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Ações e recomendações da Unesco para o Brasil e Portugal, na condição de “partido político”, em torno da internacionalização da educação e do conhecimento

Zuleide S. Silveira

Doutora em Educação (UFF); professora de Sociologia no Cefet-RJ

Ações e recomendações para a educação

A ciência e a tecnologia, em suas múltiplas dimensões – seja em sua componente ideológica, seja em seu caráter fetichista ou, ainda, como mito da modernidade – vêm sendo caracterizadas pelos organismos supranacionais por um certo determinismo que tem na organização da produção e na gestão da força de trabalho o resultado de um imperativo tecnológico. Invoca-se o debate sobre a transição, quer para uma sociedade do conhecimento, quer para uma sociedade coesa, igualitária e democrática, cujo motor estaria na produção de ciência, tecnologia e, particularmente, de inovação. Quanto maior a inovação, maiores as transformações econômicas e sociais.

Portanto, na visão do capital e de seu "partido político, torna-se necessário fomentar a inovação, acelerar a produção do conhecimento científico-tecnológico em escala mundial, o que depende da produção de pesquisa em áreas tidas como estratégicas, realizada em universidades, em laboratórios de Pesquisa & Desenvolvimento de empresas ou por meio da parceria de ambos, universidade e empresa; e, ainda, promover maior interação dos fluxos de informação, tecnologia e pessoal qualificado.

Nota

O partido político, em Gramsci, não é apenas o partido de legenda, mas também todo e qualquer sujeito coletivo que toma para si a tarefa política de realizar uma “reforma intelectual e moral”, manifestando-se de modo concreto na e a partir da reforma econômica da sociedade. Unidade de uma ampla rede de instituições sociais e políticas que compõem a sociedade civil, o partido político realiza "uma análise histórica (econômica) da estrutura social do país dado", com vistas a elaborar uma linha política capaz de incidir efetivamente sobre a realidade, com vistas à “transformação cultural” por meio “de certo grau de coerções diretas e indiretas” (GRAMSCI, 2007, p. 17).

Trata-se, na realidade concreta, de uma resposta aos processos de internacionalização da economia e da tecnologia, que, em sua dinâmica, tornam indispensável a educação em geral e a formação do trabalhador coletivo em particular, em sua face internacionalizada.

O processo de internacionalização da educação, no Brasil e em Portugal, tem se concretizado não só pela cooperação entre Estados-nações ao abrigo de acordos, programas de intercâmbio bilaterais e integração regional como também por mediação de organismos supranacionais, cujo papel tem sido decisivo na elaboração da “agenda globalmente estruturada para a educação” (DALE, 2004).

No período compreendido entre o pós-Segunda Guerra e o de implantação e implementação das políticas neoliberais, é possível verificar que a influência de organismos como o Banco Mundial, a Cepal, o Mercosul e a Unesco se sobressai em países da América Latina em geral e no Brasil em particular, enquanto a preponderância do Banco Mundial, da OCDE e da União Europeia sobre a Europa é marcante, particularmente em Portugal.

Nota

Teodoro localiza em Portugal quatro momentos históricos e distintos de intervenção do Banco Mundial, OCDE e Unesco antes da integração do país à União Europeia. O primeiro, com a OCDE, tem como marco a participação de Portugal no Plano Marshall, estendendo-se até 1974; o segundo, com a Unesco, no período revolucionário de 1974-1975; o terceiro, com o Banco Mundial, na fase de normalização da Revolução, acontecida entre 1976 e 1978; e quarto, novamente com a OCDE, no período que antecede a integração à Comunidade Econômica Europeia/União Europeia.

A Unesco, órgão de consultoria e coordenação para assuntos financeiros, técnico-metodológicos e pedagógicos das reformas educativas, tendo como mote a educação permanente, toma para si a tarefa de difusora “da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz” na suposta linha de frente de criação de uma nova ordem internacional.

