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Meu amigo Charlie Brown

Mariana Cruz

Minha filha de quatro anos ganhou, por esses dias, o DVD Snoopy & Charlie Brown – coleção anos 60. Coloquei para vermos juntas. Ela curtiu no começo, logo depois me pediu para botar um filminho qualquer “das princesas” (essas moças são uma verdadeira febre para as meninas, até tentei fugir dessa ditadura, mas, diante da quantidade dos apelos comerciais, desisti). Enrolei para não trocar o filme e, cinco minutos depois, ela havia adormecido. Para minha sorte, pude continuar assistindo.

Lembro-me de que quando criança curtia o Snoopy, entendia algumas piadinhas, mas não as mais sutis. Essas fui entender somente agora. Ter visto alguns episódios novamente apenas reforçou o que já sabia: trata-se de um clássico. A começar pela trilha sonora, o jazzinho que rola ao fundo, dando um quê de sofisticação ao desenho, e que casa perfeitamente como aquele cenário dos subúrbios norte-americanos, com casas de quintal grande e ruas arborizadas. Mas nada se equipara aos personagens cheios de fragilidades, defeitos e qualidades: gente como a gente. Dá até para lembrar dos nossos próprios amiguinhos da rua – mesmo quem não os teve –, pois aquelas crianças parecem ter feito parte da infância de qualquer pessoa. Elas, apesar de apresentarem características fortes que nos permitem catalogá-las, passam longe do modelo caricato que por vezes recaem sobre certos personagens infantis. Estão lá a autoritária, o gênio, o inocente, a sagaz, o sujinho, o sem noção e o sensível que sempre se dá mal. Este é Charlie Brown, o dono do Snoopy. Todas as suas ações, sua forma de olhar a vida levam-nos a encará-lo como um looser, mas não um looser típico, porque, além de ter um irresistível carisma, tudo que ele faz dá errado, mas, no fundo, dá certo. A árvore de Natal escolhida por ele é a mais pobrezinha – e é justamente a que reflete o espírito natalino; a menina ruiva por quem ele se apaixona não lhe dá a mínima e ele ainda é alvo do deboche de seus amigos por isso – mas no último dia de aula recebe um bilhete de sua amada; o time de baseball do qual ele é capitão só conhece a derrota – apesar disso, ele mostra sua probidade ao não aceitar a proposta de tirar as meninas e seu cachorro do time em troca de uniformes. Não bastasse a sucessão de fracassos, seus amiguinhos não lhe poupam críticas. Assim, ele é frequentemente atacado com adjetivos nada elogiosos: “você é um besta, Charlie Brown”; “você já foi bobo antes, Charlie Brown, mas agora você se superou”; “você não tem jeito, não tem mesmo”; ele mesmo reconhece seu insucesso: “tudo que eu faço acaba sendo um desastre”. Mas é justamente esse jeito looser, mas empenhado, bem-intencionado, respaldado pela ética, que dá todo sentido ao desenho, que consegue, de um modo torto, passar uma lição de superação sem moralismos ou pieguice. Ao contrário, sempre utiliza um humor irônico, e a história acaba tendo um happy end inesperado.

Charlie Brown é melancólico e sonhador. Os mais duros podem até classificá-lo como um deprimido precoce. Mas o importante é que, contra tudo e todos, ele faz o melhor possível, mesmo que suas tentativas estejam fadadas ao fracasso. Por essas e outras, as histórias de Charlie Brown e seu cão, apesar de terem mais de meio século de existência, continuam atualíssimas.

Por todas essas características, fiquei matutando sobre o motivo pelo qual minha filha não curtiu o desenho, apesar da música, do colorido e dos diálogos fáceis. Talvez esteja exagerando na interpretação e ela não tenha gostado simplesmente porque não gostou. Mas me ocorreu que seu incômodo diante da fita poderia decorrer do fato de ela estar, nesta fase de sua vida, ainda inserida na lógica maniqueísta do mundo dos contos de fadas, com suas princesas e bruxas, heróis e vilões bem definidos, em que o bem e o mal são dois lados que não se tocam. Os vencedores são os bons e os perdedores, os maus. Charlie Brown é um anti-herói, e por isso reúne em si características opostas; é frágil e forte – e é justamente isso o que o torna tão rico.

Para minha filha, deve ser estranho ver o personagem principal, que sempre quer fazer tudo direito, fazendo tudo errado e ainda por cima ser constantemente achincalhado pelos seus amiguinhos. Como pode o herói da história ser tratado como um bobo?

Um dia, quando ela perceber que somos todos fortes e fracos, vencedores e perdedores e que dentro de nós está tudo “junto e misturado”, talvez ela entenda os conflitos de Charlie Brown e passe a gostar dele. Afinal, a dúvida, o incerto, o erro são o que de fato enriquece os personagens, tanto na vida real como na ficção. Se não fosse assim, o que seria de Hamlet se, ao invés de levantar a questão sobre “ser ou não ser”, ele de cara afirmasse “é”?

Publicado em 29/05/2012

Publicado em 29 de maio de 2012

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