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Educação de classe

Alexandre Amorim

O Theatro Municipal do Rio de Janeiro apresentou Turandot, de Puccini. Quem não conhece a ópera sabe pelo menos assobiar a ária “Nessun dorma”, que Pavarotti popularizou. Composta de melodias apaixonadas, de enigmas e sacrifícios pelo amor, a ópera é uma ótima e romântica oportunidade de visitar o velho “theatro” e, mais uma vez, ficar boquiaberto com os detalhes rebuscados de cada corrimão, cada vitral, cada piso e cada janela. A suntuosidade do lugar pode parecer opressora, mas a nostalgia de uma época em que as construções tinham tempo para ser feitas tão cheias de detalhes e com uma preocupação tão grande com o belo acabam por trazer bem-estar.

Mas, infelizmente, essa crônica não vai ser sobre o Theatro Municipal nem sobre seus concertos, óperas e apresentações, quase sempre tão deleitáveis. Aliás, vai ser sobre o Theatro, mas apenas uma pequena parte dele, e sobre seus frequentadores.

Não escrevo essa crônica porque fui ao Municipal, mas porque fui a um banheiro do Municipal.

Banheiros lindos. Mármores e dourados beirando o kitsch, mas respeitando a decoração rebuscada da casa. Podem ser um exagero, mas estão em sintonia com o todo, e não há do que reclamar dessa fração da arquitetura local. Enquanto podemos dividir a contemplação das partes comuns do teatro, só podemos manter para nós a admiração pelos rococós privados dessa área particular.

Pois é, sei que os leitores notaram a coincidência das palavras. É local privado, e não é à toa que “privada” é sinônimo de vaso sanitário. O dicionário define o termo “privado” como algo que “é pessoal e não expresso em público”. É exatamente isso: no banheiro, nada é público. Cada indivíduo está em um momento particular e intransferível.

Mas antes que comecem a achar este texto uma ode à escatologia, desenvolvo um pouco mais meu pensamento.

Acontece que, após um intervalo da ópera, o banheiro encontra-se imundo. E não por desleixo dos funcionários, mas por descaso dos seus usuários. Enquanto se anda pelos corredores do teatro, ou mesmo durante as apresentações, o público parece de uma educação impoluta. Mesmo que apareça por ali um ou outro político corrupto ou mesmo um nouveau riche louco para ser notado, todos parecem saber se comportar muito bem e ter todos os códigos morais decorados. Isso se sustenta até abrir a porta do banheiro e entrar. Ali, uma vara de porcos parece ter invadido o sagrado espaço da música clássica e decidido ficar à vontade entre os vasos. O que muda entre um lado e outro da porta do banheiro? O que muda entre o lado social e o lado privado?

Seria a educação um estado meramente social?

Sempre acreditei que um ser educado traria essa educação como parte integrante de seu próprio ser. Que a educação fosse algo não só acrescido à formação de um indivíduo, mas internalizado como experiência ôntica. Formação, para mim, é construção do ser – e a educação é parte da formação do indivíduo. Seria ingenuidade acreditar que a educação não serve também como repressão a instintos e a outras tendências desse mesmo indivíduo, mas em que momento essa repressão deixa de ser apenas orientadora e passa a ser destrutiva o bastante para que esse indivíduo passe a se rebelar contra ela? Em que momento o indivíduo se rebela contra o ser social a ponto de não mais se importar com o próximo nem com suas próprias condições de bem-estar? As pressões sociais são tantas que um mero local privado é oportunidade suficiente para que sua educação (sendo um estado social) seja esquecida?

Sinceramente, são questões que me incomodam. E, sinceramente, acho que deveriam incomodar a todos nós, pensadores e atuantes da educação. Incomoda pensar que todo o nosso esforço cai apenas em um treinamento social, incomoda pensar a educação como mero formador social, incomoda não enxergar em um ser educado nada além de um verniz de comportamento. O que é, afinal, a educação? Essa é a questão que deve incomodar.

Incomodar como incomoda um cheiro ruim.

Publicado em 29 de maio de 2012

Publicado em 29 de maio de 2012

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