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Dau Bastos: entre a teoria e a prática

Mariana Cruz

Dau Bastos (fotografia)
Dau Bastos

Dau Bastos é escritor e professor da UFRJ. Entre seus livros estão os romances Das trips, coração (1984), Snif (1987), Clandestinos na América (2005) e Reima (2009), a tese Céline e a ruína do Velho Mundo (2005) e a biografia intelectual Machado de Assis: num recanto, um mundo inteiro (2008).

Nesta entrevista Dau fala, entre outros assuntos, sobre a experiência de lecionar literatura em uma das mais importantes instituições de ensino superior do país, sendo alguém que vive o mundo da teoria (como docente) e o da prática (como autor). Também tece considerações sobre seus alunos – a seu ver muito mais antenados, interessantes e promissores do que o pessoal que, como ele, era jovem ao final da ditadura. Por fim, destaca a importância da greve das universidades públicas federais.

Revista Educação Pública - Você sente alguma diferença entre os estudantes que chegam à universidade provenientes do ensino público e os que vêm de escolas particulares?

Já no ensino médio o aluno sabe que Letras jamais possibilitará enriquecimento ou prosperidade; por isso, no momento de fazer a inscrição para o vestibular, só opta por estudar conosco se ama a língua e a literatura ou, como é frequentemente o caso, não se sente capaz de enfrentar a forte concorrência de outros cursos. Esses dois fatores contribuem para que nosso corpo discente se constitua basicamente de jovens oriundos do subúrbio, das comunidades; portanto, de colégios públicos. Para se ter ideia da situação de dureza de nossos estudantes, antes da instalação de nosso bandejão a Faculdade de Letras era a unidade da UFRJ com maior número de desmaios por fome. Outro obstáculo sério ao aprendizado é o transporte: muitos alunos bons vivem nos procurando para explicar que faltaram às aulas por falta de dinheiro para pagar a passagem de ônibus, que, como sabemos, é caríssima.

Como as disciplinas que ministro são oferecidas a partir do sexto período, dou aula para quem já enfrentou quase três anos de perrengues, durante os quais demonstrou grande força de vontade, progrediu bastante intelectualmente e percebeu a importância do curso para a carreira profissional e, por extensão, para a vida. Assim, posso afirmar sem qualquer demagogia que não percebo diferença alguma entre alunos oriundos de colégios particulares e públicos. Mesmo aqueles que tiveram os ensinos fundamental e médio comprometidos pelo descaso de que a educação pública é objeto em nosso país já preencheram boa parte das lacunas de conhecimento e, conscientes da importância de obter o diploma de graduação para melhorar sua situação e a dos familiares, costumam demonstrar muito empenho e, nas mais variadas atividades – da escrita de ensaios literários à apresentação em jornadas de iniciação científica –, tendem a atingir um desempenho de deixar qualquer professor muito feliz.

Revista Educação Pública - Qual a maior dificuldade que você identifica em seus alunos?

Analisar e fruir a boa literatura. Como o Brasil nunca foi propriamente dado à leitura e quando começou a reduzir seu índice de analfabetismo encontrou no cinema e na televisão duas fascinantes fontes de ficção, os alunos sentem uma dificuldade muito grande de curtir textos que se neguem a repetir o enredo folhetinesco do século XIX (hoje cultivado à exaustão pelas telenovelas e pelo cinema comercial). Evidentemente ninguém pode jogar pedra em quem gosta desse tipo de narrativa; afinal, quem consegue se portar com indiferença diante, por exemplo, de um caso de adultério ou assassinato na vizinhança?

Acontece que já em Machado de Assis (para não voltar ao passado mais longínquo de outras latitudes) o escrito literário combina forma e reflexão, ou seja, pensa a fundo a existência humana, trazida à tona por meio de um trabalho de linguagem que leva em conta bandeiras como aquela empunhada pelos futuristas italianos, das “palavras em liberdade”. O enfrentamento desse desafio por parte dos autores que conhecem minimamente a história da literatura cria um abismo em relação à expectativa que o ser humano traz de berço em relação à ficção, que é justamente prender a atenção pela quantidade dos eventos que a constituem.