Suas propostas respeitantes aos diferentes níveis e modalidades de educação abarcam a estrutura dos diversos sistemas educativos e as articulações entre formação geral, formação profissional e ensino superior, podendo ser resumidas nos seguintes aspectos: universalização progressiva da educação básica; democratização do acesso ao ensino superior; melhoramento da qualidade e eficácia do ensino, em geral, e do pessoal docente, acompanhados de mecanismos de avaliação com ajuda externa; adaptação do ensino profissional e ensino superior ao mercado; reforma das instituições de ensino; modernização curricular.

O caso do Brasil

No Brasil, a representação da Unesco, principal agência das Nações Unidas para a educação, estabelece-se no início do governo militar num contexto histórico em que as reformas educacionais vinham sendo fortemente balizadas por recomendações oriundas dos acordos MEC-Usaid.

Esses acordos MEC-Usaid inseriam-se num contexto histórico de alinhamento do governo brasileiro ao imperialismo norte-americano, sendo fortemente pautados pelo tecnicismo produtivista da teoria do capital humano, com o objetivo de orientar políticas e técnicas das reformas educacionais brasileiras à luz do desenvolvimentismo do país bem como do processo de internacionalização da economia nos marcos da divisão internacional do trabalho. Esses acordos tiveram papel decisivo no processo de reforma da educação brasileira, em geral, e na reforma universitária, em particular.

Nesse período, os convênios assinados com a Unesco não ofereciam, ainda, a possibilidade de o Organismo apresentar um plano de educação completo, mas apenas realizar pesquisas que apontassem os problemas educacionais nos planos regional e nacional, bem como, na área cultural, no que diz respeito à cooperação para a conservação, preservação e restauração do patrimônio cultural (UNESCO, 1981).

Entretanto, a partir do ano de 1982 a Unesco passou, mais concretamente, a intervir na realidade educacional brasileira. O Acordo Geral de Cooperação Técnica em Matéria Educacional e Científica, apontando para o fortalecimento dos laços de cooperação entre Brasil e Unesco, previa a cooperação para o desenvolvimento de atividades consideradas prioritárias pelo governo, de acordo com as linhas de atuação estabelecidas pela Unesco em suas conferências, relatórios etc.

Em tempos de abertura política, o fortalecimento da associação, dependente e consentida, do governo brasileiro ao imperialismo passa a combinar coerção com persuasão, envolvendo representantes das instituições de ensino para compor o grupo executivo do acordo.

Um Grupo Intersetorial de Coordenação (GIC), constituído para auxiliar a Unesco e o governo na execução do acordo terá a seguinte composição: o secretário geral do Ministério; o chefe do Departamento de Cooperação Cultural, Científica e Tecnológica do Ministério das Relações Exteriores; o secretário de Cooperação Econômica e Técnica Internacional da Secretaria de Planejamento da Presidência da República; o representante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); o representante do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras; o representante do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC); o representante da Unesco no Brasil (BRASIL/DAI, 1982).

É possível afirmar que os termos de recomendações emanadas anteriormente, nos anos de 1962 e 1963, estiveram presentes no Acordo Geral assinado em 1981 e em documentos exarados pelo Conselho Federal de Educação (MEC/CFE) da década de 1970 e pela Secretaria de Ensino Médio e Técnico (MEC/SEMTEC) dos anos de 1990, como o estabelecimento de três níveis de ensino, a formação profissional — “ensino para a formação de trabalhadores qualificados”, “ensino para a formação de técnicos” e “engenheiros e quadros superiores” —, além de sustentar uma relação entre educação e desenvolvimento tecnológico.

Nota

Silveira (2010) destaca que a Recomendação Internacional sobre Ensino Técnico e Profissional elaborada pela Unesco em 1962 propunha a “educação para a vida em uma era tecnológica”, orientando os sistemas nacionais de ensino a elaborar planos de ensino técnico e profissional destinados a formar pessoal para os três setores da economia, nos três níveis de ensino (fundamental, médio e superior). Em fevereiro de 1963, o Conselho Federal de Educação/MEC aprovou o parecer que originou os cursos de Engenharia de Operação. Como se sabe, essa modalidade de ensino destinava-se à formação de engenheiros voltados para atividades práticas, enquanto o trabalho intelectual (planejar e projetar) ficava a cargo de engenheiros com formação plena.

