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A Escola de Annales e a literatura pós-moderna

Alexandre Amorim

Na década de 1930, na França, a Escola de Annales subverteu o que até então era aceito como História: a narrativa dos fatos com base apenas em documentos oficiais e o positivismo como única tendência não poderiam mais ser a única maneira de estudar História. Ações e reações ainda são consideradas fatos históricos, mas sua origem nem sempre será conhecida: o conhecimento na História deve ser adquirido mediante a problematização da própria história, e não por meio de uma busca por resultados.

Este texto visa analisar o conceito de História da Escola de Annales como uma influência sobre a produção literária pós-modernista. A narrativa histórica pode se tornar obra literária quando a individualidade dos personagens e a liberdade de narrativa são preservados, no sentido literário. A noção de História depois de Annales se tornou muito mais literária, já que a individualidade e uma narrativa baseada não apenas em documentos passaram a ser aceitas.

A Escola também endossou a interdisciplinaridade na História. As Ciências Humanas passam a ajudar os estudos históricos. Elementos que pertenciam apenas à Literatura ou à Psicologia, por exemplo, agora são analisados ​​como parte de uma determinada cultura; portanto, parte da história humana. A ciência sempre ajudou a História; a influência do cientificismo já era uma tradição, mas a valorização dada pela Escola de Annales a "elementos involuntários e impertinentes" (na definição de Carlo Ginzburg) concedeu à História um novo paradigma de qualidade. Depois de Annales, esses elementos são provenientes de outras Ciências Humanas e tratados como documentos qualificados.

A problematização em si e a permissão de interdisciplinaridade foram uma enorme influência nas Ciências Humanas, incluindo a Literatura. Os estudos críticos dos textos e das pistas relacionadas a esses textos abriram as portas para um novo paradigma na arte da ficção. Era um viés já notado no final do século XIX, em que histórias de detetive foram escritas com base em uma série de pistas (detalhes, qualidades, elementos involuntários) fundamentais para suas conclusões (vide Edgar Allan Poe).

Annales passou a levar pensamentos e sentimentos individuais em consideração, e esses traços individuais tornaram-se parte do conhecimento científico. As características de raciocínio e emocionais de uma pessoa são agora uma peça a ser estudada, e tão importante quanto um documento. A quebra desse paradigma ampliou os horizontes da Literatura para uma comunhão com outras ciências humanas, principalmente Psicologia e História. A narrativa na literatura pode agora ser enquadrada com a ajuda de dispositivos como traços individuais que podem não ser consistentes com a trama, fatos duvidosos e pontos de vista psicológicos das personagens. Um antigo paradigma foi quebrado: o observador (em Literatura, o autor ou o narrador) teria que ser tão objetivo quanto podia. Agora, a problematização e as perguntas apresentadas pelo observador sobre seu texto podem se tornar partes importantes de uma narrativa, seja científica ou ficcional. Se a narrativa sofreu um corte profundo em suas fontes tradicionais, o narrador é agora convidado a mostrar ao leitor as peças que compõem esse recorte. Como afirma Pedro Brum Santos, em seu Teorias do romance: relações entre ficção e História:

o romance, pelo fato de ser uma manifestação em prosa, de possuir um cunho narrativo e de consistir num discurso que incide sobre uma realidade vivida, recuperando aspectos da vida corrente, passa a dividir com a historiografia a função de organizar os fatos em uma ordem discursiva. (...) A forma prosaica eleita pelo romance, o caráter de painel de seu enredo, a caracterização de seus protagonistas, os eventos que elege contar, tudo isso o coloca mais próximo do historiográfico.

Um evento não é visto como o fato em si, mas pela problematização em torno daquele fato. Nenhum evento pode ser entendido por uma maneira única de ser narrada, daí a impossibilidade de uma única noção da realidade e a incapacidade de narrar eventos como eles realmente são. Os elementos involuntários e impertinentes encontrados para definir esse evento o tornam tão múltiplo quanto os métodos para narrar esse evento. Os traços individuais de cada personagem envolvido, e do próprio narrador, são componentes dessa realidade. Ciente deste fato, o autor pós-moderno pede ao leitor para ser mais um elemento. Os pedaços de realidade estão expostos e o leitor deve estar preparado para reconhecer que essas peças provavelmente nunca mais serão reunidas da mesma forma novamente.

A problematização dos fatos, a intertextualidade e o paradigma de indexação são três fundamentos para a ideologia da Escola de Annales. Os pós-modernos foram influenciados por essa ideologia, e a fragmentação da narrativa é uma das principais consequências dessa influência. A história não pode mais ser vista como uma sucessão de eventos documentados formando um fato importante; a narrativa desses eventos deve levar em consideração as outras vozes daqueles que sofreram sua influência. A multiplicidade de vozes narrando os acontecimentos acabou por dar a um fato múltiplos pontos de vista e esse fato tornou-se uma pilha feita de versões de si mesmo. Um fato não é mais visto como uma realidade, mas como um pacote completo de diversas versões da realidade.

Na literatura, essas versões da realidade se encaixam como escolha da narrativa de um texto. A narrativa pós-moderna é aberta para abraçar as muitas versões de um fato, mas essa narrativa também está ciente de novas versões a serem indexadas pelos leitores. Se, em Annales, o máximo de elementos devem ser pesquisados para a determinação de um fato, na literatura pós-moderna o narrador reconhece sua condição de observador limitado e se resigna a nunca compreender totalmente a realidade.

Se, em um novo paradigma de História, o narrador se torna um pesquisador das muitas versões que um fato pode ter, na literatura pós-moderna o narrador é aquele que apresenta aos leitores a impossibilidade de ver a verdade em sua totalidade. A realidade se tornou tão ficcional quanto qualquer elemento de Literatura.

Publicado em 5 de junho de 2012

Publicado em 05 de junho de 2012

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