, na letra, que queria mostrar a todos “a luz”. Era o amor iluminando caminhos, libertando e trazendo certezas. Era o amor unindo, porque se mostrava como verdade.

E a juventude que seguia os Beatles entendeu quando, após mais um ano, o mesmo Lennon disse que “tudo de que se precisa é amor”. Tudo o que você faz pode ser feito por outro, mas você pode ser único – só precisa de amor. Os hippies entenderam que o amor poderia unir a todos se todos entendessem que podiam ser únicos e nada ao mesmo tempo. A utopia de se tornar universal e singular ao mesmo tempo virou uma bandeira e, como toda bandeira, se perdeu no caminho através de discursos e ideologias.

“No final, o amor que você leva é o amor que você faz”. Essa é a letra da última música do último disco dos Beatles, sete anos depois de cantarem Love me do. A música se chama The end. Os Beatles terminavam sua carreira falando de amor. E conseguiam resumir em poucas palavras toda essa grande ambiguidade. Amar é largo e pequeno. É a soma de sentimentos tão profundos quanto a amizade e tão superficiais quanto a paixão – e essa soma resulta em deixar de lado o que é profundo ou superficial. Amor é caridade e desejo. É querer o bem ao próximo, mas sem se esquecer de si mesmo. No amor, cabe o todo. Por isso, ele pode ser universal. Mas também cabe a si, e por isso ele pode ser singular.

E viver o amor, essa complexidade absurda, é o que todo mundo quer. De Caetano a Beatles, de Edson a Pelé.

Publicado em 10/01/2012

Publicado em 10 de janeiro de 2012

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