No período de implantação das políticas neoliberais, a intervenção da Unesco no Brasil ganha fôlego, sob os auspícios da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia, de 5 a 9 de março de 1990, cuja meta “viável” é “Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem” (NEBAS), as quais compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como leitura e escrita, expressão oral, cálculo, solução de problemas) quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (conhecimentos, habilidades, valores e atitudes) necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo (Unesco, 1990).

As bases para o projeto de educação em nível mundial, determinadas na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, encontram boa acolhida por parte dos denominados “arautos da reforma” (SHIROMA; EVANGELISTA, 2002, p. 82-86). No ano de 1993, com base no Acordo Geral de 1981, foi assinado o primeiro plano de trabalho com o MEC, com vistas à elaboração do Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003) no governo Itamar Franco, tendo como ministro da Educação e do Desporto Murílio de Avellar Hingel.

Nota

O governo civil-militar legou à Nova República um quadro educacional funesto: aproximadamente 30% da população eram analfabetos; o índice de evasão e repetência aproximava-se de 50%; 23% dos professores eram leigos. Com estes índices, o Brasil integrou o grupo dos países com maior taxa de analfabetismo (E-9) na Conferência de Jomtien, tendo que se comprometer a promover políticas públicas de educação a partir do Fórum Consultivo Internacional de Educação para Todos.

Assim como Silva Jr. (2002), afirmamos que o Plano Decenal de Educação para Todos é a expressão brasileira de um movimento maior, o da Agenda Globalmente Estruturada de Educação (DALE, 2004), orquestrado pela Unesco, assessorado e financiado pelo Banco Mundial, assumido pelo bloco no poder, movimento este que resultou na reforma educacional brasileira dos anos de 1990 e início dos 2000, promovida em todos os níveis e modalidades de educação, a partir de diretrizes curriculares, referenciais curriculares e parâmetros curriculares nacionais produzidos de forma hábil por intelectuais orgânicos do capital – empresários, pesquisadores e professores universitários – afinado com o poder público em todas as áreas de ação do Estado, particularmente a da educação.

Com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República, em 1995, as “posições consensuais” dos organismos supranacionais são assumidas e aprofundadas. Na realidade, o governo FHC, com base no tripé da plataforma de política neoliberal iniciada no governo Collor de Mello — aprofundamento da abertura comercial, privatização de empresas e de serviços públicos, desregulamentação das relações de trabalho —, apropriando-se dos novos paradigmas tecnológicos, efetiva alterações significativas na educação, envolvendo as políticas públicas de avaliação institucional e educacional, o funcionamento dos sistemas de ensino, suas concepções, o currículo dos cursos etc. Por seu turno, o trabalho respondia predominantemente às pressões das transformações econômicas e tecnológicas com elevação e persistência das taxas de desemprego, proliferação de oportunidades ocupacionais com condições de trabalho de pior qualidade, cristalização dos baixos rendimentos das massas.

Pode-se afirmar que a reforma empreendida no governo Cardoso traduz fielmente as propostas apresentadas pelo diretor geral da Unesco, Federico Mayor, por ocasião do colóquio internacional E o desenvolvimento, realizado em Paris em 1994, incorporadas ao relatório Educação - um tesouro a descobrir, coordenado por Jacques Delors, publicado no ano de 1996, cuja nota introdutória é de Paulo Renato de Souza, então Ministro da Educação.

Vale destacar também o compromisso coletivo assumido para atingir os objetivos e metas de Educação para Todos, assinado no ano de 2000, em O marco de ação de Dakar, que destacava como essencial que novos compromissos financeiros concretos fossem firmados pelos governos nacionais, doadores bilaterais, multilaterais, incluindo-se o Banco Mundial, os bancos regionais de desenvolvimento, a sociedade civil e as fundações privadas (Unesco, 2000).