O grande esforço do professor de literatura consiste justamente em demonstrar a coerência e a importância de as artes – entre as quais a poesia e a prosa – terem passado da pura repetição do dito real para a criação de outros mundos e até de não mundos, movimento que pode implicar, inclusive, o alheamento em relação àquilo que chega aos nossos cinco sentidos. Depois que Baudelaire fez florescer do mal e Mallarmé propôs que a ficção fosse criada a partir da própria linguagem, a literatura ganhou uma complexidade que, para não se configurar impedimento à leitura, requer conhecimento das buscas estéticas empreendidas pelas diferentes artes, sobretudo a partir do início do século XX, com as vanguardas europeias e, em nosso caso, com o modernismo.

Agora, uma vez que os alunos conhecem essa história e travam contato com textos experimentais, costumam intensificar de tal modo a relação com o fenômeno literário que se tornam arautos da ficção e da poesia experimentais. Hoje, então, que se percebe claramente a possibilidade de fundir os sensos crítico e estético, esse tipo de produção amplia continuamente a base de recepção em nosso país.

Revista Educação Pública – Como é ensinar literatura em uma das mais conceituadas universidades do país?

É ter a oportunidade de me juntar a colegas e alunos para desenvolver projetos como o Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, que, ao veicular artigos, ensaios, entrevistas e resenhas, comprova que o país está produzindo muita ficção e poesia. Como as comunicações e textos são elaborados por estudantes de diferentes instituições, percebemos que nossa juventude está mais sagaz do que nunca. Tanto assim que, sempre que traço paralelo entre meus alunos e minha geração, concluo que nós que chegamos aos dezoito anos durante a abertura política éramos bem menos livres e criativos. Essa diferença não nos autoriza a falar em evolução – termo inadequado ao campo das artes –, mas permite ver uma média de produção muito boa.

É de se acrescentar, no entanto, a lástima de percebermos que os sucessivos governos – FHC, Lula, Dilma – seguem a cartilha do Banco Mundial, segundo a qual o ensino superior deve ser privatizado. Como alguém que fez campanha para o Lula e a Dilma, fico estarrecido de ver que nenhum dos dois ousou enfrentar essa onda proveniente de Washington D.C., cuja consequência inevitável será perdermos a grande oportunidade de a universidade pública de qualidade ser colocada ao alcance de toda a população brasileira. Nas instituições públicas os recursos são escassos, mas alunos e professores ainda têm oportunidade de fazer pesquisa; com o deslocamento das verbas para estabelecimentos particulares, o professor é mero horista e o aluno não consegue fazer ciência. Será que a presidenta não percebe que, nessa batida, contribui para frustrar uma das maiores aspirações de nossa pátria – ter alfabetização plena da população – e manter nosso povo como mão de obra desqualificada, portanto apertadora dos parafusos das máquinas a serem usadas no primeiro mundo?

Neste momento, em que a quase totalidade das universidades federais aderiram à greve nacional, a Faculdade de Letras da UFRJ está completamente parada. Docentes, estudantes e funcionários se uniram na luta pela melhoria das condições gerais de ensino, que incluem salários, bolsas, equipamentos e – mais importante que tudo – uma nova visão do ensino superior. Que aproveitemos a crise para pensar a situação da universidade brasileira como um todo, pois somente assim estaremos ajudando os estudantes e professores das escolas particulares a integrar o contingente de que temos o privilégio de fazer parte.

Revista Educação Pública – Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever, ou seja, que já são escritores e prescindem da academia?

Como cresci na zona canavieira de Alagoas, tive no vinhoto uma de minhas madeleines. Se o alter ego de Marcel Proust encontrava na iguaria uma interface com o passado, até hoje me emociono ao sentir o fedor do resíduo do processo de fabricação do álcool e do açúcar. Traço esse paralelo absurdo para dizer que acredito menos em dom de berço do que em experiência de vida. Se a relação com a escrita for marcada pelo prazer, certamente tende a ser cultivada pela pessoa, que, assim, amplia as chances de virar escritora.