No que mais nos interessa, desde o final da década de 1970 e início da de 1980 a Unesco vem intervindo no processo de reforma universitária em geral e do ensino superior em particular. Junto a outras entidades internacionais (como o MCE, OMS, OEA, OCDE, FAO, Conselho Internacional de Educação de Adultos, Associação de Universidades de Língua Francesa, Associação Internacional de Universidades e Associação Internacional de Professores), a Unesco, em 1977, no seminário A contribuição prática dos estabelecimentos de ensino superior ao desenvolvimento das comunidades, já apontava para questões que se encontram presentes nos debates sobre a reforma universitária no Brasil e em Portugal.

Às funções da universidade, postas em relevo sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento econômico mundial e ao regional, no sentido de favorecer a instauração de uma nova ordem econômica internacional, outras foram e vêm sendo acrescentadas: aumentar o nível cultural e profissional das populações, numa perspectiva de educação permanente; realizar pesquisa na solução de problemas prioritários no desenvolvimento econômico; prestar serviços sob a forma de estudos, consultoria e pesquisa; colocar à disposição do público [leia-se setor privado] grupos de pessoas, laboratórios, computadores, meios de pesquisa, documentação, infraestrutura sanitária ou esportiva etc. (UNESCO, 1977, apud DIAS, 1981).

Nota

Marco Antonio Rodrigues Dias foi diretor da Divisão do Ensino Superior da Unesco em Paris no período 1981-1999 e exerce o cargo de consultor internacional e conselheiro do reitor da Universidade das Nações Unidas desde 1999.

Para que a universidade possa dar conta de seu encargo, a Unesco postula a descentralização geográfica das instituições; reestruturação dos estabelecimentos de ensino superior; diversificação, reorientação e reorganização dos programas de ensino e pesquisa numa perspectiva interdisciplinar; adaptação dos métodos pedagógicos a novas clientelas de estudantes; reforço da ligação ensino, pesquisa e produção e relações mais estreitas com os meios da indústria e da agricultura; participação, nas funções de ensino, de especialistas não pertencentes ao quadro docente tradicional; informação ao grande público sobre as instituições de ensino superior e participação das coletividades em suas atividades (UNESCO, 1977, apud DIAS, 1981).

A década de 1990 é profícua para a Unesco no que se refere à produção de conferências, seminários e relatórios sobre o ensino superior, como a Conferência sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária (1992), o Documento de Política para a Mudança e o Desenvolvimento na Educação Superior (1995), o Congresso Mundial sobre Educação Superior e Desenvolvimento de Recursos Humanos para o Século XXI (1997), a Conferência Mundial sobre o Ensino Superior no século XXI: visão e ação(1998), a Declaração sobre a Ciência e o Uso do Conhecimento Científico, firmada na Conferência Mundial sobre Ciência de Budapeste (1999) e publicada no ano de 2003, no Brasil, sob o título A ciência para o século XXI: uma visão e uma base de ação. Mais recentemente, citamos a Conferência Mundial sobre Ensino Superior 2009: as novas dinâmicas do Ensino Superior e Pesquisas para a Mudança e o Desenvolvimento Social.

Cabe destacar que a Conferência Mundial da Educação Superior, realizada em Paris em outubro de 1998, deslanchou o processo de discussão sobre a rentabilidade dos negócios educativos, culminado na IV Reunião Ministerial da OMC, realizada em Doha, no Catar, em novembro de 2001. Naquela oportunidade, foram apresentadas propostas sobre as normas que deveriam ser mantidas ou aplicadas em todos os campos de negócios para a liberalização do comércio internacional da educação. “Pelas regras deste fórum, cada país participante apresenta a outro demandas de abertura de mercado, segundo áreas de interesse. O Brasil elencou as suas, recebendo outras em troca, como a de abertura do setor de ensino superior” (UNESCO, 2004, p. 15).

A Conferência Mundial da Educação Superior de 1998 bem desvela a política da Unesco de apoiar e incentivar ações que possam contribuir para a integração regional de blocos econômicos. Não é a esmo que, por ocasião do Protocolo de Intenções entre Unesco e Mercosul, em 1997, Frederico Mayor destacou que uma das respostas mais eficazes para viabilizar a “globalização” seria a formação de blocos regionais que, começando por acordos de natureza econômica, converter-se-iam também em pactos políticos e civilizatórios, no sentido de promover avanços nos planos educacional, cultural, científico e tecnológico.

A Representação da Unesco no Brasil tem participado do processo de integração regional nas áreas da educação, ciência e da cultura, seja como parte integrante de um organismo supranacional, seja porque o representante no país é também o coordenador do programa de educação Unesco/Mercosul, cuja sede localiza-se no Brasil.

O discurso de racionalização dos recursos, autonomia e avaliação institucional consoante os documentos acima referidos vem se materializando, desde os governos FHC, passando pelos mandatos de Lula da Silva, na contrarreforma universitária, por meio de mecanismos de credenciamento de cursos, reconhecimento de títulos de graduação, avaliação e autoavaliação institucional e financiamento das atividades de formação e de pesquisa.

Ainda no governo FHC, a Unesco foi convidada pela Capes para elaborar o Informe sobre Educação Superior no Brasil, publicado em 2002 como parte do relatório geral sobre o Ensino Superior na América Latina, organizado pelo Iesalc/Unesco; o relatório final, Internacionalização da Educação Superior no Brasil, foi publicado em 2004, já no mandato de Lula da Silva.

É interessante notar que, nesse mesmo ano de 2004, a OCDE desencadeou um estudo de análise comparativa da educação superior em 38 países que se estendeu até o ano de 2008 com a finalidade de enfatizar o papel do ensino superior como motor da competitividade numa economia com base “no conhecimento internacionalizado” e sustentado pela pesquisa científica e “competitiva em nível global”. “The imperative for countries is to raise higher-level employment skills, to sustain a globally competitive research base and to improve knowledge dissemination to the benefit of society” (OCDE, 2008a, p. 4).

Considerando que a política de cooperação entre os países em matéria de educação, ciência, tecnologia e cultura tem ocorrido predominantemente no ensino superior de graduação e na pós-graduação, é nesse setor que a Iesalc/Unesco, em atenção às negociações do GATT, nos marcos da OMC, encontra maior possibilidade de comercialização dos “serviços educacionais”.

Nota

Para o GATT, o setor de serviços educacionais abrange educação “primária”, “secundária”, “pós-secundária”, e “terciária”, além da educação profissional e da educação de jovens e adultos. Tendo como objetivo principal diminuir as barreiras comerciais, que no caso dos serviços educacionais podem estar associadas aos subsídios dos governos ao setor, à importação de material escolar, à necessidade de vistos, reconhecimento e revalidação de diplomas, aos obstáculos e/ou exigências no processo de autorização para funcionamento de instituições de ensino, cursos e sistemas de creditação, bem como na celebração de convênios, o GATT entende que os serviços educacionais podem ser oferecidos tanto nas modalidades de educação a distância e de educação presencial, mantendo-se ou não a instituição sede no país receptor, quanto por meio de programas de mobilidade estudantil; venda de “produtos” oriundos de pesquisas, além da oferta, por especialistas, de cursos, palestras, oficinas etc.

Na visão dos organismos supranacionais, o ramo do ensino superior concentra as melhores oportunidades de comercialização de serviços pelas seguintes razões: em muitos países, o ensino superior não é financiado pelo fundo público; a “clientela” pertence às camadas economicamente mais favorecidas da população; o ensino superior destina-se, também, às demandas da “educação ao longo ensino”, atendendo ao aprimoramento profissional requerido pelas corporações multinacionais.

Em linhas gerais, as recomendações do referido relatório estiveram presentes nos debates e seminários promovidos pelo primeiro governo Lula da Silva, salientando as transformações do ensino superior na sua relação com a política de Ciência & Tecnologia inseridas na perspectiva dos processos de internacionalização da economia e da tecnologia. Nesse sentido, o Brasil deve

expandir o debate sobre alternativas que representem posições de grupos de países e de instituições no que tange à educação superior, o que apresentaria possibilidades para articular decisões mais coesas e consistentes sobre programas de cooperação horizontal e sul-sul no campo educacional, científico e tecnológico; propor um estudo censitário sobre a dinâmica das instituições de ensino superior que permita captar os fluxos de estudantes por nível de estudo, de maneira a ter uma dimensão real dos processos em curso. Esse tipo de censo deve orientar-se para o mercado interno (intrarregional e inter-regional) e externo (IESALC/UNESCO, 2004, p. 8-9).