Como todo ser humano usa as palavras ou símbolos correlatos para se comunicar, certamente conseguirá redigir – atividade que, em última análise, consiste em colocar no papel os mesmos materiais. Portanto, ninguém precisa da academia para virar ficcionista ou poeta. Mais que isso, as faculdades de Letras estão longe de estimular a contento a escrita: a maioria dos professores, inclusive de literatura, se satisfaz em aplicar provas, as quais, como sabemos, constituem jatos de vocábulos sem qualquer lapidação. Assim, é grande a quantidade de alunos que chegam ao final da graduação sem haver feito um ensaio ou mesmo uma resenha. Agora, que a monografia de final de curso está virando obrigação, é possível que o quadro mude; por enquanto, nossas faculdades de Letras vivem o grande paradoxo de tratar dos textos virtualmente mais reescritos da humanidade sem propor aos alunos que pensem em virar autores – algo que depende de escrita, sim, mas sobretudo de reescrita.

Feitas as ressalvas, nosso currículo propicia um contato profundo e continuado com uma bibliografia que remonta à Grécia antiga, mediante a qual acompanhamos o caminhar da humanidade – ou, pelo menos, do Ocidente – ao longo de milênios. Como a literatura é uma esponja do que a humanidade produz e uma instância de recriação de indagações e procuras empreendidas desde o surgimento do mundo, o mergulho nesse mar de textos é capaz de fecundar a vida como um todo.

A esse aspecto se soma o ganho de consciência literária, que nada tem a ver com talento, e sim com conhecimento. Ao saber de James Joyce numa aula de Literatura de Língua Inglesa, por exemplo, o jovem romancista percebe que, nas primeiras décadas do século passado, a prosa pirou; por conseguinte ele está livre para fazer o que lhe der na telha, contanto que sue a camisa pela qualidade. Na mesma matéria talvez tenha oportunidade de ver que a ideia de experimentação já se encontra em romances como Tristram Shandy, que o irlandês Laurence Sterne escreveu na década de sessenta do século XVIII. Ao passar para a sala do lado, encontrará a disciplina dedicada à Literatura Espanhola usando a Teoria da Literatura para fundamentar a ideia de que Dom Quixote, que Cervantes ofereceu ao mundo em 1605, é o primeiro romance moderno. No semestre seguinte talvez descubra a importância de a poesia ter adotado o verso livre para que o poeta vá mais longe no sentido da criação artística e da recriação da subjetividade humana. Ao chegar às matérias reservadas à Literatura Brasileira, verá, entre muitas outras coisas, que João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa estão entre os maiores beneficiários do legado vanguardista, ainda que o poeta pernambucano tenha aproveitado o processo de depuração para readotar o rigor como pretexto para testar o vigor, enquanto o romancista mineiro haja levado ao máximo a alforria do verbo.

Todo esse manancial me faz pensar, inclusive, que muitos amigos poetas e prosadores talentosos que conheço na cidade bem que poderiam ir de vez em quando ao campus, onde perceberiam que as aulas de História e Teoria da Literatura não embotam o espírito nem tolhem a inspiração; ao contrário, podem ser muito úteis ao desenvolvimento do potencial.

Revista Educação Pública – Acontece de, com o estudo e o passar dos períodos, você ver aflorar algum “escritor” em alguém que não esperava?