Diferentemente da cooperação internacional institucionalizada historicamente por meio de acordos bi e multilaterais, que envolviam interesses históricos, culturais, científicos e tecnológicos na produção do conhecimento desinteressado, a internacionalização da educação em geral e do ensino superior em particular vem sendo posta e imposta pelos organismos supranacionais, por mediação do Estado e de blocos econômicos regionais, em prol dos interesses imediatos do capital.

O caso de Portugal

O estudo de Teodoro é fio condutor de nossa análise sobre a intervenção do Banco Mundial, OCDE e Unesco em Portugal.

Em Portugal, a primeira intervenção da Unesco data do período revolucionário na década de 1970, num contexto em que a organização foi transformada pelo Movimento dos Países Não Alinhados e pelos países socialistas em uma referência significativa para o debate educacional, encorajando políticas que favoreceram a aprendizagem e o acesso ao conhecimento de populações até então submetidas à violência da dominação estrangeira. Representou, por conseguinte, um símbolo de esperança para os países explorados e de economia deformada (LEHER, 1999).

A Revolução Portuguesa de 1974 alterou radicalmente as relações de poder, engendrando mudanças sociais, econômicas e culturais profundas. Marcado por várias fases, o período revolucionário foi um processo rico de movimentação da classe trabalhadora, mas também contraditório na medida em que seu plano de ação política tornou-se mediação para a construção de um projeto de capitalismo de Estado. Esse processo contraditório apontava para a revolução pela planificação por via socialista; entretanto, acabou por adotar orientação reformista.

Para efeitos de sistematização, poderíamos distinguir como fases desse processo o golpe militar de 25 de abril de 1974; a revolução política e social entre 1974 e 1975; a contrarrevolução entre 1975-1976, quando são realizadas eleições legislativas, presidenciais e municipais e aprovada a Constituição democrática; o período de normalização democrática ocorrido entre 1976 e 1982, que culminou não apenas na revisão da Constituição, retirando vários princípios revolucionários, mas também, na aprovação de novas leis das forças armadas.

Nota

O período de normalização é caracterizado pela transferência do centro das decisões políticas do poder popular, presente nas organizações da sociedade civil e no movimento das Forças Armadas, para o aparelho de Estado burguês, que se encontrava em processo de reorganização e reconstrução da hegemonia. Nesse sentido, ocorre “o afrouxamento, mas não o aniquilamento total do movimento popular, enquanto o movimento sindical parece se reforçar, bem como afrouxa o processo das transformações do sistema educativo, em que se verificam recuos e a anulação de propostas inovadoras” (GRÁCIO, 1981, p. 144).

O contexto revolucionário, em particular, foi marcado por novos tipos de relações sociais, modos de organização social e de exercício do poder – “o Estado deixa de existir por um lapso de tempo” (CANÁRIO, 2010) –, materializados na conquista das liberdades e instauração do regime democrático; no fim da exploração colonialista; na liquidação do capitalismo monopolista de Estado; na intervenção estatal e no controle dos trabalhadores, com a criação generalizada de comissões de fábrica, terras, bairros, aldeias, escolas e quartéis; nacionalizações dos setores de base (indústria, transporte e comunicação), além dos setores bancário e securitário; na expropriação da propriedade latifundiária e implementação da reforma agrária (CANÁRIO, 2007; GRÁCIO, 1981; TEODORO, 1978; UNESCO, 1982).

As contradições inerentes ao processo revolucionário não permitiram, no campo da educação, o mesmo avanço obtido no plano econômico, uma vez que as políticas educativas dos Governos Provisórios assentaram-se no trinômio “modernização, educação, democracia-cidadania” (STOER e ARAÚJO, apud TEODORO, 2003, p. 42), buscando promover uma identidade entre democracia-cidadania e socialismo, em franca oposição ao arcaísmo do sistema educativo do qual não conseguiu dar cabo a Reforma Veiga Simão, sem, contudo, pôr em causa os princípios liberais dessa reforma (STOER, 1982; TEODORO, 1978, 1982; UNESCO, 1982).

Como parte do processo de luta popular democrática, articulada antes do 25 de Abril, o princípio da igualdade de oportunidades educacionais, contemplado na Reforma Veiga Simão, materializou-se em programas e ações de forças políticas do Partido Comunista, do Partido Socialista e da esquerda revolucionária, tornando possível, de um lado, democratizar o acesso das classes populares ao ensino, desde o nível da educação infantil à educação superior; promover a “desfascização dos conteúdos de ensino”, que passaram a estabelecer estreita ligação entre educação e produção material da vida; institucionalizar a liberdade de expressão e de reunião, bem como a liberdade associativa nas escolas e na sociedade em geral; desenvolver nos jovens uma perspectiva internacionalista e solidária com a luta de outros povos; remodelar os currículos de modo a acompanhar o desenvolvimento tecnológico-científico.

Todos esses elementos foram assegurados na Constituição promulgada em 25 de abril de 1976. Entretanto, de outro lado, “a orientação eclética e mesmo liberal [materializada nas relações com a Unesco, no Projeto-Lei nº 25/I, promulgado em novembro de 1976, e na revisão da constituição em 1982, já no contexto contrarrevolucionário] impediu uma abordagem científica e corajosa dos problemas, permitindo a exploração reacionária de certos núcleos temáticos” (TEODORO, 1978, p. 32-33).

Nota

Ainda em vigor, a Constituição de 1976 é a mais longa da história de Portugal, tendo sofrido sete revisões constitucionais: 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005.

A relação de Portugal com a Unesco teve sua gênese no Estado Novo, que adere ao organismo no ano de 1945, mas ao longo de sua vigência não participa das atividades promovidas pela Organização. Durante todo o período dos governos Salazar e Caetano, ora foi impedido, ora não foi convidado a ter assento nas conferências e congressos, devido ao fato de não disponibilizar de meios para que a Unesco realizasse estudos sobre a realidade educacional nos territórios sob sua administração, o que culminou no seu desligamento formal no ano de 1972 (UNESCO, 1982).

Em setembro de 1974, em pleno processo revolucionário, o Governo Provisório I deposita um novo instrumento de adesão à Unesco junto ao governo britânico (UNESCO, 1982), marcando o início do processo contraditório da revolução, que tem como emblema o responsável pela pasta da Educação, Sottomayor Cardia.

Nota

Nos períodos revolucionário e contrarrevolucionário contam-se seis governos provisórios: I Governo Provisório (maio de 1974-julho1974); II Governo Provisório (julho de 1974-setembro de 1974); III Governo Provisório (setembro de 1974-março de 1975); IV Governo Provisório (março de 1975-agosto de 1975); V Governo Provisório (agosto de 1975-setembro de 1975) e VI Governo Provisório (setembro 1975-setembro de 1976).

Nesse contexto, a Unesco tornou-se instrumento de reordenamento do sistema educativo no pós-25 de Abril, na busca da “democratização no seio de uma comunidade que escolhera o reforço da sua independência nacional e a via socialista de desenvolvimento” (UNESCO, 1982, p. 11), enviando uma missão organizada no âmbito da sua Divisão das Políticas e da Planificação da Educação, que visitou Portugal entre maio e junho de 1975.

O relatório Para uma política da educação em Portugal, produzido na sequência dessa visita, rapidamente ultimado, manifesta grande empatia com o que se passava em Portugal nesse período revolucionário e uma significativa concordância com as grandes linhas de ação política adotadas no plano governamental, situadas na perspectiva do estabelecimento de uma sociedade socialista e do reforço da independência nacional.