Os professores de Letras têm perfis muito variados, o que é bom para a faculdade. Como só virei docente aos quarenta anos – quando já havia produzido diferentes tipos de textos e publicado alguns livros de ficção –, me sinto um escritor que dá aula, portanto empenhado em fomentar o surgimento de novos autores. Nesse sentido, faço de minhas aulas sobre Literatura Brasileira verdadeiras oficinas de ensaio e, por conta própria, ofereço uma optativa de escrita de contos. Nos dois casos, vejo um crescimento muito grande dos alunos no trato com a escrita. O processo é penoso para eles (que têm de escrever e reescrever muito) e para mim (que leio e comento diferentes versões de um trabalho bem mais longo que uma prova). Ao final, porém, o resultado é muito gratificante para todos. Uma das maiores alegrias que experimento como docente ocorre ao final do semestre, quando chego à faculdade sobraçando uma pilha imensa de trabalhos digitados, revisados e legíveis, sobre os quais posso falar com toda a familiaridade. A reação dos alunos não é menos emocionante: aqueles que ficam até o fim (pois alguns fogem da ralação) costumam dizer que nunca mais vão querer escrever como antes. Entre eles encontram-se desde aqueles que no início do curso já pareciam gostar de escrever até outros que, nas primeiras aulas, haviam admitido que odiavam ter de produzir texto e detestavam literatura. O mais legal é ver que, com a facilidade de publicação decorrente do fato de as máquinas possibilitarem a impressão em pequenas tiragens, vários acabam lançando livros de ensaio, ficção e poesia, ou seja, do trinômio que constitui a literatura.

Revista Educação Pública – Você está escrevendo algum livro no momento?

Algumas semanas atrás concluí a escrita de Mar Negro, romance ambientado no Leste Europeu e narrado por uma alagoana. A experiência de assumir o ponto de vista feminino me enriqueceu bastante como escritor e homem, da mesma forma que a assunção de meu pobre estado como origem da protagonista marca a inauguração de uma nova fase em minha produção ficcional: de uso do que aprendi de técnica narrativa para privilegiar Alagoas como cenário. Não sei em quantos livros a vida permitirá que eu trabalhe minhas raízes, mas já tenho outra ideia de história passada lá.

Antes disso, porém, preciso dar os retoques finais no volume de ensaios Brasil todo prosa – ficção nacional do último quarto do século XX, dedicado a livros publicados desde o período de ditadura até o fechamento do milênio. Como todo pesquisador convive de tal maneira com seu objeto de estudo que acaba sentindo-o como parte integrante de seu ser, talvez eu seja suspeito para fazer o elogio de meus contemporâneos; mas a verdade é que admiro profundamente os coetâneos que analiso desde os tempos de mestrado. Refiro-me a Beatriz Bracher, Bernardo Carvalho, Caio Fernando Abreu, Godofredo de Oliveira Neto, Gustavo Bernardo, Hilda Hilst, Ivan Angelo, João Gilberto Noll, Marilene Felinto, Milton Hatoum, Paulo Leminski, Raduan Nassar, Reinado Moraes, Rosa Amanda Strausz, Rubens Figueiredo, Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago, Zulmira Ribeiro Tavares e muitos outros. Esse pessoal comprova que, caso abramos mão da categoria anacrônica de gênio, percebemos claramente que a literatura brasileira vive uma verdadeira efervescência.

Revista Educação Pública – Você considera importante que o professor de Literatura também seja escritor?

Sim. Não digo isso para valorizar minha condição de dublê de autor e docente, mas pensando na qualidade das aulas e comunicações daqueles colegas que escrevem com regularidade, seja ensaio, ficção ou poesia. A rigor, o professor de Literatura tem de conhecer bem crítica, história e teoria literárias. No entanto, o enfrentamento do vazio da folha de papel ou da tela do computador possibilita que ele se coloque do outro lado do balcão, ou seja, que se ponha no lugar do produtor de texto. A luta para encontrar as palavras mais adequadas, o empenho em harmonizar os vocábulos, a atenção ao ritmo da frase, o cuidado com a roteirização dos conteúdos, tudo isso ajuda a compreender o processo de escrita e a ficar mais à vontade para esquadrinhar os textos alheios. Hoje, então, que o lema “publicar ou perecer” se faz presente nas universidades de todo o planeta, o professor de Literatura das instituições públicas de ensino – não me refiro aos colegas das privadas devido ao alto grau de exploração de que são vítimas – que se limita à fala deixa bastante a desejar e, na verdade, é um espécime cuja extinção não fará falta alguma.

05/06/2012

Publicado em 05 de junho de 2012

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