Em linhas gerais, a política externa – de defesa da paz, alargamento e diversificação das relações internacionais, participação e colaboração ativa com a ONU em geral e com organismos de cooperação internacional em particular, e de respeito aos compromissos assumidos em tratados assinados anteriormente –, bem como a política educativa – de democratização do acesso, educação de jovens e adultos, formação para o trabalho, formação continuada de professores e de ampliação dos esquemas de ação social escolar e de educação pré-escolar, envolvendo obrigatoriamente o setor privado, com vista a um mais acelerado processo de implantação do princípio da igualdade de oportunidades – inseridas no Programa do I Governo Provisório de Portugal encontram boa acolhida pela Unesco, que já vinha desde a sua 15ª Conferência Geral de Educação, realizada em 1968, propondo nova orientação para os sistemas nacionais de ensino: a educação permanente, tendo em sua essência a educação para a paz.

Em um contexto “de emergência de um forte movimento popular, simultaneamente causa e efeito de uma suspensão temporária do poder exercido pelos patrões, os excomungados de Abril’ e do poder de Estado” (CANÁRIO, 2007, p. 13), a Unesco enfatiza a necessidade de elaborar um projeto educativo, integrado e coerente com a modificação social em curso e, sobretudo, com o “modo de produção capitalista, que, embora não fosse determinante, era ainda predominante” (CUNHAL, 1994, p. 313). Entretanto, o poder de decisão estaria não nas organizações do movimento da classe trabalhadora, mas sim nos órgãos representativos da população e nas mãos de técnicos da planificação, de modo que se exercesse autoridade única sobre o conjunto das atividades educativas (UNESCO, 1982, p. 69).

Como em todos os relatórios de organizações internacionais, Para uma política da educação em Portugal preconiza a educação como agente de transformação econômica e social, tendo em sua essência a teoria do capital humano, apontando não apenas para a assistência na coordenação financeira e técnico-metodológica da reforma educativa em sua estrutura, conteúdos e métodos de ensino, à luz da educação permanente, mas também, e sobretudo, para o acolhimento de serviços de financiamento como o PNUD, o Banco Mundial e o Unicef (UNESCO, 1982, p. 69-147).

No que diz respeito ao ensino superior, as orientações gerais não são diferentes daquelas preconizadas para o restante dos países membros, das quais destacamos: reforma institucional; modernização curricular, de modo que a universidade acompanhe as transformações econômicas em curso; aproximação estreita entre instituições de ensino e organização de classe, particularmente com associações de engenheiros e técnicos; ênfase na eficácia da pesquisa aplicada ao desenvolvimento econômico; financiamento externo para o desenvolvimento do ensino superior (UNESCO, 1982, p. 80-86).

Stoer (1982), com quem concordamos, afirma que tanto na política da “normalização”(do bloco no poder) quanto na política da “eficiência” (da Unesco), o objetivo da igualdade de oportunidades oferecia uma face democrática à reforma educacional; entretanto, a contradição se manifesta em ambos. De um lado, aponta para a melhoria de padrões que antes haviam sido negligenciados; de outro, busca dotar o sistema educativo de caráter técnico, de modo que este, em busca da eficácia, se sobreponha ao seu perfil político, voltando-se, assim, para a formação de técnicos e tecnocratas de que a economia portuguesa tanto carecia para seu desenvolvimento.

No contexto de normalização, o Estado burguês, moldado às necessidades da burguesia que, então, se reorganizava no poder político, busca a estabilidade econômica por mediação do FMI e do Banco Mundial, de acordo com o quadro de desenvolvimento econômico que se pretendia. A definição dos objetivos da educação, em geral, e do ensino superior baseado, particularmente, na formação de técnicos de escalão intermediário, passa a ser delineada a partir das previsões de emprego (STOER, 1982, p. 83-4).

Além da OCDE e da Unesco, o FMI, o Banco Mundial e a CEE tiveram papel fundamental no processo contrarrevolucionário (1975-1976) de organização da burguesia portuguesa e de reestruturação do Estado, cujo bem-estar social passou a vincular-se às condições de acumulação do capital, à ideologia do desenvolvimentismo e do capital humano.

Publicado em 5 de junho de 2012

Publicado em 05 de junho de 2012

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